RESUMO: Trata-se a presente proposta de discussão acerca da possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica nos crimes ambientais no Brasil, a partir do advento da Lei de Crimes Ambientais, Lei nº 9605/98.
Palavras-chave: Pessoa jurídica, crime ambiental, meio ambiente.
A responsabilidade penal da pessoa jurídica pela prática de danos ao meio ambiente está prevista no artigo 3º da Lei n.º 9.605/98.
Nos sistemas penais regidos pelo principio da societas deliquere non poteste, somente o ser humano tem a capacidade para delinquir. Tal entendimento é baseado na teoria da ficção de Saviny, a qual o homem é que tem capacidade para dirigir sua vontade no mundo exterior.
Segundo Damásio Evangelista de Jesus, em sua obra Direito Penal, V. 1, 23ª Ed. SP, Saraiva, 1999, no tocante à teoria da ficção jurídica, traduz que:
“A personalidade jurídica, ao contrário, somente existe por determinação da lei e dentro dos limites por esta fixados. Faltam-lhe os requisitos psíquicos da imputabilidade. Não tem consciência e vontade próprias. É uma ficção legal. Assim, não tem capacidade penal e, por conseguinte, não pode cometer crimes. Quem por ela atua são seus membros, diretores, seus representantes. Estes sim são penalmente responsáveis pelos crimes cometidos em nome dela.”
Segundo Guilherme de Souza Nucci, os principais argumentos doutrinários contrariamente à responsabilização penal da pessoa jurídica decorrem do fato de esta não possuir vontade própria, suscetível a configurar o dolo e a culpa, que são elementos indispensáveis para a configuração dos delitos penais.
Nesse sentido, é o entendimento de Paganella Boschi, in Das Penas e Seus Critérios de Aplicação:
“Já o texto do § 3º doa artigo 225 da Constituição Federal apenas reafirma o que é do domínio público, ou seja, que as pessoas naturais estão sujeitas a sanções de natureza administrativa. O legislador constituinte, ao que tudo indica, em momento algum pretendeu, ao elaborar o texto da Lei Fundamental, quebrar a regra por ele próprio consagrada (art. 5º, inciso XLV) de que responsabilidade penal é, na sua essência, inerente só aos seres humanos, pois estes, como afirmamos antes, são os únicos dotados de consciência, vontade e capacidade de compreensão do fato e de ação (ou omissão) conforme ou desconforme com o direito”.
Outro fundamento contrário à possibilidade de penalização da pessoa jurídica é que as penas à ela destinadas não poderiam ser privativas de liberdade, pois, estas constituem a essência principal do direito penal e, para se aplicar uma mera pena de multa à pessoa jurídica, bastava-se invocar normas extrapenais (administrativas ou cíveis).
Por sua vez, uma segunda corrente defende a possibilidade de a pessoa jurídica responder como autora dos crimes ambientais, ao argumento de que esta possui vontade própria, não apenas porque detêm existência real, mas também porque são entes socialmente reconhecidos.
Ademais, há casos de responsabilidade objetiva no direito penal, tal como na embriaguez voluntária, desde que não seja preordenada.
No que concerne às penas privativas de liberdade, estas não constituem meta principal a ser alcançada pelo direito penal, pois, cada vez mais os legisladores vêm inovando juridicamente, para possibilitar a aplicação de penas restritivas de direitos.
Ademais, quanto ao caráter personalíssimo da pena, ressalte-se que a sanção incidirá sobre a pessoa jurídica e não sobre o sócio desta, pois o eventual prejuízo indireto ao sócio poderá ocorrer ou não.
Segundo Gilberto Passos de Freitas e Vladimir Passos de Freitas, em Crimes contra a Natureza:
“ora, deixar a ação preventiva e repressiva apenas na esfera administrativa e por conta apenas dos órgãos ambientais é relegar a proteção do meio ambiente à falta de efetividade. Ao contrário, agentes do Ministério Público e Juízes, com as garantias constitucionais e plena autonomia no exercício de suas funções podem exercer, com os poderes da Lei Penal Ambiental, um papel relevante na preservação do meio ambiente.”
A responsabilidade penal da pessoa jurídica é uma necessidade que se impõe no mundo hodierno, pois tanto as pessoas físicas, quanto as jurídicas estão, cada vez mais, preocupadas na manutenção de um status que somente poderá ser alcançado se sua imagem não estiver maculada criminalmente.
Silvio de Sávio Venosa, in Direito Civil, v. IV, 4ª Ed. SP, Atlas, 2004, admite a responsabilidade objetiva, na modalidade do risco integral, a saber:
“Basta, portanto, que o autor demonstre o dano e o nexo causal descrito pela conduta e atividade do agente. Desse modo, não se discute se a atividade do poluidor é lícita ou não, se o ato é legal ou ilegal no campo ambiental, o que interessa reparar é o dano. Verificamos, portanto, que, em matéria de dano ambiental, foi sob a modalidade do risco integral. Desse modo, até mesmo a ocorrência de caso fortuito e força maior são irrelevantes. A responsabilidade é lastreada tão-só no fato de existir atividade da qual adveio prejuízo”.
O ordenamento jurídico não pode deixar de punir penalmente, tendo como argumento a ausência de culpabilidade.
Assim, a responsabilidadepenal das pessoas jurídicas não pode ser entendidaconforme a responsabilidade baseada na culpa, mas sim em conformidade com uma responsabilidadesocial. Ela seria impossível deser admitida dentro de um código penal pautado ao princípioda responsabilidade penal individual, devendo ser realizadoatravés de leis penais extravagantes.
Observa-se que tais argumentos estão ligados a umdireito penal condizente com a edição do Código Penal de1940, na qual se tem a responsabilidade penal individual, não tendo nenhuma referência em sua reforma em 1984, tendoem vista, como já dito, que a responsabilidade penal dapessoa jurídica só veio a surgir com o advento da Constituiçãode 1988. Assim deve-se o Direito Penal se moldar perante aConstituição.
Diversos doutrinadores, tanto do ramo do direitoambiental como do direito penal, não vislumbram mais esta discussão.
Conforme o pensamento de ÉdisMillaré, em sua obra Direito do Ambiente. 1ª ed., São Paulo:
“Portanto não cabe mais, diante da expressa determinação legal, entrar no mérito da velha polêmica sobre a pertinência da responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Melhor será exercitar e buscar os meios mais adequados para a efetiva implementação dos desígnios do legislador.”
E aplicando-se o melhor entendimento doutrinário acerca do tema, conclui-se que a responsabilidade penal da pessoa jurídica é perfeitamente cabível e aplicável às pessoas jurídicas de direito privado, não apenas por estar expressamente prevista na Constituição Federal, mas também por encontrar respaldo nas legislações extravagantes.
Por oportuno, ressalto, neste momento, o atual entendimento jurisprudencial dos principais tribunais superiores acerca do tema proposto neste trabalho.
EMENTA: “CRIMINAL. RESP. CRIME AMBIENTAL PRATICADO POR PESSOA JURÍDICA. RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DO ENTE COLETIVO. POSSIBILIDADE. PREVISÃO CONSTITUCIONAL REGULAMENTADA POR LEI FEDERAL. OPÇÃO POLÍTICA DO LEGISLADOR. FORMA DE PREVENÇÃO DE DANOS AO MEIO-AMBIENTE. CAPACIDADE DE AÇÃO. EXISTÊNCIA JURÍDICA. ATUAÇÃODOS ADMINISTRADORES EM NOME E PROVEITO DA PESSOA JURÍDICA.CULPABILIDADE COMO RESPONSABILIDADE SOCIAL.CO-RESPONSABILIDADE. PENAS ADAPTADAS À NATUREZA JURÍDICA DO ENTE COLETIVO. ACUSAÇÃO ISOLADA DO ENTE COLETIVO. IMPOSSIBILIDADE. ATUAÇÃO DOS ADMINISTRADORES EM NOME E PROVEITO DA PESSOA JURÍDICA. DEMONSTRAÇÃO NECESSÁRIA. DENÚNCIA INEPTA. RECURSO DESPROVIDO.
I. A Lei ambiental, regulamentando preceito constitucional, passou a prever, deforma inequívoca, a possibilidade de penalização criminal das pessoas jurídicas por danos aomeio-ambiente.
III. A responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delitos
ambientais advém de uma escolha política, como forma não apenas de punição das condutaslesivas ao meio-ambiente, mas como forma mesmo de prevenção geral e especial.
IV. A imputação penal às pessoas jurídicas encontra barreiras na suposta
incapacidade de praticarem uma ação de relevância penal, de serem culpáveis e de sofrerempenalidades.
V. Se a pessoa jurídica tem existência própria no ordenamento jurídico e
pratica atos no meio social através da atuação de seus administradores, poderá vir a praticarcondutas típicas e, portanto, ser passível de responsabilização penal.
VI. A culpabilidade, no conceito moderno, é a responsabilidade social, e a
culpabilidade da pessoa jurídica, neste contexto, limita-se à vontade do seu administrador aoagir em seu nome e proveito.
VII. A pessoa jurídica só pode ser responsabilizada quando houver intervençãode uma pessoa física, que atua em nome e em benefício do ente moral.
VIII. "De qualquer modo, a pessoa jurídica deve ser beneficiária direta ou
indiretamente pela conduta praticada por decisão do seu representante legal ou contratual
ou de seu órgão colegiado.".
IX. A Lei Ambiental previu para as pessoas jurídicas penas autônomas de
multas, de prestação de serviços à comunidade, restritivas de direitos, liquidação forçada edesconsideração da pessoa jurídica, todas adaptadas à sua natureza jurídica.
X. Não há ofensa ao princípio constitucional de que "nenhuma pena passará
da pessoa do condenado...", pois é incontroversa a existência de duas pessoas distintas: umafísica - que de qualquer forma contribui para a prática do delito - e uma jurídica, cada qualrecebendo a punição de forma individualizada, decorrente de sua atividade lesiva.
XI. Há legitimidade da pessoa jurídica para figurar no pólo passivo da relaçãoprocessual-penal.
XII. Hipótese em que pessoa jurídica de direito privado foi denunciada
isoladamente por crime ambiental porque, em decorrência de lançamento de elementosresiduais nos mananciais dos Rios do Carmo e Mossoró, foram constatadas, em extensãoaproximada de 5 quilômetros, a salinização de suas águas, bem como a degradação dasrespectivas faunas e floras aquáticas e silvestres.
XIII. A pessoa jurídica só pode ser responsabilizada quando houverintervenção de uma pessoa física, que atua em nome e em benefício do ente moral.
XIV. A atuação do colegiado em nome e proveito da pessoa jurídica é a
própria vontade da empresa.
XV. A ausência de identificação das pessoas físicas que, atuando em nome eproveito da pessoa jurídica, participaram do evento delituoso, inviabiliza o recebimentoda exordial acusatória.
XVI. Recurso desprovido”.(STJ - RECURSO ESPECIAL Nº 610.114 - RN (2003/0210087-0 )- RELATOR : MINISTRO GILSON DIPP – Quinta Turma – j. 17/11/2005 – www.stj.jus.br – grifo meu)
Diante do exposto acima, concluímos que a pessoa jurídica pode delinquir, tendo em vista que a teoria da ficção, adotada a partir da reforma da parte geral do Código Penal em 1984, diz que a pessoa jurídica não pode cometer crime é uma teoria ultrapassada em relação a Constituição Federal de 1988. Sendo que a teoria organista, que vê na pessoa jurídica um ser capaz de delinquir, enquadra-se muito melhor com a Constituição Federal de 1988.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FREITAS, Vladimir Passos e Gilberto Passos Freitas. Crimes Contra a Natureza. 7ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. v. 1, 23ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999.
MAGALHÃES, Juraci Perez. A evolução do Direito Ambiental no Brasil. 2ª ed., São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.
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SANTOS, Marcos André Couto Santos. Responsabilidade Penal das Pessoas Jurídicas de Direito Público por Dano Ambiental. Revista Direito Ambiental, ano 6, v. 24, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. v. IV, 4ª ed., São Paulo: Atlas, 2004.
Analista em direito do Ministério Público de Minas Gerais, pós graduada em direito administrativo e em direito penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Cleia Zille. A possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jan 2015, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42963/a-possibilidade-de-responsabilizacao-penal-da-pessoa-juridica-por-crimes-ambientais. Acesso em: 22 nov 2024.
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