RESUMO: Busca-se com o presente artigo esclarecer pontos centrais da Teoria Pura do Direito de Kelsen, vinculando-a ao contexto histórico do Estado Social de Direito.
PALAVRAS-CHAVE: Kelsen. Teoria Pura do Direito. Estado Social de Direito.
1. INTRODUÇÃO
As teorias e o pensamento sobre o Direito não surgem abstratamente ou “do nada”. Elas possuem raízes em contextos históricos determinados, configurando-se produtos de reflexões de seus autores sobre seu próprio tempo.
A Teoria Pura de Hans Kelsen não foge dessa regra. Almeja-se com o presente artigo, pois, delinear pontos fulcrais do pensamento kelseniano acerca da interpretação do Direito no marco da Teoria Pura do Direito, vinculando tal pensamento ao contexto histórico do Estado Social de Direito (paradigma historicamente identificado após o Estado Liberal e antes do atual Estado Democrático de Direito).
2. INTERPRETAÇÃO JURÍDICA NO MARCO DA TEORIA PURA DO DIREITO DE KELSEN
É preciso destacar, de saída, que é no contexto de formação e consolidação do paradigma do Estado Social de Direito que Hans Kelsen desenvolve a Teoria Pura do Direito.
A pureza de sua teoria reside no objetivo de compreender o que é e como é o Direito – e não o que, como defendiam as teorias sociológicas, ele deve ser ou como ele deve ser feito (KELSEN, 2006, p. 1). A intenção da teoria pura não é afirmar, portanto, que o Direito é puro por ser límpido de elementos morais, psicológicos, políticos etc. Pelo contrário. Kelsen reconhece que o Direito é influenciado por diversas outras disciplinas, porém um discurso jurídico que as tome em consideração estará no âmbito da Política do Direito, não da Ciência do Direito. Esta deve ser libertada de todos os elementos que lhe são estranhos, de forma a possibilitar o desenvolvimento de uma teoria normativa do direito, entendida não como a normatização de como o Direito deve ser, mas focada na descrição normativa (e não sociológica, ética, política etc) do Direito – mais precisamente, do Direito Positivo, enquanto conjunto de normas jurídicas válidas (COSTA, 2008, p. 294-295).
De acordo com a Teoria Pura de Kelsen (2006, p. 246-247), a ordem jurídica positiva constitui-se numa estrutura escalonada de normas, que possibilita a dinâmica segundo a qual uma norma inferior será válida somente na hipótese em que for produzida conforme os processos (e eventualmente, os parâmetros de conteúdo mínimos) estabelecidos numa norma superior, de forma que, assim sendo, a norma superior representa o fundamento de validade imediato da norma inferior. Com isso, identifica-se a visão de um ordenamento jurídico constituído de um sistema fechado de regras, cuja compreensão independe de fatores outros (como política, moral etc), já que tais regras são válidas porque legitimadas pela sua gênese e não pelo seu conteúdo (CARVALHO NETTO e SCOTTI, 2011, p. 46-47).
A correlata teoria da interpretação desenvolvida por Kelsen, por sua vez, distingue a interpretação científica da interpretação autêntica. A primeira seria aquela feita pelos cientistas do Direito e consubstanciar-se-ia na “pura determinação cognoscitiva do sentido das normas jurídicas” (KELSEN, 2006, p. 395). Kelsen reconhece que as normas positivas se dão a conhecer mediante textos e que, sendo textos, admitem leituras diversas, já que plurissignificativas. Assim, ao cientista do Direito caberia a função de descobrir os vários sentidos contidos na moldura normativa. Dada essa plurissignificação, aos cientistas ele propunha ainda a postura de evitar a ficção de que uma norma jurídica possibilitaria uma só interpretação, a interpretação correta.
A interpretação científica não criaria Direito. A criação do Direito seria restrita à interpretação autêntica, ou seja, àquela reservada às autoridades estatais incumbidas de aplicar as normas, mediante a escolha de uma dentre as várias leituras possíveis dentro da moldura legal.
Algumas observações se fazem. Primeiro, para Kelsen, sob o prisma do Direito Positivo, não se pode falar em resposta correta (ou justa). Essa é uma questão de Política do Direito, não de Teoria do Direito. Kelsen defende que tanto o legislador quanto o aplicador são criadores de Direito, que se distinguem, do ponto de vista material, apenas quantitativamente e não qualitativamente (o primeiro teria mais liberdade que o segundo). Assim, da mesma forma que não se pode, por interpretação, extrair da Constituição apenas as únicas leis corretas, também não se pode, por interpretação das leis, obter as únicas sentenças corretas. Ademais, apesar de as normas superiores determinarem o modo de produção das normas inferiores, tal nunca se dá de maneira completa, havendo sempre uma margem de livre apreciação que é deixada para a criação do aplicador, seja ele o legislador (em relação às normas constitucionais), seja o juiz ou administrador (em relação às leis). Segundo, também sob um prisma positivista, não haveria nada que determinasse que o aplicador devesse escolher uma ou outra dentre as várias possibilidades contidas na moldura normativa. Essa escolha é livre, de sorte que configura um ato de vontade do aplicador. “Só assim não seria se o próprio Direito positivo delegasse em certas normas metajurídicas como a Moral, a Justiça, etc. Mas, neste caso, estas normas transformar-se-iam em normas de Direito positivo” (KELSEN, 2006, p. 393-394). Terceiro, pela interpretação autêntica seria possível ocorrer a produção de uma norma concreta situada completamente fora das possibilidades da moldura normativa traçada pelos cientistas ou doutrinadores. Neste caso, como a interpretação científica não cria Direito, porque não realizada por autoridade, a questão se resolveria em favor da interpretação dada por essa última.
3. CONCLUSÃO
Desta breve exposição, pode-se afirmar que Kelsen de fato rompe com o paradigma anterior do Estado Liberal e com os movimentos jurídicos sociológicos que vieram em seguida, configurando-se como um autor típico do Estado Social, já que sua teoria ao mesmo tempo formal e voluntarista asseguraria tanto o caráter mantenedor do Direito (segurança jurídica), quanto seu caráter constitutivo (viabilizador das normas constitucionais programáticas típicas do Estado Social). Ao não preconizar um conteúdo mínimo para as normas jurídicas, Kelsen rompe com as “verdades matemáticas” do Direito Privado liberal. Doutra parte, ao traçar uma teoria que afirma o que o Direito é e o que os juristas fazem ao interpretar as normas, refaz o discurso jurídico-científico do Direito sem a interferência das correntes sociológicas, embora deixe ampla margem para que a teleologia ingresse no Direito por via do voluntarismo. A teoria voluntarista da interpretação de Kelsen afasta-se, ainda, tanto da postura liberal clássica, quanto das posturas sociológicas, já que ambas, cada qual a sua maneira, partiam da premissa de haveria uma solução correta para cada caso (COSTA, 2008, p. 292).
REFERÊNCIAS
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método: diálogos entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica jurídica. Brasília: UnB, 2008. 421 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2008.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
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