RESUMO:o texto analisa a ideia de democracia no texto O futuro da democracia de Norberto Bobbio, que ao discorrer sobre o estado atual dos regimes democráticos, apresenta as transformações da democracia sob a forma de “promessas não cumpridas”. Aponta o contraste entre a democracia ideal, tal como concebia por seus fundadores e a democracia real, a matéria bruta, tal como é, em que, com maior ou menor participação o cidadão vive cotidianamente, buscando, ao fim, um cuidadoso prognóstico sobre o seu futuro.
Palavras-chaves: Democracia – Democracia ideal – Democracia real – Bobbio.
INTRODUÇÃO
O trabalho de conclusão de curso objetiva apresentar as leituras efetuadas na disciplina Filosofia Política do Programa de Mestrado em Direito do UniCEUB e meus entendimentos e compreensões sobre os textos lidos e discutidos em sala de aula.
A matéria desenvolveu uma análise crítica acerca da democracia. Para tanto, foram feitas leituras que apresentam a formação ao longo o tempo do ideal democrático, sentidos do conceito de democracia, bem como o contraste entre a democracia ideal e a prática democrática e os seus dilemas e dificuldades.
Inicialmente, foi apresentada a ideia de democracia no texto O futuro da democracia de Norberto Bobbio, que ao analisar o estado atual dos regimes democráticos, verifica as transformações da democracia sob a forma de “promessas não cumpridas”. Apresenta o contraste entre a democracia ideal, tal como concebia por seus fundadores e a democracia real, a matéria bruta, tal como é, em que, com maior ou menor participação o cidadão vive cotidianamente, buscando, ao fim, um cuidadoso prognóstico sobre o seu futuro.
DESENVOLVIMENTO
Na obra O futuro da democracia, Norberto Bobbio busca fazer algumas observações sobre o estado atual dos regimes democráticos, analisa as transformações da democracia sob a forma de “promessas não cumpridas” ou de contraste entre a democracia ideal, tal como concebia por seus fundadores e a democracia real, a matéria bruta, tal como é, em que, com maior ou menor participação o cidadão vive cotidianamente, buscando, ao fim, um cuidadoso prognóstico sobre o seu futuro.
Inicialmente, o autor traça alguns pressupostos ou condições para uma definição mínima da democracia.
O primeiro deles, é a concepção procedimental de democracia. Para o autor, a democracia é um procedimento para a formação de decisões coletivas. Por regime democrático entende-se primariamente um conjunto de regras procedimentais (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões vinculatórias para todos os membros do grupo e com quais procedimentos. [1] Além de procedimentalista, sua doutrina democrática repousa em uma concepção individualista da sociedade. Isso porque embora admita que o homem é um ser social e que não possa viver isolado, em suas relações com a sociedade, o indivíduo se reúne a outros, semelhantes a ele, dando origem a uma sociedade de livre indivíduos.[2]
O segundo pressuposto é o direito ao voto. Bobbio entende que o estabelecimento daqueles a quem é atribuído o direito ao voto é um processo histórico, tendo o número de votantes sofrido um progressivo alargamento ao longo do tempo. No que diz respeito às modalidades de decisão, para o autor a regra fundamental da democracia é a regra da maioria, ou seja, a regra que estabelece decisões vinculatórias para todo o grupo é aquela cujas decisões são aprovadas ao menos pela maioria daqueles a quem compete tomar a decisão.
O terceiro pressuposto é que sejam assegurados direitos e garantias individuais, tipicamente liberais, aos votantes. Deve ser assegurado àqueles que decidem, que votam direitos de liberdade, de opinião, de expressão, de reunião, de live associação. Bobbio entende que o estado liberal é pressuposto não só histórico mas jurídico do estado democrático. Não obstante as diferenças entre a concepção individualista do liberalismo e da democracia[3], há uma interdependência entre o liberalismo e a democracia, eis que são necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder democrático e que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamentais.[4]
Adotados tais pressupostos, Bobbio observa que a democracia, ao contrário do despotismo, que é sempre igual em si mesmo, é dinâmica. A democracia está em permanente transformação. Entre os ideais democráticos (democracia ideal) e o que se dá no plano da realidade (democracia real) há sempre uma defasagem em relação daquilo que foi prometido e o que foi efetivamente realizado, deixando transparecer as transformações do regime sob a forma de "promessas não cumpridas", de esperanças mal respondidas, obstáculos imprevistos, ilusões perdidas. É exatamente a democracia real, essa matéria bruta, que Bobbio quer analisar: quer examinar o contraste entre o que foi prometido e o que foi efetivamente realizado. A partir daí, o autor indica seis promessas não cumpridas da democracia, que serão tratadas a seguir: o pluralismo, a representação de interesses, a persistência das oligarquias, o espaço limitado, o poder invisível, a educação para a cidadania.
Pluralismo
Como dito anteriormente, a democracia nasceu de uma concepção individualista da sociedade, segundo a qual a sociedade, em especial a política, é um produto artificial da vontade de indivíduos. Com a dissolução da concepção orgânica e amparada em eventos importantes que caracterizam a filosofia social da idade moderna (o contratutalismo, a economia política fundada em uma análise individual racional-econômica e o utilitarismo), a concepção democrática ideal imaginou um indivíduo soberano, que, entrando em acordo com outros indivíduos igualmente soberanos, criam a sociedade política, um estado sem corpos intermediários, sendo o povo soberano composto por indivíduos igualmente soberados (uma cabeça, um voto).
Contudo, na realidade, os grupos, ao invés dos indivíduos, tornaram-se os protagonistas da vida política. Grandes organizações, associações, sindicatos e não os indivíduos tornaram-se sujeitos políticos relevantes. O povo foi dividido em grupos contrapostos ou concorrentes.
O modelo ideal da sociedade democrática era fundado em apenas um centro de poder (vontade geral de Rousseau) e, por isso, seria centrípeta. Na realidade, temos uma sociedade com muitos centros de poder, centrífuga. A isso, os estudiosos da política denominam sociedade policêntrica ou poliárquica. A sociedade real é divida em grupos contrapostos ou concorrentes, com sua relativa autonomia diante do poder central e que lutam por sua supremacia.
Como salienta Bobbio, “O modelo do estado democrático fundado na soberania popular, idealizado à imagem e semelhando da soberania do príncipe, era o modelo de uma sociedade monística. A sociedade real, sotoposta aos governos democráticos, é pluralista”[5].
Temos, então, a primeira transformação da democracia real, ou a primeira promessa não cumprida, relativa à forma de distribuição do poder, decorrente da perda de potência do indivíduo soberano frente a grupos contrapostos ou concorrentes na vida política, em razão da existência de vários centros de poder na sociedade.
Representação de interesses
Em decorrência dessa primeira transformação ou promessa não cumprida, temos a segunda, relativa à representação.
A democracia dos antigos era direta, ou seja, o exercício das decisões era feito diretamente pelo cidadão, sem intermediação de terceiros. Mas isso somente era possível em sociedade pequenas e relativamente homogêneas. Com um progressivo alargamento, ao longo do tempo, do número de votantes, a democracia moderna encontrou como solução a representação política. Uma forma de representação na qual o representante é chamado a perseguir os interesses da nação, não podendo estar vinculado a um mandato.
O princípio sobre o qual se funda a representação política, com mandato livre para perseguir os interesses da nação, é contrário ao princípio sobre o qual se funda a representação dos interesses, no qual o representante deve perseguir os interesses particulares do representado, estando sujeito a um mandato vinculado (típico do contrato de direito privado que prevê a revogação por excesso de mandato).[6]
Na democracia ideal, o representante, uma vez eleito, tornar-se-ia o representante da nação e não mais representante dos eleitores que o elegeram. E, como tal, não estaria vinculado a nenhum mandato, por ser seu mandato livre, sendo vedado o mandato imperativo.
Ocorre que em uma realidade social composta por grupos relativamente autônomos que lutam por sua supremacia, para fazer valer os próprios interesses, é difícil realizar o modelo de mandato efetivamente livre. Isso porque cada grupo tende a identificar o interesse nacional com o interesse do próprio grupo, e com isso, busca, por meio do seu representante eleito, efetivar os interesses daquele grupo em detrimento a interesses de outros. Além da possibilidade de representação de interesses de grupos, podemos verificar também a representação de interesses pessoais do próprio representante. E quem representa interesses particulares (de grupos ou pessoais) tem sempre um mandato imperativo.
Bobbio fala, portanto, em uma revanche dos interesses, eis que em uma sociedade em que os grupos contrapostos ou concorrentes são protagonistas na vida política e que buscam a prevalência de seus interesses frente a outros grupos, é difícil a realização de uma representação política livre, sendo essa mais uma promessa não cumprida da democracia ideal.
Persistência das oligarquias
Bobbio considera como a terceira promessa não cumprida a derrota do poder oligárquico.
O princípio inspirador do pensamento democrático é a liberdade entendida como autonomia. Ou seja, a eliminação da tradicional distinção entre governantes e governados, a superação da ideia de distinção entre quem dá e quem recebe a regra de conduta. Seria, portanto, a capacidade de dar leis a si mesmo.[7]
Para o autor, a democracia representativa já é, por si mesma, uma renúncia ao princípio da liberdade como autonomia, eis que o representado cede parcela de sua liberdade e autonomia de decisões ao representado. Não obstante alguns vislumbrarem uma hipótese de um futuro no qual, em razão dos avanços tecnológicos, cada cidadão possa realizar as decisões diretamente, por meio do voto eletrônico (computadorcracia), a hipótese é pueril. Isso porque se cada cidadão for chamado para votar cada lei, cada decisão ao menos uma vez ao dia, ele ficará sufocado pelo excesso de participação.
Ao contrário do que se possa imaginar, o excesso de participação, ao invés de levar a uma maior participação política da sociedade, pode ter como efeito a saciedade de política e o aumento da apatia eleitoral.[8] Por mais contraditório do que possa parecer, nada mais ameaça a democracia do que o excesso de democracia.
Naturalmente, poucos se envolvem na efetiva participação política. Com isso, é fácil imaginar a apropriação do poder por pequenos grupos ou oligarquias. A presença de tais grupos (que também podem ser denominados de elites, não necessariamente econômica, podendo ser também política, cultural, entre outras) não elimina a diferença entre regimes democráticos e regimes autocráticos.
Todas as teorias sobre a dominação da minoria (teoria das elites) interpretam o mundo como sendo um composto de estruturas de poder cujo topo é consideravelmente menor do que a base. Dentro das estruturas que os grupos alcançam sua dominação.
Para Marx, a dominação de maiorias exploradas por uma classe minoritária exploradora. É uma teoria política caracteriza pela “minoria politicamente dominante” como um “fato histórico”, cuja existência é permanente apenas nas sociedades de classe. Tal teoria correlaciona a dominação econômica de classe e o exercício do poder político, ou seja, para o marxismo, a posse do poder econômico deriva da posse do poder político, e vice-versa (tese que é negada pela teoria das elites de Mills). Decorrente desse motivo, é possível afirmar que enquanto o marxismo define a classe dominante como a classe que simultaneamente exerce os poderes econômico e político. O marxismo define a luta de classe como o elemento propulsor das transformações sociais, ou melhor, como o “motor da história”.
Mosca considera que existe sempre uma minoria que é detentora do poder em detrimento de uma maioria que dele está privado. a originalidade da teoria das elites formulada por Mosca, advém da preocupação em explicar que a classe dirigente (ou seja, os governantes) constitui uma minoria detentora do poder pelo fato de serem mais organizados. Desse modo, seja por afinidade de interesses ou por outros motivos, os membros da classe dirigente constituem um grupo homogêneo e solidário entre si, em contraposição aos membros mais numerosos da sociedade, que se encontram divididos, desarticulados e consequentemente, desorganizados. Segundo ele, a elite no poder é organizada de tal modo que mantém a própria posição, tutelando seus próprios interesses, para isso utilizando até mesmo os meios públicos à sua disposição. Por este motivo, acredita que a democracia, é uma utopias construída para legitimar e manter um poder que sempre está em mãos de poucos homens. Sustenta que o poder só se reproduz por vias democráticas quando a oligarquia permite o ingresso dos membros de qualquer classe social; existe uma reprodução do poder pela via aristocrática mas a substituição ocorre sempre no interior da elite.
Pareto preocupou-se com o estudo da interação social entre as diversas classes de elites, cujas mais importantes, segundo ele, são: as elites políticas e as elites econômicas. Em qualquer sociedade, os homens são desiguais. As desigualdades entre os indivíduos contribuem diretamente para o surgimento das elites. Pareto tinha convicção na superioridade das elites econômicas e políticas porque acreditava que as desigualdades sociais faziam parte da "ordem natural" das coisas.
Michels analisou a dinâmica inerente à política democrática a partir da observação dos partidos políticos de massa. Com base em evidências empíricas demonstrou que mesmo dentro das organizações partidárias que funcionam num sistema político democrático, há fortes tendências à elitização, ou seja, concentração de poder num grupo restrito de pessoas. Michels chamou essa tendência à elitização de "lei de ferro das oligarquias". A maior contribuição da teoria das elites formulada por Michels se refere ao fato, inusitado e paradoxal, de que a elitização ocorre até mesmo no interior das organizações comprometidas com os princípios de igualdade e democracia, ou seja, os partidos políticos de massa. O conceito de elitização e "lei de ferro das oligarquias" também pode ser aplicado aos sindicatos, corporações e grandes organizações sociais. Uma organização, partido político ou movimento social podem surgir em decorrência de verdadeiros objetivos igualitários e democráticos, porém, com o passar do tempo, a tendência à elitização ou oligarquização se manifesta.
Para Gramsci, o elemento fundamental é que “existem efetivamente governados e governantes, dirigentes e dirigidos. Contudo, essa divisão não era uma realidade imutável, fruto da natureza humana e sim produto de situações concretas, que se desenvolveram na história no meio de relações de forças entre grupos antagónicos na sociedade. Esta impostação histórica e política do problema conduziu Gramsci a uma apreciação da questão da circulação das elites de modo também diverso.
Não obstante todas as diferentes formulações para a presença das elites no poder, partindo da definição procedimental de democracia de Bobbio, não é a ausência de elites mas a presença de muitas elites em concorrência entre si[9] que pode caracterizar a democracia. Segundo Schumpeter, a presença de muitas elites em concorrência entre si para a conquista do voto popular é o que caracteriza a democracia, havendo um equilíbrio em que as elites se propõe, ao invés de se impor, como nas autocracias
Temos, assim, mais duas promessas não cumpridas pela democracia: a renúncia ao princípio da liberdade como autonomia intrínseca à democracia representativa e a permanência de grupos no poder .
Espaço limitado
Além de a democracia não conseguir eliminar por completo o poder oligáquico, ela não é capaz de ocupar todos os espaços nos quais se exerce um poder que toma decisões vinculatórias para um grupo social.[10]
Nesse ponto, o autor faz uma distinção da democracia não como poder de poucos e de muitos mas sim entre poder ascendente e poder descendente.
A democracia moderna nasceu como método de legitimação e de controle das decisões políticas, aqui entendidas como as decisões do governo nacional ou local, no qual o indivíduo é considerado em seu papel geral de cidadão e não na multiplicidade de seus papéis específicos na vida em sociedade, tais como de trabalhador, de membro integrante de uma família, de consumidor, de praticante ou não de uma religião, entre outros.
Com isso, o autor aponta para um espaço limitado da democracia na sociedade. Primeiramente, em um dado momento histórico, a preocupação da democracia era “quem vota”, ou seja, voltava-se para ampliar o direito ao voto, para incluir mulheres, negros, jovens, entre outros. Tal direito foi ampliado ao longo do tempo, sendo um processo histórico de conquista de direitos individuais, tendo o número de votantes sofrido um progressivo alargamento.
Após a conquista do sufrágio universal, a extensão do processo democrático deveria se voltar não tanto para quem vota, mas sim para onde se vota, buscando, com isso, a passagem da democracia política para democracia social.
Em outros termos, se antes, para saber se houve um desenvolvimento da democracia em um dado país deveríamos observar tão-somente quem vota (número de votantes), depois do sufrágio universal devemos observar também onde se vota. Não basta verificar se houve crescimento do número de pessoas que tem direito a participar do processo decisório (direito de voto), devendo ser analisado também os espaços nos quais os indivíduos pode exercer esse direito.
Apontar um índice de desenvolvimento democrático não pode ser mais o número de pessoas que tem direito de votar, mas o número de instâncias (diversas da política) nas quais se exerce o direito de voto.[11]
O processo de democratização consiste na extensão do poder ascendente (da base da sociedade para o topo), que até então havia ocupado quase que exclusivamente o campo da sociedade política para o campo da sociedade civil. [12]Significa a ocupação de novos espaços sociais pelas formas de tomada de decisão democrática, pelas formas tradicionais da democracia, espaços estes que eram dominados por formas de dominação hierárquicas ou burocráticas. Trata-se da democratização do estado à sociedade.
Busca-se, com isso, o aumento dos espaços democráticos dentro da sociedade, não ficando restrita ao espaço político. Para o autor, enquanto não houver a passagem da democracia política para a social, o processo de democratização não poderá ser dado como concluído.
Poder invisível
Outra promessa não cumprida pela democracia real é a não eliminação do poder invisível.
Bobbio aponta que há um “duplo estado” (Wolfe) no sentido de que ao lado de um estado visível, existiria um estado invisível. A democracia nasceu com a perspectiva de eliminar o poder invisível e dar vida a um governo cujas ações deveriam ser desenvolvidas transparente e publicamente.[13] Para a democracia real, as grandes decisões deveriam ser tomadas com publicidade, transparência e visibilidade. Em um governo democrático, nada pode permanecer confinado no espaço do mistério. [14]
A democracia deve ser entendida como o governo do poder público em público, não podendo a publicidade dos atos do governo ser suprimida. O caráter público é a regra e o segredo a exceção.
Para o autor, uma das razões da superioridade da democracia diante de estados autocráticos funda-se sobre a convicção de que o governo democrático poderia dar vida à transparência do poder, ao poder sem máscara. Desta forma, a publicidade é a regra e o segredo a exceção.
Bobbio utiliza-se do princípio fundamental de Kant, segundo o qual “ todas as ações relativas ao direito de outros homens cuja máxima não é suscetível de se tornar pública são injustas”, com isso significando que uma ação mantida secreta forçadamente é certamente não apenas uma ação injusta, mas sobretudo uma ação que se fosse tornada pública suscitaria uma reação tão grande que tornaria impossível sua execução. Kant considera que a visibilidade do poder é, além de uma questão política, uma questão moral.
E, a partir de tal princípio conclui que a exigência de publicidade dos atos de governo é importante não apenas para permitir ao cidadão conhecer os atos de quem detém o poder e assim controlá-los, mas também porque a publicidade é, por sim mesma, uma forma de controle, um expediente que permite distinguir o que lícito do que não é..[15]
A visibilidade do poder não depende apenas da apresentação em público de quem está investido do poder mas também da proximidade espacial entre o governante e o governado. Isso porque o caráter público do governo local é mais direito, e é mais direto porque a visibilidade dos administradores e de suas decisões é maior.[16]
Aos atos do poder público, aos atos decisórios do estado deve ser dada maior visibilidade, cognocibilidade, acessibilidade, publicidade, o que poderá permitir maior controlabilidade de tais atos.
Mas onde há um poder visível, há também um invisível por trás. E onde há um poder oculto há um contra-poder. Poder invisível e contra-poder são duas faces da mesma moeda. Estão estritamente coligados. Trata-se do poder oculto ou que se oculta e do poder que oculta, isto é, que se esconde escondendo. Na democracia, o poder deve ser visível e, assim o sendo, o contra-podertrambém o será. Tanto o poder como a oposição ao poder devem ser claros e visíveis.
A presença de um poder invisível, que toma grandes decisões dentro de gabinetes secretos, longe dos olhares indiscretos do público,corrompe a democracia pois é a publicidade dos atos permite o controle público do poder.
A não eliminação do poder invisível seria mais uma promessa não cumprida da democracia ideal.
Educação para a cidadania
A sexta promessa não cumprida diz respeito à educação para a cidadania. A educação para a democracia surgiria no próprio exercício da prática democrática.[17] Para a democracia, o reino da virtude é a própria democracia, entendida a virtude como amor pela coisa pública, da qual o cidadão não pode privar-se e, ao mesmo tempo, a promove, a alimenta e reforça.
Para Bobbio, a extensão do sufrágio às classes populares, com base no argumento de que um dos remédios contra a tirania das maiorias é a promoção da participação eleitoral de todas as classes, deveria ter grande valor educativo. Isso porque através da discussão política promovida em decorrência da participação eleitoral, classes populares sairiam de uma compreensão limitada dos trabalhos repetitivos e concentrados da fábrica para uma compreensão mais ampla de conexão dos eventos distantes e o seu interesse pessoal, estabelecendo relações com cidadãos diversos daqueles com os quais mantém relações cotidianas, tornando-se, assim, membro consciente de uma comunidade.[18] Isso criaria uma cultura política de educação para a cidadania.
Contudo, não obstante a consolidação do sufrágio universal em vários países, o autor aponta para um cenário de apatia política, com grande desinteresse dos cidadãos em relação ao que acontece na política. Embora ainda haja um grande número percentual de votantes, esse número diminui a cada ano. O autor aponta ainda para casos de voto clientelar ou voto de permuta para exemplificar esse desinteresse em relação ao exercício da prática democrática, o que demonstraria mais uma promessa não cumprida da democracia.
As transformações
As promessas não cumpridas da democracia causam um sentimento de frustração. O que foi concebido como nobre e elevado, foi idealizado para uma sociedade muito menos complexa do que a atual. As promessas não foram cumpridas em razão de obstáculos não previstos e que surgiram em decorrência de transformações da sociedade civil. Uma sociedade mais complexa gera problemas políticos mais complexos e requer competências técnicas mais avançadas.
A exigência de competências técnicas mais avançadas esbarra na questão da tecnocracia, que aponta como os aptos a decidir aqueles que detêm conhecimentos específicos, versus democracia, que sustenta-se sobre a ideia de que todos podem decidir.
Outro obstáculo é a forma de organização burocrática do estado democrático. Na sociedade democrática, o poder vai da base ao vértice e em uma sociedade democrática, ao contrário, o poder vai do vértice à base. Tal forma burocrática de organização do poder foi, em boa parte, consequência do processo democrático. Contudo, essa forma de organização diminui ops espaços da demcracia.
Outro ponto relevante é o problema da ingovernabilidade da democracia. O estado democrático contribuiu para a autonomia da sociedade civil do sistema poítico. Tal processo fez com que a sociedade civil se tornasse uma inesgotável fonte de demandas dirigidas ao governo, a quem compete dar respostas a tais demandas. Contudo, a quantidade e a rapidez das demandas associadas à lentidão dos processos decisórios no sistema político, faz com que o sistema político não consiga responder adequadamente.
Diferentemente do que pode acontecer em governos autoritários, nos quais o sistema político tem condições de controlar a demanda, em razão da menor autonomia da sociedade civil, e da possibilidade de dar respostas mais rápidas por não ter que observar os complexos procedimentos decisórios democráticos de um parlamento.
Temos, então, para a democracia demanda fácil e resposta difícil e para a autocracia demanda difícil e maior facilidade em dar respostas.
Não obstante os problemas de representação (anteriormente abordados na Representação de interesses), dificilmente se vê um sistema puro, seja um sistema democrático caracterizado exclusivamente pela existência de representantes (democracia representativa) ou um caracterizada pela ausência de intermediários (democracia direta). Entre a forma extrema de democracia representativa e direta, há os tipos intermediários. A democracia representativa e a democracia direta não são dois sistemas alternativos, são dois sistemas que podem se integrar reciprocamente. [19]
Outro ponto relevante é o novo modo de fazer política, com os novos sujeitos e novos instrumentos. O que distingue um sistema democrático não é apenas o fato de possuir regras do jogo, mas sobretudo o fato de que estar regras, mais amadurecidas e elaboradas, encontram-se hoje, na maior parte dos países, constitucionalizadas. O respeito às regras constitui fundamento de legitimidade de todo o sistema.[20]
CONCLUSÃO
É possível verificar a atualidade do pensamento de Bobbio, que aponta as transformações sofridas pela democracia, sob a forma de “promessas não cumpridas”, ao confrontar a democracia ideal, tal como concebia por seus fundadores e a democracia real, a matéria bruta, tal como é, em que, com maior ou menor participação o cidadão vive cotidianamente.
Como aponta o autor, a democracia deve ser entendida como processo de tomada de decisão legitimado pelo sufrágio com eleições livres - nas quais há reais possiblidade de competitividade entre governo e oposição dentro das regras do jogo, que busca assegurar direitos e garantias fundamentais. Ela é um regime de transformação, é dinâmica. E justamente pela sua própria forma de estruturação, com a imposição e o respeito às regras do jogo, as decisões tendem a ser pacíficas, sendo o uso da força excepcional, o que garante durabilidade a essa forma de governo.
Entendo que, ao final, Bobbio conclui que nem as promessas não cumpridas nem os obstáculos não previstos formam suficientes para transformar regimes democráticos em autocráticos. A diferença substancial entre ele permaneceu. O conteúdo mínimo da democracia não encolheu. O que se verifica são graus diferentes de aproximação com o modelo ideal, mas mesmo a democracia mais distante do modelo não pode ser, de maneira alguma, confundida com um estado autocrático e, menos ainda, com um estado totalitário.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986
[1] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, pp. 12 e 18.
[2] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 14.
[3] Para breves linhas sobre essa diferenciação, ver: BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, pp. 13 e 14.
[4] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 20.
[5] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 23
[6] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 24
[7] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 26
[8] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 26
[9] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 27
[10] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 27
[11] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 56
[12] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, pp. 54 e 55
[13] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 29
[14] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 84
[15] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 30
[16] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 288
[17] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 31
[18] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 32
[19] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 52
[20] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 66
Procuradora Federal. Especialista em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: WACHHOLZ, Roberta Negrão Costa. Uma análise de "O futuro da democracia" de Norberto Bobbio Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2014, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42582/uma-analise-de-quot-o-futuro-da-democracia-quot-de-norberto-bobbio. Acesso em: 22 nov 2024.
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