Sumário: I.Introdução II. Direito Penal Moderno II a). Tutela penal do meio ambiente; II. b) Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica III.Teoria da dupla imputação e evolução jurisprudencial; IV. Conclusão.
I.INTRODUÇÃO
A sociedade hodierna vai além daquilo a que se denominou modernidade. Os debates sobre o processo de industrialização, divisão social do trabalho ou ascensão do proletariado como motor da história cedem agora espaço para a chamada pós-modernidade.
A sociedade pós – moderna ultrapassa as fronteiras nacionais, aumenta a concorrência no mercado de trabalho, revoluciona o processo de comunicação, torna o processo econômico globalizado, enfim, fomenta o surgimento de um modo transnacional de vida e, com ele, o potencial de destruição ambiental adquire contornos preocupantes.
Inevitável que esse processo criativo acelerado também produza mudanças no direito penal, como ramo vocacionado a tutelar os bens jurídicos considerados mais relevantes pela sociedade.
Desta feita, o tema da responsabilidade penal da pessoa jurídica continua dentre os assuntos mais controvertidos de direito penal e de política criminal.
Importante ressaltar que os posicionamentos divergentes protagonizados, de um lado, pelos países regidos pelo sistema da common law - cujos precedentes jurisprudenciais admitiam, sem maiores resistências, a responsabilidade penal da pessoa jurídica; e de outro, pelos países regidos por sistemas legais codificados - cujos dogmas e unidade institucional interna rejeitam a responsabilidade penal da pessoa jurídica, sucumbiram ao novo paradigma social.
Com efeito, nem todos os Estados norte-americanos adotam a responsabilidade penal da pessoa jurídica, sendo possível identificar até certa tendência em restringir a aplicação de pena às empresas, segundo a exposição de motivos do Model Penal Code[1]; nem todos os países de sistemas legais codificados rejeitam a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, a exemplo da França e do Brasil, mormente a partir da lei 9.605/98.
Em solo pátrio, reflexo dessa constante evolução doutrinária e jurisprudencial é a recente mudança de entendimento capitaneada pelo Supremo Tribunal Federal.
II. DIREITO PENAL PÓS MODERNO
Vislumbra-seuma nova fase da internacionalização do Direito Penal. Nesse aspecto, a tutela penal do meio ambiente ganha fôlego, haja vista a constatação mundial da importância da efetiva tutela e preservação do meio ambiente.
A incidência cada vez mais frequente dos crimes econômicos e ambientais tendo as empresas como protagonistas, a pujançaeconômica, a globalização e, especialmente, a despersonalização dos fenômenos relativos às pessoas jurídicas, provocaram a discussão mundial sobre a imperiosa necessidade de responsabilização penal desses entes.
Abre-se um grande flanco para discussões futuras sobre esse processo, mas, desde logo, a Responsabilidade Penal das Pessoas Jurídicas terá, enquanto instituto jurídico, um grande incremento de suas discussões. Reflexo claro desse incremento é a adoção da Responsabilidade Corporativa nos Tribunais Superiores do Brasil além deconferir novos contornos a aplicação da teoria da dupla imputação.[2]
II. a) TUTELA PENAL DO MEIO AMBIENTE
A temática ambiental vem, já a algum tempo, ganhando espaço de destaque na mídia internacional, nos encontros dos líderes mundiais, mobilizando intensos debates na sociedade civil. Promessas vagas não são mais toleradas: exige-se uma postura proativa dos países frente os níveis alarmantesde degradação ambiental.
Ressalte-se que as consequências da degradação ambiental são imprevisíveis, já que as rápidas mudanças climáticas e a menor diversidade de espécies resultarão numa menor capacidade de adaptação genética. Compromete-se o processo evolutivo, inclusive, quanto a viabilidade de sobrevivência de grandes contingentes populacionais da espécie humana.
Diante desse quadro, a resposta do Direito é premente.Não é demais lembrar que a Constituição Federal de 1988 dedica um capítulo específico ao tema sob o título “Do Meio Ambiente”, elevando-o à condição jurídica de “bem de uso comum do povo”.
Tendo por premissa que a vida humana está diretamente ligada à preservação do meio ambiente, fácil deduzir a necessidade de intervenção estatal para protegê-lo, notadamente, no âmbito penal, impondo sanções penais de forma ampla, é dizer, a todos aqueles que o agridem.
Com razão, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, na sua concepção moderna, é um dos direitos fundamentais da pessoa humana, justificando, por si só, a imposição de sanções penais.
Dito isto, não merecem acolhida as invocações aos princípios da intervenção mínima ou da subsidiariedade como óbices instransponíveis a consagração da tutela penal ambiental. A“ultima ratio” da tutela penal ambiental pode ser compreendida como intervenção restrita às agressões mais graves dos valores fundamentais à sociedade.
Nos dias atuais, preservar e restabelecer o equilíbrio ecológico é questão de vida ou morte. Entendimento diverso comprometeria a dignidade do Direito Penal, por não atender o legítimo clamor social pela criminalização das condutas antiecológicas.
Oportuno frisar que não se está aqui defendendo a tese do Direito Penal como remédio para todos os males.Muito menos nutrindo a falsa expectativa de que a previsão de sanção penal basta, por si só, para combater as recorrentes violações a tão valoroso bem jurídico. Inegável, entretanto, que se trata de importante instrumento de combate.
Como bem observa Gracia Martin, éo Direito Penal do meio ambiente o setor cujo campo mais se desenvolvem as mudanças, “de modo preferente e especialmente intenso a polêmica atual sobre a modernização do Direito Penal[3]”. No entanto, não obstante todas as diversas e grandiosas modificações pelas quais passa o direito como um todo[4], o Direito Penal tem sido uma espécie de instância refratária às modificações. É que o Direito Penal constitui uma das expressões mais fortes da soberania do Estado-Nação.
Dando concretude ao papel de destaque conferido ao meio ambiente pela Carta Magna, a Lei 9.605/98veio preencher o espaço, antes vazio, na seara da tutela criminal do meio ambiente, ao dispor sobre as sanções penais decorrentes de condutas e atividades, de pessoas humanas e jurídicas, lesivas ao meio ambiente. Senão vejamos:
Lei 9605/1998
Art. 3.º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício de sua entidade.
Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.
A nossa legislação ambiental, como visto, estipulou a responsabilidade criminal da pessoa jurídica no âmbito dos crimes ambientais, determinando para tal responsabilização dois requisitos:
a) Que a decisão sobre a conduta seja cometida por seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado. Nesse passo, a nossa lei considerou a ação institucional de acordo com a sua normatização interna e seu caráter organizacional. A decisão deve ser tomada por quem estatutariamente poderia fazê-lo em nome da empresa e seguindo sua determinação organizacional interna.
b) Que a infração seja cometida no interesse ou benefício da pessoa jurídica. A legislação exigiu a presençado interesse econômico da empresa como finalidade da conduta infracional praticada.
Assentada a necessidade de tutela penal do meio ambiente, mister fazer algumas considerações acerca da possibilidade de responsabilidade penal da pessoa jurídica.
II. b) RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURIDICA
Historicamente, a responsabilidade penal da pessoa jurídica foi admitida na Idade Média e por um período da Idade Moderna, especificamente entre os séculos XIV e XVIII. Depois, caiu em desuso, voltando a firmar-se na segunda metade do século XIX, com a teoria da realidade de Gierke, em contraposição à teoria da ficção.
Na origem da questão temos, portanto, duas teorias: (a) da ficção jurídica e (b) da realidade ou da personalidade real.
No final do século XVIII, foi imposta a Teoria da Ficção de Feuerbach e Friedrich Karl von Savigny, segundo a qual a pessoa jurídica é uma criação artificial da lei e, como tal, não pode ser objeto de autêntica responsabilidade penal. Afinal, a responsabilidade penal somente pode recair sobre os reais responsáveis pelo delito, os homens por trás das pessoas jurídicas. Essa é, aliás, a tradição do Direito romano, que foi seguida nesse ponto pelo Iluminismo bem como pela Escola clássica.
O Direito Penal, sob o prisma tradicional, traz conceitos dogmáticos incompatíveis com a responsabilização penal da pessoa jurídica. As noções de conduta e de culpabilidade são formuladas de acordo com a pessoa humana, sendo impróprias para as pessoas jurídicas. O Direito Penal clássico é feito com a visão individualista, herdada do Iluminismo, como uma limitação ao poder do Estado. Esse pensamento (societas delinquere non potest) ainda hoje é adotado por importante parcela da doutrina, a exemplo dePierangelli, René Dotti, Régis Prado, Silva Franco, Tourinho Filho, R. Delmanto, Mestieri, Toledo dentre outros.
Por sua vez, a teoria da realidade ou da personalidade real foi sustentada, sobretudo, por Otto Gierke. Segundo o autor, é possível a responsabilização penal da pessoa jurídica, haja vista a sua capacidade de atuação (societas delinquerepotest). No Brasil, também encontramos defensores dessa teoria, a exemplo de Sérgio S. Shecaira, Paulo Affonso Machado, Vladimir Passos e Gilberto Passos, Edis Milaré, Damásio de Jesus dentre outros.
Veja-se que para a teoria da realidade, a pessoa jurídica é um autêntico organismo de natureza distinta do organismo humano. A vontade da pessoa jurídica é distinta da vontade de seus membros. Sendo assim, a pessoa jurídica não só pode como deve responder criminalmente pelos seus atos, uma vez que é o verdadeiro sujeito do delito.
Cumpre atentar que sempre preponderou no Direito penal brasileiro a tese da impossibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica (societas delinquere non potest). Com efeito, é da tradição do nosso Direito penal a vigência da responsabilidade subjetiva (desde o Código Criminal do Império de 1830 exige-se dolo ou culpa para a existência da infração penal). No mais, trata-se do reflexo natural da adoção de um Direito penal do iuslibertatis, fundado nos princípios da responsabilidade pessoal, subjetiva, da culpabilidade, da personalidade da pena etc.
Inquestionável que esse velho e clássico Direito penal não se compatibiliza com a responsabilidade penal da pessoa jurídica (visto que ela não tem capacidade de ação, não tem capacidade de culpabilidade e não tem capacidade de pena nem de motivação do sentido da norma etc.
A doutrina contrária à responsabilização penal desdobra os argumentos citados, apontando o princípio da personalidade das penas, o princípio da individualidade da responsabilidade criminal ou, ainda, o princípio da intransmissibilidade da pena e da culpa como barreiras insuperáveis para a criminalização dos entes coletivos.
Todavia, a realidade social em relação à criminalidade, vem forçando a superação dos dogmas clássicos, com a adequação do sistema penal para apresentar soluções em face da nova criminalidade econômica, ambiental e, enfim, social.
Cientes do aumento da “criminalidade empresarial” e com o propósito de preveni-la e reprimi-la mais eficazmente, diversas legislações têm admitido a punição da pessoa jurídica “criminosa”. No direito comparado, vários países já adotam a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Assim, por exemplo, Inglaterra, Estados Unidos, Holanda, Dinamarca e Portugal[5]. Afirma-se, assim, com von Liszt, que quem pode firmar contratos, pode também firmá-los fraudulentamente.
Não é demais lembrar que não é propriamente a pessoa jurídica que celebra contratos, uma vez que simplesmente a eles se vinculam.Na verdade, os contratos são celebradospelas pessoas individuais que atuam como seus agentes[6]. Tem razão, portanto, Gracia Martín, quando, distinguindo entre “sujeito da ação” e “sujeito da imputação”, sustenta que, no caso das pessoas jurídicas, sujeito da ação e sujeito da imputação são sempre e inevitavelmente distintos, pois estas só podem atuar por meio de órgãos e representantes, é dizer, as pessoas físicas (sujeitos da ação).
A Organização das Nações Unidas, em seu VI Congresso para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente, reunido em Nova Iorque em julho de 1979, no tocante ao tema do delito e do abuso de poder, recomendou aos Estados-membros o estabelecimento do princípio da responsabilidade penal das sociedades. “Isto significa que qualquer sociedade ou ente coletivo, privada ou estatal, será responsável pelas ações delitivas ou danosas, sem prejuízo da responsabilidade individual de seus diretores”
Em atenção a essa recomendação, a Constituição Federal de 1988 cuidou da responsabilidade da pessoa jurídica em duas situações: crimes econômicos e ambientais, arts. 173, § 5º e 225, § 3º).
Na seara ambiental, o art. 225, § 3º, prevê a aplicação de sanções penais e administrativas, sem obstar a reparação civil, àqueles que degradem ou poluam o meio ambiente, nos seguintes termos:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preserva- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1° - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VI - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
§ 2° - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.
§ 3° - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
§ 4° - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
§ 5° - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.
§ 6° - As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.
Em relação aos demais crimes praticados pela pessoa jurídica, a Constituição Federal não foi explícita, mas permitiu que a legislação infraconstitucional estipulasse sanções penais cabíveis para a chamada criminalidade econômica, conforme a seguinte redação do seu art. 173, § 5.º:
Art. 173 (...)
(...)
§ 5.º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.
Como visto, o legislador ordinário está obrigado a estipular as sanções penais cabíveis às pessoas jurídicas que praticarem crimes ambientais, por força da norma constitucional em questão, que adotou importante posicionamento renovador, de acordo com as orientações da Comunidade Internacional.
Nessa linha, vejamos o disposto no art.3 da lei 9605/98:
“As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou parícipes do mesmo fato.
Vê-se que, de um modo geral, as sanções penais são compatíveis com as pessoas jurídicas, com exceção evidente da pena privativa de liberdade, devendo o legislador ordinário adequar as sanções civis, penais e administrativas à natureza dos entes coletivos, sem que isso prejudique a eventual sanção individual dos dirigentes.
III. TEORIA DA DUPLA IMPUTAÇÃO E EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL
Mesmo diante da previsão expressa na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional, surgiram quatro correntes para explicar a possibilidade ou não de responsabilização da pessoa jurídica.
a) Primeira corrente: fazem uma interpretação restritiva no dispositivo constitucional. Segundo os defensores dessa corrente, minoritária, a Constituição enunciou apenas a responsabilidade penal para as pessoas físicas e a responsabilidade administrativa para as pessoas jurídicas.
b) Segunda corrente: a ideia de responsabilidade da pessoa jurídica é incompatível com a teoria do crime adotada no Brasil, mormente quanto a culpabilidade, prevenção geral e especial do direito penal e teorias da conduta.É defendida por boa parte da doutrina, lastreada na teoria da ficção jurídica de Savigny.
c) Terceira corrente: é plenamente possível a responsabilidade penal da pessoa jurídica nos casos dos crimes ambientais, por expressa previsão na Constituição. Desnecessária, inclusive, a responsabilização de pessoas físicas, pois inexiste essa condição no texto da CF/88. Essa foi a posição recentemente adotada pelo STF, sob o argumento de que não se pode subordinar a responsabilização jurídico-criminal do ente moral à efetiva condenação da pessoa física. Vide RE 548.181/PR.
d) Quarta corrente: é possível a responsabilização da pessoa jurídica, desde que em conjunto com uma pessoa física. Aplica-se a teoria da dupla imputação ou responsabilidade por ricochete ou indireta. É a posição do STJ, lastreada na redação do art.3 da lei 9605/98. Vide EDcl no Resp 865.864/PR e Resp 610.114/RN.
No sistema da dupla imputação, até então, majoritário nos Tribunais Superiores, a culpabilidade era vista como a culpabilidade do fato. Cada indivíduo deveria ser analisado de acordo com a sua situação pessoal, as suas circunstâncias pessoais, dentro das suas diferenças, face a individualidade da culpa no Direito penal.
Conforme SÉRGIO SALOMÃO SHECAIRA, entretanto, “não se pode deixar de lembrar que essa culpa só existe pelo cometimento de um ato em particular. Na realidade, o ponto de partida da intervenção penal na órbita mais geral do Direito é a prática de um fato delituoso previamente descrito em um tipo penal” [7].
A análise do renomado autor continua:
Não há que se negar que, uma vez constatada a culpabilidade em face da lesão a certo bem jurídico protegido pela norma penal, a conseqüência imediata é a intervenção estatal através da pena. Esta será aplicada – sempre – como uma última instância de controle social, observados os princípios da subsidiariedade e da intervenção mínima, vigentes no Estado Democrático de Direito. O parâmetro para a aplicação da pena é, pois, delimitado pelo próprio princípio da culpabilidade, posto que a pena só há de ser implementada quando necessária e útil[8].
De acordo com essa visão, a culpabilidade da pessoa jurídica surge sem problemas teóricos, possibilitando ao Direito Penal realizar a imputação aos graves delitos praticados pelos entes coletivos.
Cuida-se de tema instigante, sem dúvidas, fonte de inúmeros desdobramentos. Nessa linha, instiga-se o leitor: o dirigente da empresa pode ser responsabilizado diretamente quando a empresa conta com instâncias gerenciais e de operação dedicadas à fiscalização? O fato de ser presidente ou dirigente de uma empresa significa, por si só, responsabilidade penal?
IV. CONCLUSÃO
A proteção penal do meio ambiente foi recomendada pelo próprio legislador constituinte, fato que, por si só, afasta a utilidade de qualquer debate quanto à pertinência de sua seleção para a categoria de bem jurídico autônomo, considerado por Weizel como aquele “vital de lacomunidada o del indivíduo que por susignificación social es protegido juridicamente”.
Como bem acentua Herman Benjamin, “se o Direito Penal é, de fato, ultima ratio, na proteção de bens individuais (vida e patrimônio, p. ex.), com mais razão impõe-se sua presença quando se está diante de valores que dizem respeito a toda a coletividade, já que estreitamente conectados à complexa equação biológica que garante ávida humana no planeta”.
Nos crimes ambientais, o bem jurídico precipuamente protegido é o meio ambiente em sua dimensão global - meio ambiente natural, cultural e artificial. Ora, o ambiente deve ser consagrado à categoria de bem jurídico essencial à vida, à saúde e à felicidade do homem.
Pelo exposto, premente a criação de um novo sistema teórico, apto a resolver os conflitos supra-individuais existentes na atualidade e sequer imaginados pela visão tradicional. Não se trata de mudança exclusiva do Direito Penal, mas de todo o Direito, diante dos novos desafios do convívio social.
Um dos principais aspectos da mudança está exatamente no reconhecimento da capacidade penal da pessoa jurídica. Todas as correntes doutrinárias reconhecem a importância da pessoa jurídica na criminalidade dos dias atuais. As diferenças ocorrem apenas quanto à forma de atuação do Direito em face desta realidade.
Partimos do pressuposto de que a pessoa jurídica está apta a praticar ações independentes das ações das pessoas físicas que a integram. Isso é reconhecido pelo Direito na atualidade, para a responsabilização civil e administrativa da pessoa jurídica. O reconhecimento da vontade própria dos entes coletivos, portanto, já está assentado, restando apenas a discussão da utilização do Direito Penal para essa realidade.
Conforme FAUSTO MARTIN DE SANCTIS:
(...) as pessoas jurídicas possuem vontade própria e se exprimem pelos seus órgãos. Essa vontade independe da vontade de seus membros e constitui uma decorrência da atividade orgânica da empresa.
A decisão institucional é um produto normativo estipulado no estatuto social, de acordo com a legislação vigente em cada país. A organização está diretamente relacionada com a ordem normativa, entretanto manifesta-se autonomamente, posto que engloba a coletividade humana que integra a empresa, bem como um sistema de comunicação institucionalizado, um sistema de poder e o um sistema de controle interno.
O interesse econômico é inerente a empresa, é dizer, a própria razão da sua formação, constituindo ao mesmo tempo seu objetivo. É um fator onipresente na conduta de todos os indivíduos envolvidos na instituição, constituindo o verdadeiro combustível da ação institucional.
Paralelamente, o interesse econômico institucional independe dos interesses econômicos individuais, no sentido de que a empresa passa a ter um interesse econômico próprio, alienado dos seus integrantes. O denominador comum do funcionamento dos mecanismos estatutários normativos e organizacionais é o interesse econômico.
Após essa análise, evidenciamos que a ação institucional existe independentemente da ação das pessoas físicas e tem formação e características próprias e diferenciadas, de acordo com as quais deverá ser analisado o elemento subjetivo, ou seja, o dolo e a culpa, e a conseqüente tipificação da conduta institucional.
Conclui-se, portanto, que diante dessa vontade própria da empresa é possível o cometimento de infrações penais, visando à satisfação de seus interesses[9], independentemente da mesma imputação aos membros que a compõe.
A adoção do sistema de dupla imputação na hipótese de delitos praticados pelas pessoas jurídicas, como defendido pelo STJ, permite que em relação às pessoas físicas não ocorra mudança, continuando o sistema penal tradicional com os conceitos e garantias individuais historicamente fixados. Em relação às pessoas jurídicas, entretanto, deverá ser firmado um novo sistema, independente, rápido e eficaz, conforme exige a realidade da criminalidade empresarial.
BIBLIOGRAFIA
GOMES, Luiz Flávio. Manuais para Concursos e Graduação - DIREITO PENAL - parte geral. Introdução, vol 1. RT, 2004.
MORAES, Alexandre de - SMANIO, GianpaoloPoggio. Legislação Penal Especial. Atlas, 2005.
MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. RT, 2005.
MUKAI, Toshio. Direito Ambiental. FORENSE, 2004.
PRADO, Luiz Régis. Direito Penal do Ambiente. RT, 2005.
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. Malheiros, 2003.
SMANIO, GianpaoloPoggio. Interesses Difusos e Coletivos. ATLAS, 2004.
ZAFFARONI, Raul Eugênio - PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. RT1997.
[1]SHECAIRA, Responsabilidade penal da pessoa jurídica, São Paulo, 1999, p. 51.
[2] Veja-se, por ex., o REsp. nº 564.960/SC, j. 02/06/2005, DJ 13/06/2005, p. 331, relator min. Gilson Dipp.
[3] GRACIA MARTIN, Luis. Prolegômenos Para a Luta Pela Modernização e Expansão do Direito Penal e Para a Crítica do Discurso de Resistência, trad. Érika Mendes de Carvalho, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 60.
[4] Para uma exata dimensão das transformações do direito, veja-se FARIA, José Eduardo. “As transformações do Direito”, Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, ano 6, n° 22, abr/jun, 1998, pp. 236/9.
[5] Cf. Shecaira, Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, Ed. RT, S. Paulo, 1998.
[6] Rodriguez Mourullo, cit. por Gracia Martín, idem, p. 43.
[7] Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: RT, 1999. p. 78.
[8] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. p. 80.
[9] Op. cit. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. p. 40.
PROCURADORA FEDERAL. ESPECIALISTA EM DIREITO CONSTITUCIONAL PELA UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA. ESPECIALISTA EM CI ÊNCIAS PENAIS PELA UNISUL<br>CURSANDO LLM EM DIREITO EMPRESARIAL. <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACHADO, Ivja Neves Rabelo. O novo paradigma no Direito Penal pós moderno: societas delinquere potest ou non potest? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42644/o-novo-paradigma-no-direito-penal-pos-moderno-societas-delinquere-potest-ou-non-potest. Acesso em: 22 nov 2024.
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