RESUMO: O artigo analisa o aspecto temporal do processo judicial e seus reflexos para a parte e para a sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Inafastabilidade da jurisdição. Processo. Tempo. Razoável duração do processo.
Enuncia o art. 5º da Constituição Federal de 1988 o princípio da inafastabilidade da jurisdição, pelo qual nenhuma lei excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão à Direito.
Numa leitura clássica, tal norma enuncia o direito subjetivo de todo cidadão reclamar em juízo contra qualquer lesão ou ameaça a direito, ou, segundo Theodoro Júnior:
A parte, frente ao Estado-juiz, dispõe de um poder jurídico, que consiste na faculdade de obter a tutela para os próprios direitos ou interesses, quando lesados ou ameaçados, ou para obter a definição das situações jurídicas controvertidas[1].
Contudo, uma leitura mais moderna faz surgir a ideia de que essa norma constitucional não apenas garante o direito de ação, mas a possibilidade de efetivo acesso à justiça, ou seja, a garantia de um direito a uma tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva[2], que se aproxime o mais possível do ideal de justiça. Nas palavras de Marinoni e Arenhart:
O direito de ação, se necessita conferir ao cidadão o mesmo resultado que o direito material lhe daria caso suas normas fossem espontaneamente observadas, passou a ser pensado como um direito à adequada tutela jurisdicional, ou melhor, como um direito à pré-ordenação de procedimentos hábeis para dar resposta adequada ao direito material[3].
Com efeito, a Constituição Federal considera o direito à ação como direito fundamental, necessário à proteção de todos os demais direitos, não se podendo resumi-lo tão somente no simples acesso ao judiciário, através do direito de petição. Uma mera resposta do Estado-juiz não é suficiente para a garantia do direito da parte, pois pode carecer de efetividade, fulminando todo o esforço e recursos necessários ao provimento judicial.
Ora, o direito de ação, antes visto como garantia meramente formal transformou-se em garantia substancial, ou seja, a concretização da efetiva tutela jurisdicional. Pode-se afirmar, com bastante propriedade, que a tutela jurisdicional somente é efetiva quando é tempestiva. Tucci afirma:
O pronunciamento judicial que cumpre com sua nobre missão de compor uma controvérsia intersubjetiva ou um conflito de alta relevância social (na esfera penal) no momento oportuno proporciona às partes, aos interessados e aos operadores do direito grande satisfação. Mesmo aquele que sai derrotado não deve lamentar-se da pronta resposta do Judiciário, uma vez que, sob o prisma psicológico, o possível e natural inconformismo é, sem dúvida, mais tênue quando a luta processual não se prolonga durante muito tempo[4].
Dessa forma, importante entender os efeitos deletérios do tempo no decurso do processo, saber a quem prejudica e de que modo. A partir dessas respostas é que podemos apontar caminhos para minorar esse impacto negativo.
Parece evidente que todo processo prejudica o autor que tem razão em benefício do réu, que não sofre igualmente os efeitos do tempo. Tal fato decorre da simples razão de que se o autor reivindica um bem que está na esfera jurídico-patrimonial do demandado, o tempo necessário para a definição do litígio em que o autor tem razão faz com que o réu mantenha indevidamente o bem em seu patrimônio, o que certamente o beneficia, causando, logicamente, prejuízo ao autor, que se vê privado daquele bem da vida. Marinoni, fazendo referência ao pensamento de Trocker e Carnelutti comenta:
Como adverte Nicolò Trocker em seu importante Processo civile e Costituzione, uma justiça realizada com atraso é sobretudo um grave mal social; provoca danos econômicos (imobilizando bens e capitais), favorece a especulação e a insolvência e acentua a discriminação entre os que podem esperar e aqueles que, esperando, tudo podem perder. Um processo que se desenrola por longo tempo – nas palavras de Trocker – torna-se um cômodo instrumento de ameaça e pressão, uma arma formidável nas mãos do mais forte para ditar ao adversário as condições da sua rendição. Se o tempo do processo prejudica o autor que tem razão, tal prejuízo aumenta de tamanho na proporção da necessidade do demandante, o que confirma o que já dizia Carnelutti há muito, ou seja, que a duração do processo agrava progressivamente o peso sobre as costas da parte mais fraca[5].
A problemática dos efeitos do tempo no processo não se resume àqueles casos em que o autor se vê diante de possibilidade de lesão de incerta e difícil reparação, o que certamente ensejaria o manejo da ação cautelar ou de pleito de antecipação dos efeitos da tutela. O que se deve ter por certo é que o fator tempo é indissociável da moderna concepção do processo que deixou de ser apenas forma em si, para efetivamente tutelar e garantir a eficácia dos direitos, ou seja, deixa-se de prestigiar a forma em prol do conteúdo.
Outro princípio a ser levado em consideração é o da isonomia, tanto em sua acepção formal, quanto na acepção material (conteúdo). Não basta a parte se socorrer do judiciário para fazer valer seus direitos, nem ao réu se valer das formas em lei encontradas para a defesa do seu direito. Deve haver a isonômica distribuição dos ônus do tempo no decurso do processo.
O Estado ao concentrar em si o monopólio do exercício da jurisdição, ao abominar o uso da autotutela, obriga-se a tutelar de forma adequada e efetiva os conflitos de interesses que lhes são submetidos, sabendo que para o exercício de tal atividade necessita de tempo para a instrução necessária a verificar a veracidade das alegações do autor ou das exceções opostas pelo réu, o que corresponde ao tempo natural de tramitação processo.
No entanto, historicamente, em virtude dos receios da época do liberalismo, o Estado limitou-se a construir um processo destinado a proteger a segurança e liberdade do réu face ao arbítrio do juiz. A esse respeito, preconiza Marinoni:
O que parece não se enxergar é que se o tempo do processo deve ser visto como um ‘inimigo contra o qual o juiz deve lutar sem tréguas’ – como preconizou Carnelutti –, não é o autor que tem que suportá-lo, como se fosse o culpado pela demora inerente à definição dos litígios. O medo de um juiz parcial, ou o receio de que a liberdade do indivíduo pudesse ser ameaçada cegaram os processualistas por um bom período de tempo para a obviedade de que o autor e o réu devem ser tratados de forma isonômica no processo[6].
Dessa forma, um sistema processual que não prevê mecanismos de imediata satisfação do direito pelo autor, ainda que de forma precária ou mediante a imposição de garantias, é processo nitidamente construído para o réu, que se beneficia economicamente à custa do autor, o que decerto fez surgir o que se denomina abuso do direito de defesa.
Com efeito, o processo foi construído para que o réu possa valer-se de ilimitado número de meios para demonstrar sua irresignação, ainda que decorrente de mero inconformismo por ver contra si decisão desfavorável. Desse modo, pode ele empurrar o processo por longos anos, conservando para si o bem da vida litigioso, em detrimento do direito do autor.
Na prática, o abuso do direito de defesa consubstancia-se nos diversos recursos e meios de impugnação ofertados pelo ordenamento jurídico, apontado pelos processualistas como o “grande vilão” da tutela jurisdicional efetiva. O que se abomina é o tempo patológico, aquele gerado pelo excessivo número de incidentes e apego excessivo aos formalismos, prolongando-se em demasia o processo, aliada à falta de estrutura do Poder Judiciário para dar vazão às milhares de lides que são ajuizadas diuturnamente.
Contudo, em que pese essa busca desenfreada pela celeridade do processo, verdade seja dita: todo processo demanda tempo. É o que a doutrina convencionou chamar de tempo do processo.
De fato, é imperioso reconhecer que há processos que demoram em demasia, sendo preciso, evidentemente, combater essa demora patológica. No entanto, não se pode querer que o processo dê respostas imediatas a quem postula a tutela jurisdicional. Como ensina Carnelutti, citado por Câmara:
O processo dura; não se pode fazer tudo de uma vez. É necessário ter paciência. Semeia-se, como faz o camponês, e se há de esperar para colher. Junto à atenção há de se colocar a paciência entre as virtudes necessárias ao juiz e às partes. Desgraçadamente, estas são impacientes por definição; impacientes como os enfermos, pois sofrem também elas. Uma das funções dos defensores é inspirar-lhes a paciência. O slogan da justiça rápida e segura, que se encontra sempre na boca dos políticos inexpertos, contém, desgraçadamente, uma contradição in adiecto; se a justiça é segura não é rápida, se é rápida não é segura. Algumas vezes a semente da verdade leva anos, até mesmo séculos, para converter-se em espiga (veritas filia temporis)[7].
Não se pode considerar que o princípio da duração razoável dos processos sirva de base para a construção de processos instantâneos. O que se assegura com esse princípio agora expressamente elevado ao status de constitucional é a construção de um sistema processual em que não haja dilações indevidas.
Nesse sentido, reconhece-se a existência de dois postulados, em princípio, opostos. O primeiro é o da segurança jurídica, exigindo lapso temporal razoável para a tramitação do processo (tempo fisiológico). O segundo é o da efetividade, reclamando que o momento da decisão final não se delongue mais que o estritamente necessário (tempo patológico). Encontrando-se um regramento entre esses dois princípios emergirão melhores condições para garantir a justiça no caso concreto sem que haja diminuição no grau de efetividade da tutela jurisdicional.
Em suma, o resultado de um processo não apenas deve outorgar uma satisfação jurídica às partes, como, também, para que essa resposta seja a mais plena possível, a decisão final deve ser pronunciada em um lapso de tempo compatível com a natureza do objeto litigioso, visto que – caso contrário – se tornaria utópica a tutela jurisdicional de qualquer direito. Como já se afirmou, com muita razão, para que a Justiça seja injusta não faz falta que contenha equívoco, basta que não julgue quando deve julgar[8].
O direito à jurisdição é indissociável a uma tutela jurisdicional efetiva que, por sua vez, pressupõe o direito a obter uma decisão num lapso de tempo razoável, o qual há de ser proporcional e adequado à complexidade do processo.
Assevere-se que o reconhecimento do direito ao processo com duração razoável e sem dilações indevidas enquanto direito fundamental ocorre em vários diplomas normativos da Europa Ocidental e da América do Norte.
O marco para a concepção do direito à tempestividade da prestação jurisdicional enquanto direito subjetivo constitucional, de caráter autônomo, foi a Convenção Européia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, subscrita em Roma no ano de 1950. Seu art. 6 dispõe ter toda pessoa direito a que a causa seja examinada eqüitativa e publicamente num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial instituído por lei.
A Corte Européia dos Direitos do Homem estabelece três critérios para a aferição do tempo razoável de duração de um determinado processo: a verificação da dilação indevida no processo levará em consideração a complexidade do assunto, o comportamento dos litigantes e de seus procuradores e a atuação do órgão jurisdicional.
A Constituição da Espanha, de 1978, também garante o direito à duração razoável do processo (art. 24.2), afirmando o direito de todos a um juiz ordinário previamente determinado por lei, à defesa e à assistência de advogado, a ser informado da acusação contra si deduzida, a um processo público sem dilações indevidas.
Da mesma forma, o Código de Processo Civil português assegura que a proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo.
No sistema da common law, a doutrina e jurisprudência se esforçam para traçar os pressupostos do processo sem dilações injustificadas, inclusive com publicações nesse sentido tabelando o que seria duração razoável do processo em face de determinada qualidade de litígios.
Um dos países onde o sistema da common law é adotado são os Estados Unidos da América. A cláusula denominada speed trial clause (cláusula do julgamento rápido) é expressamente contemplada pela 6ª Emenda de sua Constituição.
No Canadá, a Carta Canadense dos Direitos e Liberdades de 1982 estabelece, em seu art. 11, b, que toda pessoa demandada tem o direito de ser julgada dentro de um prazo razoável. Para a doutrina canadense, a rápida solução do litígio deve levar em consideração a identificação do interesse que o direito visa proteger, a determinação dos beneficiários diretos desse direito, a relevância da demora, os vários fatores que devem ser considerados para verificar se a demora é justificada e os remédios apropriados para se combater a violação a tal direito.
Em âmbito supranacional, temos o disposto no art. 8º, 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada em São José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969:
Toda pessoa tem direito de ser ouvida com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, instituído por lei anterior, na defesa de qualquer acusação penal contra ele formulada, ou para a determinação de seus direitos e obrigações de ordem civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
Em relação ao disposto no Pacto de São José da Costa Rica e ao novo preceito constitucional insculpido pelo inciso LXXVIII do art. 5º da Carta Magna, leciona Câmara:
A rigor, esse princípio já estava positivado no ordenamento jurídico brasileiro, em razão do disposto no art. 8º, 1 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ratificado pelo Brasil em 1992. O que se fez com a Emenda Constitucional nº 45 foi, simplesmente, elevar tal princípio ao patamar de garantia constitucional[9].
Como pudemos observar, a questão da discussão do tempo do processo não é exclusiva do Estado Brasileiro, mas mundial, afinal a razoável duração do processo gera segurança nas instituições, transparência nas decisões, atrai investidores e proporciona resultados econômicos.
Restou evidenciado que o tempo do processo sempre prejudica o autor que tem razão, assim como prejudica o réu que tem razão, ante a possibilidade de prolongação excessiva do feito com todas as restrições que isso implica. Deve-se pensar em técnicas que permitam igualitária distribuição do tempo do processo entre as partes, à luz do princípio da isonomia, de modo que o ordenamento processual possa atender de modo completo e eficiente ao pleito daquele que exerceu seu direito à jurisdição, bem como aquele que resistiu, apresentando legítima defesa.
A explicitação do princípio da razoável duração do processo como direito fundamental na Constituição Federal e as alterações introduzidas no Código de Processo Civil na última década foram um primeiro passo.
[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 38ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. v. 1, p. 45.
[2] Valor esse reforçado pelo princípio da razoável duração do processo, incluído na Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004.
[3] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 61.
[4] TUCCI, José Rogério Cruz e. Garantia do processo sem dilações indevidas. In: TUCCI, José Rogério Cruz e (Coord.). Garantias constitucionais do processo civil. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 236.
[5] MARINONI, Luiz Guilherme. Garantia da tempestividade da tutela jurisdicional e duplo grau de jurisdição. In: TUCCI, José Rogério Cruz e (Coord.). Garantias constitucionais do processo civil. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 223.
[6] MARINONI, Luiz Guilherme. Garantia da tempestividade da tutela jurisdicional e duplo grau de jurisdição. In: TUCCI, José Rogério Cruz e (Coord.). Garantias constitucionais do processo civil. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 224.
[7] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 14 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. v. I, p. 58-59.
[8] TUCCI, José Rogério Cruz e. Garantia do processo sem dilações indevidas. In: TUCCI, José Rogério Cruz e (Coord.). Garantias constitucionais do processo civil. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 236.
[9] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 14 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. v. I, p.58.
Procurador Federal e Coordenador de Assuntos Contenciosos da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Ex-Procurador do Estado da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Lívio Coêlho. O Tempo no Processo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42608/o-tempo-no-processo. Acesso em: 22 nov 2024.
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