RESUMO: O artigo destina-se a analisar a questão da competência em matéria criminal em face de delitos cometidos por índios ou praticados contra eles.
Palavras-chave: Crimes. Índios. Competência. Súmula 140 do STJ.
A Constituição Federal de 1988 ao inaugurar uma nova ordem jurídica calcada no pluralismo político e na dignidade da pessoa humana trouxe profundo avanço no reconhecimento da multiculturalidade como elemento formador do Estado Democrático de Direito. Ao dedicar capítulo inteiro à temática indígena – e em outros artigos espalhados pelo texto constitucional – deixou clara a opção pelo respeito à alteridade ao apontar textualmente, em seu artigo 231 que aos índios se reconhece sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
O impacto dessa guinada constitucional nas relações jurídicas envolvendo os índios no Brasil é enorme. A Constituição, adotando uma postura de respeito à diversidade cultural brasileira, assegura o direito de os índios serem e permanecerem diferentes, afastando a possibilidade de qualquer forma de discriminação, como decorrência direta da liberdade e da igualdade. É o princípio da proteção da identidade, já mencionado retro. Está constitucionalmente vedado qualquer entendimento jurídico que implique afirmar direita ou indiretamente a superioridade cultural da sociedade envolvente em relação aos grupos indígenas. Isso significa que o modo de ser e de viver dos índios deve ser respeitado e protegido, e não destruído, sendo-lhes garantido o pleno exercício dos seus direitos culturais[1].
Em respeito ao multiculturalismo, o qual se evidência sobretudo na população ameríndia, o legislador constituinte estabeleceu que aos juízes federais compete processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas (art. 109, XI, da CF/88).
Para Cláudio Lemos Fonteles, os precedentes do Tribunal Federal de Recursos apontavam, de modo geral, para a competência da Justiça Estadual para o julgamento dos crimes envolvendo índios por não ter a Emenda Constitucional 01/69 previsto norma diferente da usual. Contudo, nas questões envolvendo interesse da União, a competência deslocava-se para a Justiça Federal. A Constituição Federal de 1988 ensejaria o reexame da matéria, pois, a combinação do inc. XI do art. 109 com o art. 231 deslocaria toda a competência dos julgamentos dos crimes praticados por ou contra índios da Justiça Estadual para a Justiça Federal[2].
Deixe-se claro que a competência estabelecida na Carta Maior não se dá em razão da pessoa, ou seja, não é o fato do indígena figurar como autor ou como vítima que atrairá a competência da Justiça Federal, mas a natureza da matéria posta em discussão na lide penal (competência ratione materiae):
No âmbito da Justiça Comum, tanto a Justiça Federal quanto as Justiças dos Estados têm competência criminal, e ambas, federal e estadual, exercem suas respectivas competências em territórios comuns. Logo, o que distingue a competência da Justiça Federal em relação à Justiça dos Estados é unicamente a natureza da causa, ou seja, a natureza da matéria de direito posta em discussão na lide penal[3].
Nesse contexto, ante a prescrição estampada no texto constitucional, a qual não aponta quaisquer exceções, chama atenção o teor da Súmula nº 140 do Superior Tribunal de Justiça, assim enunciada: “compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figura como autor ou vítima”.
Em uma análise superficial do teor dessa súmula, poderíamos afirmar que a competência para processar e julgar delitos envolvendo indígenas seria sempre da justiça comum estadual, em evidente negação ao texto constitucional.
Contudo, tal entendimento não é o que se quis alcançar com a edição da Súmula, já que à época (data de 18 de maio de 1995 e foi publicada no DJ de 24 de maio de 1995) já vigia a Constituição de 1988. Note-se que quando da edição da súmula, foiconsiderado o disposto no art. 109, XI da CF/88, conclusão a que se chegamediante leitura dos precedentes que a ensejaram[4]:
Cabe a Justiça Comum Estadual processar e julgar o crime de homicídiopraticado contra índio por não índio, fora da reserva natural. [...] 'ACarta Política de 1988, em seus arts. 22, XIV (Populações Indígenas) eart. 109, XI (Competência da Justiça Federal para processar e julgar adisputa sobre direitos indígenas), delega poderes à Justiça Federal paraprocessar e julgar as causas relativas às disputas sobre direitosindígenas, donde se conclui que - direitos indígenas são aquelesdecorrentes de causas onde existe o interesse da União em proteger ossilvícolas, significando que os delitos praticados que não envolvambens, serviços ou interesses da União, não estão afetos à jurisdiçãofederal. Ressalte-se que o entendimento é no sentido de crimes por elese contra eles praticados.' (CC 7624 AM, Rel. Ministro ANSELMOSANTIAGO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 16/06/1994, DJ 05/12/1994, p.33519)
A Constituição, de um modo direto ou indireto, fixa o juízo naturalpara qualquer conflito de interesses. No caso concreto, um índio estasendo acusado de ter praticado crime de lesões corporais em outrosilvícola. O juízo suscitante (federal), em principio, só temcompetência para dirimir 'disputa sobre direitos indígenas'(Constituição, art. 109, XI), o que não é o caso dos autos. Logo, acompetência é da Justiça Comum do Estado e não da Justiça Comum daUnião. (CC 3910 RO, Rel. Ministro ADHEMAR MACIEL, TERCEIRA SEÇÃO,julgado em 17/12/1992, DJ 01/03/1993, p. 2486)
A proteção que a Constituição Federal confere a defesa dos interessesdo indígena não alcança o privilégio do foro federal, para processar ejulgar crime de homicídio praticado por índio, ocorrido em áreas dereserva indígena. (CC 8733 MA, Rel. Ministro PEDRO ACIOLI, TERCEIRASEÇÃO, julgado em 16/06/1994, DJ 22/08/1994, p. 21204)
Lesões corporais causadas por um silvícola em outro, sem conotaçãoespecial, em ordem a configurar ofensa a interesse da União. Competênciada Justiça Estadual para o processo e julgamento do crime. [...] odelito de que os autos dão notícia não guarda relação com os direitosindígenas de que cuida o dispositivo constitucional. (CC 575 MS,Rel. Ministro PAULO COSTA LEITE, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 21/09/1989,DJ 16/10/1989, p. 15854)
Infelizmente, a redação da súmula falhou ao não mencionar expressamente a previsão constitucional, ou seja, que a disputa sobre direitos indígenas atrairia a competência da justiça federal, provocando confusão quando de sua leitura sem a análise dos precedentes que a determinaram (o que é comum no meio jurídico). Desse modo, a própria jurisprudência se encarrega de afastá-la quando da análise de casos concretos:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. CRIMES DE CALÚNIA E DIFAMAÇÃO ENTRE ÍNDIOS. SÚMULA 140/STJ. NÃO INCIDÊNCIA. DISPUTA RELACIONADA À LIDERANÇA E OCUPAÇÃO DA ALDEIA WAHURI, DO POVO JAVAÉ, NA ILHA DO BANANAL. INTERESSE DE TODA A COMUNIDADE INDÍGENA. ART. 109, XI, E ART. 231 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.1. Em regra, a competência para processar e julgar crime que envolva índio, na condição de réu ou vítima, é da Justiça Estadual, conforme preceitua o enunciado nº 140 da Súmula desta Corte, segundo o qual: "Compete a Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vitima." 2. Todavia, a competência será da Justiça Federal toda vez que a questão versar acerca de disputa sobre direitos indígenas, incluindo as matérias referentes à organização social dos índios, seus costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam, conforme dispõem os arts. 109, XI, e 231, ambos da Constituição da República de 1988.3. Na hipótese, verifica-se que os fatos narrados no termo circunstanciado, os quais, em tese, caracterizam crimes de calúnia e difamação, tiveram como causa a situação de conflito na comunidade indígena do Povo Javaé, notadamente a disputa pela posição de cacique da Aldeia Wahuri, na Ilha do Bananal, atingindo os interesses coletivos de toda a comunidade indígena, situação que afasta a incidência da Súmula 140/STJ e atrai a competência da Justiça Federal.4. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal de Gurupi - SJ/TO, o suscitante.(CC 123.016/TO, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/06/2013, DJe 01/08/2013)
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIMES PRATICADOS CONTRA INDÍGENAS.DISPUTA POR TERRAS. NÃO APLICAÇÃO DA SÚMULA 140 DESTA CORTE.COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. INDEFERIMENTO DE DILIGÊNCIA.CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. DECISÃO FUNDAMENTADA.I- Exsurgindo dos autos que os crimes em tese praticados contra silvícolas, tiveram como móvel a disputa por terras, cuja propriedade era reclamada pelos indígenas, verifica-se não ser o caso de aplicação da Súmula 140 desta Corte. Portanto, há de se reconhecer a competência da Justiça Federal para julgar o feito, ex vi art. 109, XI, da Constituição Federal (Precedentes do Pretório Excelso e desta Corte).II - Não constitui constrangimento ilegal o indeferimento do pedido de realização de exame pericial se o magistrado, analisando os outros elementos constantes nos autos, o faz de maneira fundamentada. (Precedentes).Writ denegado.(HC 58.277/MS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 05/12/2006, DJ 26/02/2007, p. 619)
Uma vez esclarecido o real alcance da súmula, resta-nos definir do que trata a disputa sobre direitos indígenas apta a atrair a competência da justiça federal, ou seja, devemos buscar a definição do que sejam os direitos indígenas.Para tanto, mister a transcrição do art. 231 do texto constitucional:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
A própria constituição se incumbiu de definir o conteúdo básico dos direitos indígenas ao reconhecer-lhes a organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Por se tratarem de direitos fundamentais, a interpretação a esses valores deve ser a mais ampla possível, de forma a resguardá-los sob todos os aspectos. Além disso, não podemos nos olvidar dos direitos indígenas estampados em normas internacionais, notadamente aqueles constantes da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, incorporado ao nosso ordenamento pelo Decreto nº 5.051, de 2004.
Portanto, quando o caso concreto envolver a disputa sobre quaisquer dos direitos elencados no art. 231 da Constituição ou contido em normas internacionais das quais o Estado brasileiro é signatário, a competência será invariavelmente da Justiça Federal. Nesse sentido:
HABEAS CORPUS. DISPUTA SOBRE DIREITOS INDÍGENAS. SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. DESVIRTUAMENTO. PRECEDENTES DO STF. ART. 109, XI, DA CF. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. LEI DO CRIME RACIAL VERSUS ESTATUTO DO ÍNDIO. PRETENDIDA DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA IMPUTADA AO PACIENTE. MATÉRIA NÃO ANALISADA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM.SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. MANIFESTO CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO.1. É imperiosa a necessidade de racionalização do habeas corpus, a fim de preservar a coerência do sistema recursal e a própria função constitucional do writ, de prevenir ou remediar ilegalidade ou abuso de poder contra a liberdade de locomoção.2. O remédio constitucional tem suas hipóteses de cabimento restritas, não podendo ser utilizado em substituição a recursos processuais penais, a fim de discutir, na via estreita, tema afetos a apelação criminal, recurso especial, agravo em execução e até revisão criminal, de cognição mais ampla. A ilegalidade passível de justificar a impetração do habeas corpus deve ser manifesta, de constatação evidente, restringindo-se a questões de direito que não demandem incursão no acervo probatório constante de ação penal.3. Segundo o Supremo Tribunal Federal, a incidência do inciso XI para determinar a competência da Justiça Federal tem a ver com a disputa sobre direitos indígenas, os quais, por sua vez, estão relacionados à proteção conferida aos indígenas pelo caput do art.231 da Constituição Federal.4. Na espécie, verifica-se que o paciente praticou, induziu e/ou incitou a discriminação ou preconceito da cultura indígena, aqui abrangidos os seus costumes, as suas crenças e as suas tradições, pelo que resta evidente que a ação penal está ligada a questões que dizem respeito a "disputa sobre direitos indígenas". Tal circunstância excepcional é apta para, nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, atrair a competência da Justiça Federal para processar e julgar o feito.5. Mostra-se inviável a análise diretamente por esta Corte Superior de Justiça da alegação de que a conduta imputada ao paciente se amolda ao tipo previsto no art. 58, I, da Lei n. 6.001/1973 (Estatuto do Índio), e não ao art. 20, § 2º, da Lei n. 7.716/1989 (Lei do Crime Racial), como foi capitulado pelo Ministério Público Federal, tendo em vista que essa matéria não foi apreciada pelo Tribunal de origem, até porque não suscitada em momento algum, sob pena de, assim o fazendo, incidir na indevida supressão de instância.6. Habeas corpus não conhecido.(HC 144.387/ES, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 20/11/2012, DJe 05/12/2012)
HABEAS-CORPUS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA LOCAL PARA PROCESSAR E JULGAR CRIME DE HOMICÍDIO COMETIDO CONTRA INDÍGENA, DETERMINADA PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA AO JULGAR CONFLITO DE COMPETÊNCIA. ALEGAÇÃO DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. O inciso IV do art. 109 da Constituição, ao atribuir competência à Justiça Federal para processar e julgar as infrações penais praticadas em detrimento de interesse da União, não tem a extensão pretendida pelos impetrantes, até porque no cenário desta singular amplitude seria muito difícil excluir alguma infração penal que não fosse praticada em detrimento dos interesses diretos ou indiretos da União. 2. O inciso XI do mesmo artigo confere competência à Justiça Federal para processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas, os quais são aqueles indicados no art. 231 da Constituição, abrangendo os elementos da cultura e os direitos sobre terras, não alcançando delitos isolados praticados sem qualquer envolvimento com a comunidade indígena. 3. Habeas-corpus conhecido, mas indeferido.(HC 75404, Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Segunda Turma, julgado em 27/06/1997, DJ 27-04-2001 PP-00059 EMENT VOL-02028-03 PP-00534)
PENAL E PROCESSUAL PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. DENÚNCIA QUE ENVOLVE CRIMES DE FAVORECIMENTO À PROSTITUIÇÃO, SUBMISSÃO À PROSTITUIÇÃO, RUFIANISMO, VENDA DE BEBIDAS ALCOÓLICAS A ADOLESCENTES E FORMAÇÃO DE QUADRILHA, PRATICADOS COM PARTICIPAÇÃO DE ÍNDIOS E COM EXPLORAÇÃO SEXUAL DE ADOLESCENTES INDÍGENAS. INEXISTÊNCIA DE CRIMES RELACIONADOS A DISPUTA SOBRE DIREITOS INDÍGENAS. ART. 109, XI, DA CF/88. SÚMULA 140/STJ. INCIDÊNCIA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE DIREITO DA COMARCA DE CORONEL BICACO/RS.
I. Os delitos praticados são crimes comuns, que não se relacionam com disputa sobre direitos indígenas, na forma do art. 109, XI, da CF/88.II. O Plenário do Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que a competência da Justiça Federal, fixada no art. 109, XI, da Constituição Federal, "só se desata quando a acusação seja de genocídio, ou quando, na ocasião ou motivação de outro delito de que seja índio o agente ou a vítima, tenha havido disputa sobre direitos indígenas, não bastando seja aquele imputado a silvícola, nem que este lhe seja vítima e, tampouco, que haja sido praticado dentro de reserva indígena." (STF, RE 419.528, Rel. p/ acórdão Ministro CEZAR PELUSO, PLENO, DJU de 09/03/2007, p. 26).III. Caso é de aplicação da Súmula 140/STJ: "Compete a Justiça Comum estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima." IV. Conflito conhecido, para declarar competente o Juízo de Direito da Comarca de Coronel Bicaco/RS, o suscitado.(CC 38.517/RS, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/10/2012, DJe 31/10/2012)
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. DELITO DE HOMICÍDIO PRATICADO CONTRA ÍNDIO. MOTIVAÇÃO VINCULADA À DISPUTA POR DIREITOS DE PESCA EM REGIÃO PRÓXIMA À ALDEIA INDÍGENA. INTERESSE DE TODA A COMUNIDADE INDÍGENA. ART. 109, XI, E ART. 231 DA CF. NÃO INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 140/STJ. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
- O enunciado n. 140 da Súmula do STJ dispõe que compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima. Entretanto, nos casos em que o crime extrapola o interesse individual, ligando-se à disputa sobre direitos indígenas, a competência passa a ser da Justiça Federal, em observância ao art. 109, XI, da Constituição Federal.
- A denúncia narra que o homicídio foi cometido em razão de uma disputa entre os denunciados e os índios ARARAS pelo direito de pesca próximo à aldeia indígena, localizada na Reserva Indígena de Cachoeira Seca. Afirma-se que os índios apreenderam alguns instrumentos dos denunciados (pescadores) no dia 13/5/2000, pela manhã. No mesmo dia, à tarde, a vítima foi pescar sozinha próximo ao local do conflito, ocasião em que teria sido assassinada pelos pescadores, como forma de se vingarem dos índios daquela tribo.
- O direito de pesca naquela região interessa a toda a comunidade indígena, pois diz respeito à própria subsistência do grupo, que vive, principalmente, da caça e da pesca. O índio Karajá agiu, juntamente com outros membros da tribo, na defesa desse direito e, em contrapartida, foi assassinado pelos pescadores, segundo a denúncia. A motivação do delito, portanto, não se restringe ao interesse privado individual, alcançando direitos indígenas previstos no art. 231 da Constituição Federal, o que atrai a competência da Justiça Federal.
Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal da Vara de Santarém-PA.(CC 129.704/PA, Rel. Ministra MARILZA MAYNARD (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/SE), TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/03/2014, DJe 31/03/2014)
Ante o exposto, é forçoso afirmar que o legislador constituinte atento à necessidade de respeito à diversidade étnica que compõe a sociedade brasileira, e notadamente à garantia dos direitos dos povos indígenas, para os quais dedicou um capítulo inteiro, elencou como prerrogativa desses povos a competência da Justiça Federal para processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas seja em matéria cível ou criminal.
Deixe-se claro, mais uma vez, que não é a pessoa do índio que atrai essa competência, mas a existência de lide em razão dos direitos indígenas que são aqueles constantes do art. 231 da Constituição e os que lhes são reconhecidos por força de normas internacionais.Dessa forma, o norte exegético para a fixação da competência criminal é o motivo que ensejou a prática delituosa, de modo que merece crítica a redação da Súmula nº 140 do Superior Tribunal de Justiça, a qual, a despeito de ter sido editada na vigência da Constituição de 1988, olvidou-se da necessidade de registrar a disputa sobre direitos indígenas como exceção a sua aplicação, merecendo cancelamento ou nova redação, a fim de contemplar a previsão constitucional.
[1]ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Arts. 231 e 232, in BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura. Comentários à Constituição Federal de 1988. São Paulo: Forense, 2009, p. 2403-2404.
[2]VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2009, p. 304.
[3] MACHADO, Antônio Alberto. Curso de Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 318.
[4] Precedentes extraídos de http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/doc.jsp?livre=@num=%27140%27.
Procurador Federal e Coordenador de Assuntos Contenciosos da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Ex-Procurador do Estado da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Lívio Coêlho. Disputa sobre direitos indígenas, competência criminal e súmula nº 140 do Superior Tribunal de Justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 dez 2014, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42478/disputa-sobre-direitos-indigenas-competencia-criminal-e-sumula-no-140-do-superior-tribunal-de-justica. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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