Resumo: O presente estudo se propõe a analisar a possibilidade de um tipo penal, previsto no Código Penal, ser absorvido por uma infração tipificada na Lei de Contravenção Penal à luz do Princípio da Consunção. Para tanto, foi realizado um breve estudo sobre o denominado conflito aparente de normas com enfoque no princípio da consunção. A respeito do tema proposto, foram promovidas pesquisas doutrinária e jurisprudencial. Concluiu-se sobre a inaplicabilidade do princípio em questão nos casos em que um crime for a norma-meio e uma contravenção penal a norma-fim.
Palavras-Chave: Conflito Aparente de Normas. Princípio da Consunção. Crime. Contravenção. Impossibilidade de absorção.
Introdução
O presente artigo pretende discutir a possibilidade de um crime previsto no Código Penal ser absorvido por uma contravenção penal disciplinada na Lei de Contravenções Penais à luz do Princípio da Consunção.
Para que se possa compreender a aplicação do princípio em voga, é necessário que se faça, antes, uma breve explanação sobre o denominado conflito aparente de normas – critério utilizado para solucionar casos em que uma conduta delituosa aparentemente se insere em diversas disposições da lei penal.
Em sequência, será abordada a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que, em ação de habeas corpus, repeliu o emprego do princípio da consunção nos casos como o do tema proposto.
Por fim, serão tecidos comentários sobre a impossibilidade de aplicação do referido princípio quando um crime for a norma-meio e uma contravenção penal a norma-fim.
Desenvolvimento
O ordenamento jurídico brasileiro é composto por várias normas que devem ter, em princípio, unidade e coerência. A fim de se resguardar a segurança jurídica e a harmonia interna, cada norma deve incidir sobre um único fato. Contudo, quando uma conduta delituosa aparenta enquadrar-se em diversos dispositivos de leis, o intérprete do Direito Penal, para solucionar a questão, deve valer-se do “conflito aparente de normas”, também conhecido como “concurso aparente de normas ou de leis” (BITENCOURT, 2008, p. 199).
A respeito do tema, o professor Prado (2000, p. 130) preleciona:
O concurso aparente de leis penais (segundo alguns, concurso ideal impróprio, concurso aparente de tipos) diz respeito à interpretação e aplicação da lei penal. Verifica-se na situação em que várias leis são aparentemente aplicáveis a um mesmo fato, mas, na realidade, apenas uma tem incidência. Sendo assim, não há verdadeiramente concurso ou conflito, mas tão-somente aparência de concurso, visto que existe transgressão real de apenas uma lei penal, o que dá lugar também a um único delito.
Embora não haja uniformidade de opiniões, a doutrina costuma apontar os princípios da especialidade, subsidiariedade, consunção e alternatividade para dirimir o concurso de leis.
Nesse ponto, cumpre destacar o princípio da consunção, por ser ele objeto fundamental do presente estudo.
Sobre o princípio supracitado, ensina Prado (2000, p. 134):
[...] pelo critério, princípio ou relação de consunção, um determinado crime (norma consumida) é fase de realização de outro (norma consuntiva) ou é uma regular forma de transição para o último – delito progressivo. Isso significa, na primeira modalidade, que o conteúdo do tipo penal mais amplo absorve o de menor abrangência, que constitui etapa daquele, vigorando o princípio major absorbet minorem. Desse modo, os fatos “não se acham em relação de species a genus, mas de minus a plus, de parte a todo, de meio a fim”.
Fala-se em princípio da consunção nas seguintes hipóteses, segundo Greco (2004, p. 33): “a) quando um crime é meio necessário ou normal fase de preparação ou de execução de outro crime; b) nos casos de antefato e pós-fato impuníveis”.
Pelo princípio em comento, pode-se ressaltar que uma norma mais ampla consome, integra a proteção parcial que outra norma menos ampla tem como finalidade proteger. O pensamento orientador desse princípio é impedir o “ne bis in idem”, ou seja, a dupla punição pelo mesmo fato (TOLEDO, 1999, p. 52). Portanto, a consunção somente seria empregável quando uma norma mais extensa (crime-fim) violada pelo agente fosse integrada por uma norma menos ampla (crime-meio).
Questão interessante a ser abordada é a da possibilidade de um crime tipificado no Código Penal ser absorvido por uma infração prevista na Lei de Contravenção Penal. No caso em questão, seria possível empregar o princípio da consunção?
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal analisou a tese em julgamento recente, no bojo do Habeas Corpus n° 121652/SC, em 22/04/2014. Na ocasião, os Ministros, por unanimidade de votos, decidiram no seguinte sentido:
HABEAS CORPUS. PENAL. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. ALEGAÇÃO DE QUE O CRIME DE FALSO (ART. 304 DO CP) CONSTITUI MEIO DE EXECUÇÃO PARA A CONSUMAÇÃO DA INFRAÇÃO DE EXERCÍCIO ILEGAL DA PROFISSÃO (ART. 47 DO DL Nº 3.688/41). NÃO OCORRÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE UM TIPO PENAL PREVISTO NO CÓDIGO PENAL SER ABSOLVIDO POR UMA INFRAÇÃO TIPIFICADA NA LEI DE CONTRAVENÇÕES PENAIS. ORDEM DENEGADA. 1. O princípio da consunção é aplicável quando um delito de alcance menos abrangente praticado pelo agente for meio necessário ou fase preparatória ou executória para a prática de um delito de alcance mais abrangente. 2. Com base nesse conceito, em regra geral, a consunção acaba por determinar que a conduta mais grave praticada pelo agente (crime-fim) absorve a conduta menos grave (crime-meio). 3. Na espécie, a aplicabilidade do princípio da consunção na forma pleiteada encontra óbice tanto no fato de o crime de uso de documento falso (art. 304 do CP) praticado pelo paciente não ter sido meio necessário nem fase para consecução da infração de exercício ilegal da profissão (art. 47 do DL nº 3.688/41) quanto na impossibilidade de um crime tipificado no Código Penal ser absorvido por uma infração tipificada na Lei de Contravenções Penais. 4. Habeas corpus denegado. (BRASIL, 2014 – grifo nosso).
Vislumbra-se, desse modo, que o Supremo Tribunal Federal entendeu por refutar a incidência do princípio da consunção nos casos em que um delito previsto no Código Penal for a norma-meio e uma infração penal prevista na Lei de Contravenções Penais for a norma-fim.
Conclusão
Observa-se, assim, que a aplicação do princípio da consunção encontra no âmbito do Supremo Tribunal Federal a delimitação do seu uso quando a instância superior entende não ser possível a absorção de um crime previsto no Código Penal por uma infração penal tipificada na Lei de Contravenções Penais.
Admitir outra forma de pensar seria desvirtuar os dizeres do referido princípio ao absurdo de se permitir que um ilícito de menor contorno (infração de menor gravidade) praticado pelo agente retivesse em si uma norma de maior figura (infração de maior gravidade).
Referências
_____. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC 121652/SC, Rel. Ministro Dias Toffoli, Primeira Turma, julgado em 22/04/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-107 DIVULG 03-06-2014 PUBLIC 04-06-2014). Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28121652%2ENUME%2E+OU+121652%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/otnlk6f >. Acesso em: 01.01.2015.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral 1. 13 ed. atual. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 4 ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Ed. Impetus, 2004.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2000.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 1999.
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