RESUMO: Almeja-se com o presente artigo contextualizar e traçar os elementos básicos principais do pensamento de Ronald Dworkin acerca da interpretação e aplicação do Direito.
PALAVRAS-CHAVE: Ronald Dworkin. Interpretação e aplicação do Direito.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Com a crise do paradigma do Estado Social de Direito e o surgimento do novo paradigma do Estado Democrático de Direito, novas teorias acerca do papel dos juízes e da interpretação e aplicação do Direito ganharam força e destaque. São teorias as mais diversas, que procuram dar conta do atual momento histórico, superando o modelo (neo)positivista vigente nos paradigmas dos Estados Liberal e Social anteriores.
É justamente contra o voluntarismo e a discricionariedade positivista que Ronald Dworkin lança sua teoria. Seu pensamento configura inicialmente um ataque ao positivismo, seguindo com toda uma construção teorética acerca de como adequadamente pensar e fazer o Direito em termos principiológicos contemporâneos.
A intenção do presente artigo é justamente a de traçar um panorama das ideias principais de Ronald Dworkin acerca da interpretação e aplicação do Direito, tendo em vista a relevância que referido autor possui para o pensamento e para a prática jurídica atuais.
2. INTEPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO SEGUNDO DWORKIN
De acordo com Dworkin (2007a, p. 35-72), o ordenamento jurídico não deve ser compreendido como mero sistema fechado de regras, que são válidas porque foram elaboradas segundo os ditames de outras regras. Há outros padrões normativos, igualmente constituidores de obrigações jurídicas que, afastando a discricionariedade do juiz, podem e devem ser utilizados como forma de se chegar a uma decisão correta, ainda que se esteja diante de um caso não regulado por uma determinada regra (caso difícil ou hard case).
Para além das regras, Dworkin identifica como padrões os princípios e as políticas, diferenciando-os todos (2007a, p. 35-46). As regras são aplicadas ao modo do tudo-ou-nada, ou seja, dados os fatos que a regra estipula, então a resposta que ela preconiza terá incidência e deverá ser aceita. Se os fatos não ocorrerem como previstos, a regra não terá influência alguma na solução do problema. Os princípios, por sua vez, não carregam consigo as hipóteses e consequências jurídicas automáticas de sua aplicação. Doutra parte, ao contrário das regras, podem coexistir princípios contrários no mesmo ordenamento jurídico, sem que isso signifique a invalidade de um deles. Com isso, admite-se que os princípios possuem uma dimensão de peso ou importância que as regras não possuem.
Contrapondo-se as políticas e os princípios, tem-se que as primeiras constituem padrões que estabelecem objetivos políticos, sociais ou econômicos a serem alcançados, enquanto os segundos, ao contrário de promoverem ou assegurarem objetivos desejáveis, constituem padrões de exigência de justiça, equidade ou outro elemento de moralidade. Como decorrência dessa diferenciação, prossegue Dworkin com outra distinção: aquela que se faz entre argumentos de política e argumentos de princípio. Os primeiros “justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo”, ao passo que os segundos “justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo” (2007a, p. 129). Ou, como pontuam Carvalho Netto e Scotti (2011, p. 55):
Os primeiros se referem à persecução de objetivos e bens coletivos considerados relevantes para o bem-estar de toda a comunidade, passíveis de transações e compromissos, enquanto os segundos fundamentam decisões que resguardam direitos de indivíduos ou grupos, possuindo assim um papel de garantia contramajoritária (grifos do original)
Segundo Dworkin (2007a, p. 130-132), os argumentos de política encontram-se sob a competência do Poder Legislativo, que pode, a partir deles, gerar programas para realização de determinados objetivos. As decisões judiciais, entretanto, sejam elas proferidas em casos de aplicação clara dos termos de uma lei válida ou nos casos difíceis, devem fundar-se, ao contrário, em princípios e não em políticas (ainda que a lei, nos casos ditos fáceis ou claros, tenha sido gerada por uma determinada política).
Assim, a possibilidade positivista de os juízes - valendo-se de argumentos de política sob o manto da discricionariedade - se equipararem aos legisladores fica rechaçada, já que as atividades legislativa e judicial são distintas. Carvalho Netto e Scotti (2011, p. 57-58) destacam que a tarefa legislativa abre as portas para os argumentos éticos e pragmáticos típicos da formatação das políticas públicas, voltadas para a realização de objetivos e bens coletivos. Já a tarefa jurisdicional caracteriza-se por ser um fórum de princípios, em que os respectivos argumentos remetem ao conteúdo moral dos direitos fundamentais, os quais, resguardando direitos de indivíduos ou grupos, funcionam como filtros seletivos e condicionadores da recepção das políticas públicas.
[...] portanto, é o conteúdo moral traduzido para o código especificamente jurídico que confere aos direitos fundamentais o status de incondicionalidade em face dos demais bens ou valores sociais. Da incondicionalidade dos direitos resulta seu funcionamento como trunfos em face de possíveis abusos justificados com base em políticas de maximização de finalidades coletivas (CARVALHO NETTO e SCOTTI, 2011, p. 74, grifos do original)
Essas premissas do pensamento de Dworkin afiguram-se como distinções essenciais à busca da resposta correta para um caso difícil. A necessidade, entretanto, de os juízes descobrirem os direitos das partes – sem inventá-los para aplicá-los retroativamente, como faz o positivismo -, não vem assegurada por Dworkin em algum procedimento mecânico. Dessa forma, Dworkin pressupõe que os aplicadores do Direito frequentemente irão divergir quanto aos direitos das partes no caso concreto (DWORKIN, 2007a, p. 127-128).
Ao contrário de procedimentos mecânicos ou de uma postura mecânica como forma de operar o Direito, Dworkin irá propor determinadas posturas aos juízes, que os levem a encarar o Direito na sua integridade, interpretando-o construtivamente, como um produto de uma comunidade de princípios – e não de regras.
Segundo Dworkin (2007b, p. 253-255), uma verdadeira comunidade de princípios caracteriza-se pelo fato de que seus membros aceitam que seus destinos estão fortemente ligados por serem governados por princípios comuns e não por simples regras criadas por acordos políticos envolvendo interesses antagônicos. Assim, seus direitos e deveres não se exaurem nos limites das regras gerais aprovadas, ficando na dependência geral dos princípios que essas regras pressupõem e endossam.
Por ser uma sociedade moralmente pluralista, prossegue Dworkin (2007b, p. 256-258), cada um de seus membros deve respeitar “os princípios do sentimento de equidade e de justiça da organização política vigentes em sua comunidade particular” (que podem ser diferentes dos de outras comunidades). Na busca pela justiça, ninguém deve ser excluído ou sacrificado. O interesse de cada um dos membros deve ser um interesse pelo bem estar de todos, não um interesse que busca aproximar-se do outro apenas para fazer valer os próprios interesses, mediante o estabelecimento de regras ou acordos nesse sentido. Ademais, exige-se a compreensão de que cada pessoa possui igual dignidade e, portanto, deve ser tratada com igual interesse.
Essas são posturas requeridas do operador do Direito nas tarefas jurisdicionais de uma comunidade de princípios. Elas ensejam a autoridade moral da sociedade para reivindicar que suas decisões coletivas voltam-se à fraternidade e constituem uma questão de obrigação, não de poder (DWORKIN, 2007b, p. 258).
Dworkin (2007b, p. 258-259) faz a importante ressalva de que nada nas posturas arroladas “sugere que os cidadãos de uma nação, ou mesmo de uma comunidade política menor, sintam ou devam sentir entre si uma emoção que pudéssemos chamar de amor”. O que se postula é que as instituições detentoras de autoridade devotem um tratamento que reflita o igual respeito e consideração a cada pessoa (CARVALHO NETTO e SCOTTI, 2011, p. 75-76).
Munida dessas posturas, a integridade na deliberação judicial requer dos juízes que tratem o sistema de normas como a expressão de um conjunto coerente de princípios, e, sob tal ótica, que interpretem tais normas de forma a desvelar normas implícitas no bojo e entre as normas explícitas (DWORKIN, 2007b, p. 261). Dada a estrutura aberta e indeterminada dos princípios - que não tentam regular aprioristicamente seus campos de incidência -, sua interpretação coerente ocorre precisamente nas situações concretas, dotadas de unicidade e irrepetibilidade, cujas características precisam ser devidamente resgatadas do ponto de vista de todos os envolvidos, à luz das pretensões normativas aduzidas por cada um deles e dos princípios que concorrem para regular a situação, ainda que de maneira oposta – pois é decorrência da integridade que os princípios devem ser considerados conjuntamente (posto que complementares) e não isoladamente (CARVALHO NETTO e SCOTTI, 2011, p. 63-64 e 66).
A coerência que se exige na compreensão da integridade no direito não se exaure, por sua vez, na repetição de decisões anteriores adotadas pelas instituições de uma comunidade, ou seja, não se encerra na decisão de casos semelhantes da mesma maneira (analogia). “A integridade exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção” (DWORKIN, 2007b, p. 264). Isso significa que o recurso à história institucional ou à prática jurídica histórica (legislativa, judicial) é relevante, mas não determinante da única resposta correta.
Dworkin busca no interior do próprio direito as respostas para questões supostamente apontadoras de “lacunas” no ordenamento (ausência de regramento específico). O recurso à história institucional e ao pano de fundo compartilhado de sentidos também se faz necessário mas, ao contrário da hermenêutica, esse arcabouço não deve ser aprendido como tradição inescapável, já que a própria atribuição de conteúdo moral (abstrato e universal) aos direitos fundamentais positivados oferece uma perspectiva crítica – um crivo de validade – para a consideração das tradições e da possibilidade de sua recepção para a solução de casos atuais (CARVALHO NETTO e SCOTTI, 2011, p. 70-71, grifos do original).
Como forma de viabilizar esse crivo crítico dos direitos fundamentais à recepção das tradições insculpidas na história institucional de uma dada comunidade, ou seja, para que elas não se eternizem como algo legítimo somente porque historicamente tradicionais, desenvolve Dworkin a chamada interpretação construtiva.
A interpretação construtiva volta-se para a compreensão do Direito enquanto prática social. Traçando um paralelo com a interpretação artística, Dworkin (2007b, p. 61) assevera que tanto a interpretação das práticas sociais quanto das obras de arte buscam a interpretação de algo criado pelas pessoas como algo distinto delas – diferentemente da interpretação conversacional (em que se interpreta o que as pessoas dizem) ou da interpretação científica (que interpreta fatos não criados por pessoas).
Tanto a interpretação das práticas sociais quanto a das obras de arte buscam, igualmente, apreender intenções ou propósitos - e não causas. Entretanto, segundo defende Dworkin (2007b, p. 62-64), as intenções ou propósitos em jogo não são os do autor (como se se estivesse diante de um caso especial de interpretação conversacional), mas sim, fundamentalmente, os do intérprete, de sorte que, “em linhas gerais, a interpretação construtiva é uma questão de impor um propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou do gênero aos quais se imagina que pertençam”.
Contudo, na interpretação construtiva, o intérprete não está livre para fazer de uma prática social ou objeto artístico o que bem entender, segundo seus desejos ou propósitos. O que há é uma interação entre o propósito e o objeto (DWORKIN, 2007b, p. 64), que opera, consoante destacam CARVALHO NETTO e SCOTTI (2011, p. 78), da seguinte maneira:
Atribui-se um propósito a um objeto ou a uma prática, tornando-o o melhor possível em face de seu contexto temático. O que não quer dizer que o objeto não imponha limites à interpretação; a própria natureza intersubjetiva, paradigmática da interpretação vai exigir condições de plausibilidade para qualquer interpretação, especialmente em face de uma história minimamente compartilhada. Sua validação é portanto, ao final, discursiva na verificação de racionalidade.
Com isso, tem-se que, se o propósito não é simplesmente formulado em desrespeito à história institucional, devendo tomar em consideração tudo o que até ali foi feito, por outro lado ele impede que haja simples reiteração do que até ali restou configurado ou decidido. Tal como num romance em cadeia, escrito a várias mãos, cada operador do Direito deve atentar para o que já foi escrito/feito, mas deve escrever seu próprio capítulo de modo a dar prosseguimento à “narrativa” da melhor maneira possível (DWORKIN, 2007b, p. 276).
3. CONCLUSÃO
Busca-se, assim, com a teoria de Dworkin, uma maneira de pensar e fazer o Direito que parta da necessidade da exata compreensão dos fatos, em sua irrepetibilidade e unicidade, sob os vários ângulos possíveis, como forma de entender a complexidade da situação e assim decidir da maneira mais adequada ou correta, respeitando-se não só a segurança proporcionada pelas formas ou pelo devido processo legal (as regras e procedimentos previamente estabelecidos), como também os critérios de correção moral, ou seja, os direitos fundamentais discursivamente fundamentados (CARVALHO NETTO e SCOTTI, 2011, p. 69-70).
Com essa abertura para a complexidade de toda situação de aplicação, o aplicador deve exigir então que o ordenamento jurídico apresente-se diante dele, não através de uma única regra integrante de um todo passivo, harmônico e predeterminado que já teria de antemão regulado de modo absoluto a aplicação de suas regras, mas em sua integralidade, como um mar revolto de normas em permanente tensão concorrendo entre si para regerem situações (CARVALHO NETTO, 1999, p. 483).
Não se procurou, evidentemente, esgotar o pensamento de Dworkin, mas apenas trazer à discussão alguns pontos-chave de sua doutrina, como forma de chamar a atenção para sua complexidade e a complexidade dos próprios desafios que os operadores do Direito encontram em suas atividades.
REFERÊNCIAS
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 3, p. 473-486, 1999.
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007a.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007b.
PROCURADOR FEDERAL. GRADUADO EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ - UFC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Igor Chagas de. Interpretação e aplicação do direito no estado democrático de direito: o pensamento de Dworkin Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 dez 2014, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42682/interpretacao-e-aplicacao-do-direito-no-estado-democratico-de-direito-o-pensamento-de-dworkin. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Marco Aurelio Nascimento Amado
Por: Marcos Antonio Duarte Silva
Por: RODRIGO KSZAN FRANCISCO
Por: Adel El Tasse
Precisa estar logado para fazer comentários.