Resumo: No presente artigo, busca-se analisar, de forma sucinta, a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância no delito de descaminho, tipificado no artigo 334 do Código Penal, bem como apreciar o entendimento e parâmetros estabelecidos pelos Tribunais Superiores para a incidência do mencionado princípio.
Palavras-chave: Princípio da insignificância. Descaminho. Supremo Tribunal Federal. Superior Tribunal de Justiça.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
É senso comum afirmar que o Direito Penal constitui-se em ultima ratio. Isto é a tutela penal deve ser o último instrumento a ser utilizado para a proteção dos bens jurídicos, na medida em que busca a proteção apenas dos bens jurídicos mais relevantes. É patente, assim, o caráter fragmentário do Direito Penal. E dessa fragmentariedade decorre o princípio da insignificância, uma vez que o Direito Penal não deve se ocupar de crimes bagatelares. Hodiernamente firmou-se entendimento no sentido da aplicabilidade do princípio da insignificância em delitos tributários e, mais especificamente ao que se refere o objeto do presente estudo, no delito de descaminho.
Desse modo, cumpre inquirir os requisitos exigidos à aplicabilidade do princípio da insignificância de acordo com a jurisprudência dos Tribunais Superiores, bem como verificar especificamente os pressupostos de sua aplicabilidade em relação aos crimes de descaminho.
1 - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA: CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO
O princípio da insignificância, ao contrário do afirmado por parte da doutrina no sentido de que sua origem remontaria ao período romano, foi cunhado por Claus Roxin no ano de 1964. Com efeito, o autor alemão buscou aperfeiçoar ou incrementar a teoria da adequação social elaborado por Hans Welzel, visando a uma sistematização do princípio para defender a exclusão da tipicidade em casos de lesão ínfima ao bem jurídico tutelado.
Nesse sentido, merecem transcrição as palavras de Roxin acerca do referido princípio:
“[...] hacen falta principios como el introducido por Welzel, de la adecuación social, que no es una característica del tipo, pero sí un auxiliar interpretativo para restringir el tenor literal que acoge también formas de conductas socialmente admisibles. A esto pertenece además el llamado principio de la insignificancia, que permite em la mayoria de los tipos excluir desde un princpipio daños de poc importância: maltrato no se cualquier tipo de daño de la integridad corporoal, sino solamente uno relevante; análogamente desonesto en el sentido del Código Penal es sólo la acción sexual de una cierta importância, injuriosa en una forma delictiva es sólo la lesión grave a la pretensión social de respeto. Como 'fuerza' debe considerarse únicamente un obstáculo de cierta importância. Igualmente también la amenaza debe ser 'sensible' para pasar el umbral de la criminalidad. Si com este planteamientos se organizara de nuevo consecuentemente la instrumencación de nuestra interpretación del tipo, se lograría, además de una mejor interpretación, una importante aportación para reducir la criminalidade en nuestro país”.
Portanto, não cabe ao Direito Penal ocupar-se de delitos de pouca monta ou de lesão ínfima ao bem jurídico tutelado. Entretanto, vale ressaltar que não são apenas delitos patrimoniais que admitem a incidência do princípio consoante a clássica lição de Roxin supra transcrita, o que leva parte da doutrina a afirmar a subjetividade do critério para sua aplicação. Nesse sentido, observe-se o escólio de Rogério Greco:
Alguns poderão dizer que é muito subjetivo o critério para que se possa concluir se o bem atacado é insignificante ou não. E realmente o é. Teremos, outrossim, de lidar ainda com o conceito de razoabilidade para podermos chegar à conclusão de que aquele bem não mereceu a proteção do Direito Penal, posto que inexpressivo.
Diante disso, e apesar da ausência de sua previsão legal no ordenamento brasileiro, o Supremo Tribunal Federal buscou estabelecer alguns critérios, ditos objetivos, para delimitar a aplicação do mencionado princípio. Assim, de acordo com o Pretório Excelso para a incidência do princípio da insignificância devem ser considerados os seguintes requisitos: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; c) ausência de periculosidade social da ação; d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Para ilustrar tal entendimento, observe-se a seguinte ementa de julgado exarado pelo STF:
O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.(HC-84.412/SPRel. Min. Celso de Melo, 2ª Turma, julgado em 19/10/2004, DJ, 19/11/2004)
Tal entendimento é sufragado também pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Contudo, ambos tribunais rechaçam a aplicabilidade de tal princípio quando presentes circunstâncias subjetivas desfavoráveis, tais como a reincidência ou habitualidade na conduta criminosa. Nesse sentido, observe-se excerto de alguns arestos:
[...] A reiteração delitiva, comprovada pela certidão de antecedentes criminais do paciente, impossibilita a aplicação do princípio da insignificância. [...] STF. 1ª Turma. HC 109705, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 22/04/2014.
[...] Sentenciados reincidentes na prática de crimes contra o patrimônio. Precedentes do STF no sentido de afastar a aplicação do princípio da insignificância aos acusados reincidentes ou de habitualidade delitiva comprovada. [...] (STF. 2° Turma. HC 117083, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 25/02/2014).
"o princípio da insignificância não foi estruturado para resguardar e legitimar constantes condutas desvirtuadas, mas para impedir que desvios de condutas ínfimas, isoladas, sejam sancionados pelo direito penal, fazendo-se justiça no caso concreto. Comportamentos contrários à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devido a sua reprovabilidade, perdem a característica de bagatela e devem se submeter ao direito penal" (STF. 1ª Turma. HC 102.088/RS, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 21/05/2010).
Apesar de não configurar reincidência, a existência de outras ações penais ou inquéritos policiais em curso é suficiente para caracterizar a habitualidade delitiva e, consequentemente, afastar a incidência do princípio da insignificância. No caso, há comprovação da existência de outros inquéritos policiais em seu desfavor, inclusive da mesma atividade criminosa. [...](AgRg no AREsp 332.960/PR, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 22/10/2013)
[...] A reincidência específica é prognóstico de risco social, recaindo sobre a conduta do acusado elevado grau de reprovabilidade, o que impede a aplicação do princípio da insignificância. [...] (STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 487.623/ES, julgado em 18/06/2014).
Portanto, observa-se a plena aplicabilidade do princípio da insignificância no ordenamento brasileiro, não obstante o seu delineamento e pressupostos decorram de construção pretoriana e jurisprudencial, visto que não encontra previsão legal.
2 – A aplicabilidade do princípio da insignificância ao delito de descaminho: pressupostos objetivos
Analisada a plena vigência do princípio da insignificância em nosso ordenamento, cabe verificar a sua incidência de tal princípio especificamente no que refere à pratica do delito de descaminho e mais precisamente os critérios objetivos construídos pela jurisprudência dos tribunais superiores para sua incidência.
De início, vale salientar que o delito de descaminho encontra previsão no artigo 334 do Código Penal, em redação alterada recentemente, que assim expressa:
Descaminho
Art. 334. Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
§ 1o Incorre na mesma pena quem: (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
I - pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei; (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
II - pratica fato assimilado, em lei especial, a descaminho; (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
III - vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem; (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
IV - adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos. (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
§ 2o Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências. (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
§ 3o A pena aplica-se em dobro se o crime de descaminho é praticado em transporte aéreo, marítimo ou fluvial. (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
A conduta descrita no verbo do tipo consiste em iludir o pagamento de tributo e embora sua previsão no capítulo destinados aos crimes contra a administração pública praticados por particulares do Código Penal é assente o reconhecimento da natureza tributária do delito. Trata-se de prática muito comum em regiões de fronteira, praticada por “sacoleiros”. Paira certa polêmica na doutrina acerca da necessidade do emprego de fraude ou malícia para adequação típica da conduta ao artigo 334 do Código Penal. No sentido de que basta a omissão no recolhimento do tributo é o entendimento de José Paulo Baltazar Jr., veja-se:
O verbo iludir tem aqui o sentido de deixar de pagar o tributo devido pela importação, frustrando a fiscalização mediante ação ou omissão […]. Como se vê, uma das muitas acepções do verbo é frustar o pagamento, simplesmente deixar de pagar. Noto ainda que a lei se refere a iludir o pagamento, e não a fiscalização.
Em sentido contrário, isto é, no sentido da necessidade de emprego de alguma espécie de fraude ou ardil para a consumação do delito de descaminho é o entendimento de Fernando Capez:
Não basta a entrada ou saída de mercadoria sem o recolhimento do imposto devido, sendo necessário o emprego de algum meio, fraudulento ou não, destinado a iludir, que significa enganar, frustrar, lograr, burlar, não sendo suficiente a mera omissão no recolhimento do tributo. Tivesse a lei empregado o termo elidir, que significa suprimir, aí sim seria suficiente o comportamento omissivo. Não é o caso, conduto, do delito em questão, de modo que o inadimplemento caracteriza o mero débito de natureza fiscal.
É este também, aparentemente, o entendimento perfilhado pelo STJ:
[…] A fraude pressuposta pelo tipo, ademais, denota artifícios mais amplos para a frustração da atividade fiscalizadora do Estado do que o crime de sonegação fiscal, podendo se referir tanto à utilização de
documentos falsificados, quanto, e em maior medida, à utilização de rotas marginais e estradas clandestinas para sair do raio de visão das barreiras alfandegárias [...] (STJ. 5ª Turma. REsp 1376031/PR, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 04/02/2014)
O bem jurídico tutelado é o interesse do Estado na arrecadação do tributo e por se tratar de delito comum pode ser praticado por qualquer pessoa. O sujeito passivo, obviamente, é o Estado. Além disso, é importante destacar que o delito de descaminho é delito formal, razão pela qual a ele não se aplica a súmula vinculante n. 24, que exige a constituição definitiva do débito tributários para crimes tributários de natureza material, muito embora a decisão administrativa possa vir a repercutir no processo de apuração da prática do delito no teor do que preceitua o artigo 93 do Código de Processo Penal.
Porém não cabe nos limites estreitos do presente trabalho apreciar tais implicações do delito de descaminho, mas sim verificar o critério objetivo definido nos tribunais superiores para a aplicabilidade princípio da insignificância, tendo em vista o posicionamento tranquilo da jurisprudência acerca de tal possibilidade, desde que atendidos também os critérios subjetivos referidos alhures.
A polêmica em torno da aplicabilidade de tal princípio reside no valor total de tributos iludidos que serviriam como limite para insignificância. A jurisprudência por encarar o descaminho como um crime de natureza tributária passou a adotar os valores definidos em normas da administração tributária como parâmetro para definir o limite do montante de tributos iludidos para o reconhecimento da insignificância. De início, considerava-se o valor de R$ 1.000,00, por força da redação do artigo 1º da Lei 9.469/97 e artigo 20 da MP 1.542-28/97, sendo que, posteriormente, o patamar passou para R$ 2.500,00 (MP 2.176-79/2001, artigo 20). Ocorre que tal valor passou a ser de R$ 10.000,00, com fulcro na redação do artigo 20 da Lei 10522/2002, na redação dada pela Lei 11.033/2004, que determina o arquivamento das execuções fiscais cujo valor consolidado for igual ou inferior a R$ 10.000,00. Em outros termos, a Lei determina que, até o valor de 10 mil reais, os débitos inscritos como Dívida Ativa da União não serão executados. Segundo a jurisprudência, não há sentido lógico permitir que alguém seja processado criminalmente pela falta de recolhimento de um tributo que nem sequer será cobrado no âmbito administrativo-tributário, pois caso contrário o Direito Penal deixaria de ser a ultima ratio.
Contudo, o limite referido, por força da Portaria 75 do Ministério da Fazenda, publicada em 26/03/2012, elevou o referido limite para R$ 20.000,00, sendo que tal patamar estabeleceu uma cisão no entendimento dos Tribunais Superiores, que anteriormente perfilhavam o mesmo caminho, isto é, adotavam o patamar de R$ 10.000,00.
Com efeito, o STF passou a adotar o patamar de R$ 20.000,00, enquanto que o STJ, mesmo posteriormente à manifestação do Pretório Excelso no sentido mencionado, manteve o patamar de R$ 10.000,00. Nesse contexto, transcrevem-se os seguintes arestos que estampam tais posicionamentos:
EMENTA HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. DESCAMINHO. VALOR INFERIOR AO ESTIPULADO PELO ART. 20 DA LEI 10.522/2002. PORTARIAS 75 E 130/2012 DO MINISTÉRIO DA FAZENDA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. ORDEM CONCEDIDA. 1. A pertinência do princípio da insignificância deve ser avaliada considerando-se todos os aspectos relevantes da conduta imputada. 2. Para crimes de descaminho, considera-se, para a avaliação da insignificância, o patamar de R$ 20.000,00, previsto no art 20 da Lei n.º 10.522/2002, atualizado pelas Portarias 75 e 130/2012 do Ministério da Fazenda. Precedentes. 3. Na espécie, aplica-se o princípio da insignificância, pois o descaminho envolveu elisão de tributos federais que perfazem quantia inferior ao previsto no referido diploma legal. 4. Ordem concedida. (STF HC 120617, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 04/02/2014)
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME DE DESCAMINHO. ART. 334, DO CP. ARMA DE AR COMPRIMIDO E MUNIÇÕES. INTERNALIZAÇÃO SEM AUTORIZAÇÃO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. TRIBUTO ILIDIDO AQUÉM DO PATAMAR PREVISTO EM LEI E APRECIADO PELO STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. A Terceira Seção desta Corte Superior, no julgamento do REsp nº
1.112.748/TO, representativo da controvérsia, firmou o entendimento
de que é possível a aplicação do princípio da insignificância ao delito previsto no art. 334, do Código Penal, desde que o total do tributo ilidido não ultrapasse o patamar de R$ 10.000,00 (dez mil reais) previstos no art. 20, da Lei nº 10.522/02.
2. O delito de introdução clandestina de arma de ar comprimido e suas munições configura descaminho, pois tais artefatos são de uso permitido, nos termos do art. 17, do Decreto nº 3.665/00.
3. Viável a aplicação do princípio da insignificância, considerando o limite estabelecido pelo art. 20, da Lei nº 10.522/02, e pela jurisprudência desta Corte Superior.
4. Agravo regimental não provido. (STJ AgRg no REsp 1428637/RS, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 10/06/2014)
Destarte, percebe-se que de acordo com o entendimento do STF o teor da Portaria 75/2012 do Ministério da Fazenda produz efeitos penais. Por sua vez, o STJ entende que o valor definido pela Administração para não ajuizamento de execução fiscal não pode condicionar a esfera penal, bem como sustenta que um ato infralegal, portaria, não detém força normativa suficiente para a modificação de lei em sentido formal (Lei 10.522/2002).
CONCLUSÃO
Diante do quadro supra esposado, verifica-se que a jurisprudência do STF sufraga o entendimento no sentido de que as normas legais e infralegais que dispensam o ajuizamento de execução fiscal pela administração tributária devem servir como parâmetro objetivo na definição do limite para a aplicabilidade da insignificância no delito de descaminho. Por sua vez, o STJ resiste na adoção do patamar de R$ 20.000,00, para estabelecer o patamar de R$ 10.000,00 como limite ao reconhecimento da insignificância. Todavia, embora concorde-se com a impossibilidade da adoção do patamar de R$ 20.000,00 observa-se certa contradição nos fundamentos suscitados pelo STJ, uma vez que não seguir os critérios para a dispensa de ajuizamento de execução fiscal significaria rejeitar até mesmo o patamar de R$ 10.000,00.
Noutro giro, pode-se afirmar que tanto o STF, quanto o STJ, olvidando-se, ainda que de forma consciente, de que o não ajuizamento da execução fiscal não significa qualquer espécie de remissão de débito, mas apenas que o procedimento de cobrança judicial ficará suspenso até que se venha atingir o montante equivalente ao valor de R$ 20.000,00. A baixa na distribuição do débito reconhecido só ocorre para valores inferiores a R$ 100,00, de modo que seria este o valor reconhecido como “insignificante” pela Administração. Qualquer valor acima disso é reconhecido como relevante, apenas por discricionariedade, ainda que regrada, pois de acordo com atos normativos, opta-se pelo não ajuizamento de execução fiscal, que por sua vez compreende um processo moroso e custoso. Nesse contexto, entende-se que o reconhecimento da insignificância nos patamares referidos acima, e sobretudo o limite adotado pelo Pretório Excelso, estão dissociados da realidade subjacente à sociedade brasileira. Ora, o valor de R$ 20.000,00, em tributos não recolhidos e não em valor de mercadorias, que são, portanto, superiores a tal quantia, não podem ser considerados como insignificantes. Ainda, condicionar a aplicação deste princípio à dispensa da execução fiscal não é adequado à tutela do bem jurídico protegido.
Deve-se destacar que a própria jurisprudência dos tribunais superiores admite que não se aplicam os patamares já mencionados em caso de tributos estaduais, mas apenas para tributos federais, in verbis:
4. Para a aplicação do referido entendimento aos tributos que não sejam da competência da União, seria necessária a existência de lei estadual no mesmo sentido, até porque à arrecadação da Fazenda Nacional não se equipara a das Fazendas estaduais. Precedentes e doutrina.
5. Inviável a aplicação do referido entendimento ao caso em análise, no qual o paciente foi denunciado por, em tese, suprimir o valor de R$ 819,00 (oitocentos e dezenove reais) de Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), de competência dos estados, de acordo com o art. 155, II, da Constituição Federal.
6. Um dos requisitos indispensáveis à aplicação do princípio da insignificância é a inexpressividade da lesão jurídica provocada, que pode se alterar de acordo com o sujeito passivo, situação que reforça a impossibilidade de se aplicar referido entendimento de forma indiscriminada à sonegação dos tributos de competência dos diversos entes federativos da União. […] STJ. 6ª Turma. HC 165003/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 20/03/2014.
Em primeiro lugar, concorda-se com o argumento no sentido de que os patamares adotados pelo STF e STJ não são inexpressivos, o que, conforme já analisado, compreende um dos requisitos para a aplicabilidade. Contudo, não se pode concordar que a expressividade da lesão varia de acordo com o sujeito passivo. A prevalecer tal entendimento um furto de bem valiosíssimo de propriedade de um milionário seria insignificante, enquanto o furto de pouca monta de um cidadão menos afortunado não seria. Ora, para aplicabilidade do princípio da insignificância deve-se considerar os padrões objetivos vigente na sociedade hodierna e não conforme relativismos variáveis de acordo com a condição do sujeito passivo. E consoante exposto no presente texto, o entendimento do STF e STJ criam distorções entre os entes federativos, pois em face da União o patamar de R$ 20.000,00 pode ser considerado insignificante, enquanto que para os Estados a insignificância não ultrapassa R$ 800,00.
Sendo assim, além de tal incoerência, tem-se que os patamares analisados para o reconhecimento da insignificância não contribuem para a efetiva tutela do bem jurídico, correspondendo a verdadeira proteção deficiente (untermassverbot), ferindo uma das facetas do princípio da proporcionalidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes Federais. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – parte especial. Vol. 4. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 15 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013.
ROXIN, Claus. Política criminal y sistema del derecho penal.Trad. Fracisco Muñoz Conde. Barcelona, 1972 apud TOLEDO, Francisco Assis. Princípios Básicos do Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 487.623/ES, julgado em 18/06/2014
____. 5ª Turma. REsp 1376031/PR, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 04/02/2014
_____. AgRg no REsp 1428637/RS, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 10/06/2014
_____. 6ª Turma. HC 165003/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 20/03/2014
STF. HC-84.412/SPRel. Min. Celso de Melo, 2ª Turma, julgado em 19/10/2004, DJ, 19/11/2004.
____. 1ª Turma. HC 102.088/RS, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 21/05/2010
____. HC 120617, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 04/02/2014
Bacharel em Direito pelo UNIRITTER/RS. Procurador Federal. Especialista em Direito Público pela UnB/CEAD.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DALMAS, Samir Bahlis. Os critérios para a aplicabilidade do Princípio da insignificância no delito de descaminho Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42558/os-criterios-para-a-aplicabilidade-do-principio-da-insignificancia-no-delito-de-descaminho. Acesso em: 22 nov 2024.
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