01. INTRODUÇÃO
Frequentemente as bancas de concursos públicos no país se deparam com situações de candidatos pleiteando a concorrência de vagas na condição de deficiente físico, sendo estas instituições as primeiras analisar acerca da possibilidade ou não de determinado candidato concorrer às vagas especiais.
Em razão disso, chegou ao Poder Judiciário a discussão sobre a possibilidade ou não das pessoas portadoras de surdez unilateral concorrerem às vagas destinadas aos deficientes físicos nos concursos públicos, tendo se alterado o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema, motivo pelo qual se impõe a discussão do assunto nestas breves linhas.
02. DESENVOLVIMENTO
Em razão de previsão constitucional, o ordenamento jurídico brasileiro impôs um mandado de realização de política pública afirmativa em relação aos deficientes físicos, determinando que a Administração reserve percentual dos cargos públicos e empregos públicos para serem preenchidos por pessoas portadoras de deficiência física. Dessa forma, determinou o art. 37, VIII, da CF/88:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
VIII - a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;
Nessa toada, com o intuito de conferir efetividade ao mandamento constitucional, concretizando uma igualdade substancial entre as pessoas para o acesso aos cargos públicos, a Lei 8.112/90, previu em seu art. 5º, §2º, que “às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras..”.
Positivou-se no ordenamento jurídico brasileiro a obrigatoriedade de reserva de vagas nos concursos públicos destinadas à concorrência apenas pelos deficientes físicos, vindo esta norma ao encontro da determinação do art. 7º, XXXI, da CF/88,o qual proíbe qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência.
Garantido o direito aos deficientes físicos em concorrerem às vagas especiais, para materialização da regra restava definir o que se entende por deficiente físico, o que ficou estabelecido pelo Decreto nº 3.298/99 (alterado posteriormente pelo Decreto nº 5.296/2004). Esse decreto regulamenta a Lei 7.853/1989, a qual dispõe sobre a Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência.
No que diz respeito à deficiência auditiva, o Decreto nº 3.298/99 estatui que considera-se deficiente físico a pessoa que apresente “perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz”.
Com base nessa definição, as bancas de concurso público costumavam proferir pareceres não considerando o caso de surdez unilateral como situação de deficiência física. Tais manifestações da Administração são proferidas quando análise das equipes médicas identificam nos candidatos perdas auditivas em níveis inferiores aos previstos no art. 4º, II, do Decreto nº 3.298/99 (redação conferida pelo Decreto nº 5.296/2004).
Ocorre que os candidatos a concursos públicos portadores de surdez em apenas um dos ouvidos, inconformados com a negativa da Administração Pública em considerá-los deficientes físicos para fins de concorrência às vagas especiais em concurso público, recorreram ao Poder Judiciário para fazer valer o seu direito. Nesse ponto, é preciso mencionar que centenas de ações chegaram ao Poder Judiciário a respeito desse tema, o que evidencia a importância da questão discutida, dada a multiplicidade das hipóteses de ocorrência.
Não tardou para a questão chegar até os Tribunais do país, tendo muitos deles se manifestado acerca do enquadramento como deficiente físico dos portadores de surdez unilateral. Para decidir nessa linha, os Tribunal Regional Federal da 1ª Região realizou uma interpretação sistemática do dispositivo do inciso II do art. 4º do Decreto 3.298/99 em cotejo com a Lei 7.853/89, a Constituição Federal e convenções internacionais, considerando que o conceito de deficiência auditiva deve levar em conta as perdas sensoriais que levem à incapacidade para o desempenho de atividade dentro de padrão considerado normal para o ser humano. Veja-se julgado desse Tribunal:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CARGO DE ANALISTA DO MPU. SURDEZ UNILATERAL. ANACUSIA À DIREITA. DEFICIÊNCIA AUDITIVA CARACTERIZADA. VAGA DESTINADA A PORTADOR DE NECESSIDADES ESPECIAIS. ARTS. 3º E 4º DO DECRETO Nº 3.298/1999. POSSIBILIDADE. SENTENÇA REFORMADA. 1. A Lei n. 7.853/1989, que estabelece a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, regulamentada pelo Decreto n. 3.298/1999, materializou o direito à inclusão social das pessoas portadoras de deficiência no mercado de trabalho ou sua incorporação ao sistema produtivo mediante regime especial de trabalho protegido, objetivando dar eficácia plena ao comando da Constituição da República Federativa do Brasil, que garante a todos o acesso aos cargos públicos, devendo o Estado efetivar esse direito mediante a garantia de reserva de percentual de vagas (CF, art. 37, inciso VIII). 2. A jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça e desta Corte é no sentido de que o inciso II do artigo 4º do Decreto n. 3.298/1999 deve ser interpretado em consonância com o conceito legal de deficiência, previsto no artigo 3º, I, do referido Decreto, que define deficiência como toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano. 3. No caso, candidato portador de deficiência auditiva com perda total no ouvido direito - anacusia unilateral à direita -, tem direito à vaga reservada para pessoas portadoras de deficiência. 4. Afigura-se ilegal, passível de correção pela via mandamental, o ato da autoridade coatora que não considerou comprovada a condição de deficiente físico da impetrante, excluindo-a do concurso público para os cargos de Analista e de Técnico do Ministério Público da União, nas vagas destinadas aos portadores de deficiência física. 5. Apelação a que se dá provimento. Sentença reformada.
(AMS 0059416-64.2010.4.01.3400 / DF, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL NÉVITON GUEDES, QUINTA TURMA, e-DJF1 p.74 de 30/10/2014)
Contudo, em recente julgado, o Superior Tribunal de Justiça curvou-se ao entendimento do Supremo Tribunal Federal (AgRg no MS 29.910, Rel. Min. Gilmar Mendes) que decidira pela impossibilidade de enquadramento da surdez unilateral como deficiência física. No ponto, transcreve-se a ementa doacórdão do STJ que viabilizou a mudança jurisprudencial:
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. CONCURSO PÚBLICO. CONCEITO DE DEFICIENTE AUDITIVO. DECRETO 3.298/99 ALTERADO PELO DECRETO 5.296/2004. APLICAÇÃO AO EDITAL COM AMPARO NORMATIVO. JURIDICIDADE.PRECEDENTE DO STF. DIVERGÊNCIA FÁTICA QUE DEMANDARIA DILAÇÃO PROBATÓRIA. PRECEDENTES. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.
1. Cuida-se de writ of mandamus impetrado contra o Ministro Presidente do Superior Tribunal de Justiça e o Diretor Geral do Centro de Promoção de Eventos da Universidade de Brasília (CESPE - UnB), no qual candidata em concurso público, portadora de surdez unilateral, alega que deveria ser enquadrada na qualidade de deficiente físico, por interpretação sistemática dos arts. 3º e 4º do Decreto n. 3.298/99 em cotejo com a Constituição Federal e convenções internacionais.
2. O Decreto n. 5.296/2004 alterou a redação do art. 4º, II, do Decreto n. 3.298/99 e excluiu da qualificação "deficiência auditiva" os portadores de surdez unilateral; a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal frisou a validade da referida alteração normativa.
Precedente: AgRg no MS 29.910, Relator Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, Processo Eletrônico, divulgado no DJe 146 em 29.7.2011 e publicado em 1º.8.2011.
3. A junta médica tão somente emitiu laudo técnico em sintonia com as previsões do Edital 1 - STJ, de 8.2.2012, cujo teor meramente remete ao Decreto n. 3.298/99 e suas alterações, que foi o parâmetro do ato reputado coator, em verdade praticado sob o pálio da juridicidade estrita.
4. Para apreciar qualquer argumento no sentido de que haveria alguma incapacidade diversa da impetrante em prol de a alocar na qualidade de deficiente auditiva seria imperioso realizar contraditório e dilação probatória, providências vedadas em sede de rito mandamental. Precedente específico: AgRg na AO 1622/BA, Relator Min.
Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 21.6.2011, publicado no DJe - 125 em 1º.7.2011 e no Ement. vol. 2555-01, p. 1. No mesmo sentido: AgRg no RMS 33.928/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 27.10.2011.
Segurança denegada.
(MS 18.966/DF, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, Rel. p/ Acórdão Ministro HUMBERTO MARTINS, CORTE ESPECIAL, julgado em 02/10/2013, DJe 20/03/2014)
A perda auditiva unilateral, doravante, não é mais considerada deficiência auditiva capaz de conferir aos seus portadores o direito à concorrência em vagas de concurso público destinadas aos portadores de necessidades especiais. Como o STJ mudou o seu entendimento jurisprudencial, sendo esta corta a responsável pela uniformização da interpretação da legislação federal, nota-se já a importância desse julgado na consolidação de um entendimento definitivo sobre o tema, dado o magnetismo judicial inerente às decisões proferidas por essa Corte Superior.
Como exemplo desse magnetismo judicial, constata-se desde já que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região já tem prestado reverência à nova posição hermenêutica adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, salientando a mudança de entendimento acerca dos contornos do art. 4º, II, do Decreto nº 3.298/99, in verbis:
APELAÇÃO CÍVEL. REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CONCEITO DE DEFICIENTE AUDITIVO. DECRETO 3.298/99 ALTERADO PELO DECRETO 5.296/2004. SURDEZ UNILATERAL. IMPOSSIBILIDADE DE CONCORRÊNCIA ÀS VAGAS RESERVADAS AOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA. JULGAMENTO NO STJ. MS 18966/DF. SENTENÇA REFORMADA. 1. Em recente julgamento no Superior Tribunal de Justiça - STJ, nos autos do MS 18966/DF, a Corte Especial adotou novo entendimento no sentido de que "O Decreto n. 5.296/2004 alterou a redação do art. 4º, II, do Decreto n. 3.298/99 e excluiu da qualificação "deficiência auditiva" os portadores de surdez unilateral; a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal frisou a validade da referida alteração normativa. Precedente: AgRg no MS 29.910, Relator Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, Processo Eletrônico, divulgado no DJe 146 em 29.7.2011 e publicado em 1º.8.2011." 2. Na hipótese, restou comprovado nos laudos médicos constantes dos autos que o/a impetrante possui perda auditiva unilateral. 3. Considerando-se a nova redação do art. 4º, II, do Decreto n. 3.298/99, que fixou conceito jurídico mais restrito de deficiente auditivo, não é possível enquadrar o/a requerente, portador/a de perda auditiva unilateral, como candidato/a portador/a de deficiência em concursos públicos. 4. Apelação e remessa oficial a que se dá provimento para, reformando a sentença, denegar a segurança, reconhecendo como válido o ato de exclusão do/a impetrante da lista de classificação de aprovados nas vagas destinadas aos portadores de deficiência do concurso.
(AMS 0043510-29.2013.4.01.3400 / DF, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL KASSIO NUNES MARQUES, SEXTA TURMA, e-DJF1 p.110 de 20/11/2014).
3. DA CONCLUSÃO
Conforme visto acima, atualmente, o Superior Tribunal de Justiça reviu a sua jurisprudência e passou a considerar que o portador de surdez unilateral não pode ser considerado deficiente físico para fins de concorrer às vagas destinadas aos portadores de necessidades especiais em concurso público.
Observa-se dos julgados que a nova posição do STJ foi engendrada com fundamento em acórdão do STF nos autos do AgRg no MS 29910/DF, que decidiu que somente é possível considerar como deficiência auditiva a surdez bilateral nos níveis superiores aos previstos no art. 4º, II, do Decreto nº 3.298/99.
Resta aguardar se o tema será novamente levado à discussão nos tribunais pátrios para que a interpretação do Decreto nº 3.298/99 seja feita não somente em cotejo com a Lei 7.853/89 e a Constituição Federal, mas também levando-se em consideração o texto da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada no ordenamento jurídico nacional por meio do Decreto nº 6.949/2009 com status de norma constitucional nos moldes do art. 5º, §3º, da Constituição da República.
4. REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 13.12.2014.
BRASIL. Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7853.htm>. Acesso em 13.12.2014.
BRASIL. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm>. Acesso em 13.12.2014.
BRASIL. Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm>. Acesso em 13.12.2014.
BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm>. Acesso em 13.12.2014.
MOTTA, Fabrício. A Reserva de Vagas nos Concursos Públicos para os Portadores de Deficiência: análise do art. 37, inc. VIII, da Constituição Federal. In MOTTA, Fabrício (Coord). Concurso Público e Constituição. Belo Horizonte: Fórum, 2005.
Procurador Federal atuante na Procuradoria-Federal em Goiás, órgão de execução da Advocacia-Geral da União. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade de Brasília - UnB. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás - UFG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Victor Nunes. A surdez unilateral e a impossibilidade de acesso aos cargos públicos nas vagas de portadores de necessidades especiais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42551/a-surdez-unilateral-e-a-impossibilidade-de-acesso-aos-cargos-publicos-nas-vagas-de-portadores-de-necessidades-especiais. Acesso em: 22 nov 2024.
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