RESUMO. O artigo 179, do Estatuto da Criança e do Adolescente, prevê a “oitiva informal” do adolescente, procedimento no qual o adolescente é inquirido pelo membro do Ministério Público, para que este forme sua convicção sobre o cometimento do ato infracional. Entretanto, o dispositivo legal é omissão em relação à necessidade da presença da defesa técnica neste procedimento. A interpretação conjunta entre os princípios elencados no ECA, no Código de Processo Penal e, especialmente, na Constituição Federal, indicam no sentido da necessidade de ser assegurado o contraditório e a ampla defesa.
Palavras-chave: Ato infracional. “Oitiva informal”. Contraditório e ampla defesa. Ausência de defesa técnica. Nulidade.
INTRODUÇÃO
O presente artigo trata sobre a legalidade e constitucionalidade da chamada “oitiva informal” promovida pelo membro do Ministério Público, juntamente com o adolescente suspeito de cometer ato infracional.
O procedimento previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente não prevê a necessidade de acompanhamento da defesa ou do responsável pelo adolescente nesta audiência. Investiga-se, então, se há legalidade e constitucionalidade, aos olhos da doutrina e da jurisprudência, desta disposição legal.
1. Proteção constitucional à criança e ao adolescente
A Constituição Federal de 1988 prevê em seus artigos 226 e seguintes as diretrizes a serem seguidas, tanto pelo Estado quanto pela sociedade, no tratamento dispensado à criança e ao adolescente.
Neste sentido, a CF/1988 inovou o ordenamento jurídico ao modificar a natureza da relação jurídica existente com as crianças e adolescentes, abandonando a ótica do objeto de direito, passando a tratá-los como sujeitos de direito.
Com estas inovações, a criança e o adolescente passam a estar no centro das relações, devendo ter os seus direitos tratados com absoluta prioridade. Neste sentido, é a redação do artigo 227,in verbis:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
Além de ordenar a absoluta prioridade com a qual deverão ser tratadas as crianças e adolescentes, a CF/1988 elencou de modo exemplificativo no § 3º, do citado artigo, alguns direitos que deverão ser dispensados ao infante, dentre eles, alguns se referem especificamente ao cometimento de ato infracional e à sua respectiva apuração e processamento legal, conforme se observa abaixo:
§ 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica;
V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade;
Vê-se, assim, que o adolescente acusado do cometimento de ato infracional deverá ser assistido por defesa técnica e sua condição de peculiar pessoa em desenvolvimento deve, também, ser fielmente observada pelo aplicador do direito.
Outrossim, em obediência aos citados dispositivos constitucionais, o Estatuto da Criança e do Adolescente traz em seu bojo princípios norteadores da tutela da criança e do adolescente, dentre eles: proteção integral e absoluta prioridade, melhor interesse, dignidade da pessoa humana e, ainda, dispõe que gozarão de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa.
Insta salientar que todos estes princípios deverão ser observados em qualquer circunstância que envolver direitos do adolescente, especialmente quando acusado do cometimento de ato infracional, porquanto, é, em especialnesta situação de perigo,o momento no qual o adolescente requer maior atenção e cuidado, tendo em vista a sua situação de pessoa em desenvolvimento.
2. Princípios constitucionais aplicáveis na persecução penal
A Constituição Federal traz em seu artigo 5º um rol exemplificativo de direitos fundamentais. Neste rol há alguns direitos que são destinados de forma específica aos condenados ou acusados pelo cometimento de infrações penais.
Dentre estes direitos fundamentais há o princípio da reserva legal, da anterioridade, da individualização da pena, da humanidade da pena, da isonomia, do devido processo legal e do contraditório e da ampla defesa.
Assim, ao determinar que seja observado o devido processo legal para que qualquer pessoa possa vir a ser privada de sua liberdade, o inciso LIV, do referido artigo, impõe a observância de questões materiais e formais. Materiais no sentido de que as regras em processo penal deverão ser razoáveis; e formal no sentido de que o processo deve ser conduzido de acordo com a lei.
O contraditório se consubstancia na paridade de armas que deve haver entre as partes que figuram no processo. Deste princípio constitucional é que decorre a regra segundo a qual não se pode exigir que o acusado diga a verdade em depoimento, bem como poderá permanecer em silêncio, sem que esta atitude deponha contra o acusado.
Outrossim, há o princípio da ampla defesa, o qual se desdobra em autodefesa e defesa técnica. A defesa técnica deverá ser observada durante todo o desenrolar do processo, inclusive na fase inquisitorial.
Desta feita, todos os princípios acima explicitados deverão se aplicados ao procedimento de apuração do ato infracional. Muito embora seja cediço que o adolescente não comete propriamente crime ou contravenção penal, mas sim ato infracional, é sabido, também, que estes atos são equivalentes, mas sendo diverso o modo como são tratados pelo ordenamento jurídico.
3. Previsão legal do procedimento de investigação do ato infracional
O Estatuto da Criança e do Adolescente trata do processamento das medidas de socioeducativas aplicáveis diante da prática do ato infracional nos artigos 103 a 111, e, mais à frente, do artigo 171 ao 190.
Assim, o artigo 111 elenca as garantias asseguradas ao adolescente no curso do processamento do ato infracional, dentre elas o direito à paridade de armas e da defesa técnica. Portanto, não há razão a se considerar legítima a norma que viola estas garantias asseguradas ao adolescente.
Em seguida, o artigo 114 dispõe que haverá aplicação de medida socioeducativa quando restar comprovada a materialidade a autoria da infração.
No que tange à apreensão do adolescente, indica que somente será viável na hipótese de flagrante de ato infracional ou de determinação judicial escrita e fundamentada. Havendo a apreensão em flagrante, esta deverá ser comunicada imediatamente à autoridade judicial, e não em lapso de 24 horas, como ocorre no processo penal.
Mais à frente, o artigo 141 assegura à criança e ao adolescente o acesso à Defensoria Pública, o que se mostra de suma importância, uma vez que esta assistência será necessária em todo o procedimento de apuração do ato infracional. A interpretação conjunta deste dispositivo com o artigo 206, caput e parágrafo único, também do ECA, demonstra que não é legítimo o procedimento de “oitiva informal” sem a presença da defesa técnica do adolescente, porquanto, lhe é assegurada a intervenção do advogado ou do Defensor Público em todas as fases procedimentais, sejam elas judiciais ou administrativas.
Art. 206. A criança ou o adolescente, seus pais ou responsável, e qualquer pessoa que tenha legítimo interesse na solução da lide poderão intervir nos procedimentos de que trata esta Lei, através de advogado, o qual será intimado para todos os atos, pessoalmente ou por publicação oficial, respeitado o segredo de justiça.
Parágrafo único. Será prestada assistência judiciária integral e gratuita àqueles que dela necessitarem.
O artigo 178 demonstra preocupação do legislador em proteger os direitos fundamentais do adolescente, bem como atender ao princípio da absoluta prioridade e atenção à sua condição de pessoa em desenvolvimento, posto que proíbe a condução do adolescente em compartimento fechado do veículo policial, ou seja, no “camburão”.
Por fim, o artigo 179 prevê a chamada “oitiva informal”, nos seguintes termos:
Art. 179. Apresentado o adolescente, o representante do Ministério Público, no mesmo dia e à vista do auto de apreensão, boletim de ocorrência ou relatório policial, devidamente autuados pelo cartório judicial e com informação sobre os antecedentes do adolescente, procederá imediata e informalmente à sua oitiva e, em sendo possível, de seus pais ou responsável, vítima e testemunhas.
Duas informações sobre este dispositivo são relevantes. A primeira é a omissão do legislador sobre a necessidade da presença da defesa técnica; a segunda é o fato de que durante a “oitiva informal”, o Ministério Público estará promovendo à colheita de prova para eventual futura ação para apuração de ato infracional e aplicação de medida socioeducativa.
Ademais, o art. 226 ordena que seja aplicado subsidiariamente ao processamento dos atos infracionais o quanto disposto no Código de Processo Penal.
O princípio do nemo tenetur se detegere está presente tanto na Constituição Federal quanto no CPP, e se refere ao direito do investigado em permanecer calado e não ser o silêncio utilizado em seu desfavor. Embora não esteja descrito expressamente no ECA, é indubitável que em seu âmbito deverá ser aplicado, podendo o adolescente permanecer em silêncio durante a “oitiva informa”.
4. Entendimento jurisprudencial
O Superior Tribunal de Justiça, no que é seguido pelos demais Tribunais de Justiça dos Estados, possui entendimento no sentido de que não há nulidade na ausência de defesa técnica acompanhando o adolescente no momento em que o Ministério Público procede à “oitiva informal”.
Em um primeiro momento, ainda no ano de 2010, o entendimento era no sentido de não haver nulidade nem irregularidade na ausência de defesa técnica na oitiva informal. No julgado do STJ abaixo colacionado, prevalece entendimento de que sequer deveria submeterao crivo do contraditório e da ampla defesa.
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – ECA. HABEAS CORPUS. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO AO CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. AUDIÊNCIA DE OITIVA INFORMAL. ART. 179 DO ECA. AUSÊNCIA DE DEFESA TÉCNICA. NULIDADE. PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL. SUBMISSÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. DESNECESSIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO-CONFIGURADO. ORDEM DENEGADA.
1. A audiência de oitiva informal tem natureza de procedimento administrativo, que antecede a fase judicial, oportunidade em que o membro do Ministério Público, diante da notícia da prática de um ato infracional pelo menor, reunirá elementos de convicção suficientes para decidir acerca da conveniência da representação, do oferecimento da proposta de remissão ou do pedido de arquivamento do processo. Por se tratar de procedimento extrajudicial, não está submetido aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
2. Ordem denegada.
(HC 109.242/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 04/03/2010, DJe 05/04/2010) (grifou-se)
De outro lado, já no ano de 2011, percebe-se um indício de mudança de entendimento quanto ao tema, pois, apesar de prosseguir no sentido de não haver nulidade, a 6ª Turma do STJ passa a admitir que há irregularidade na ausência de defesa técnica na audiência de oitiva informal, podendo ser anulada, caso comprovado o prejuízo ao adolescente.
HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. OITIVA INFORMAL. ATO EXTRAJUDICIAL. AUSÊNCIA DE DEFESA TÉCNICA. NULIDADE. NÃO CONFIGURAÇÃO. IRREGULARIDADE DO ATO. INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO. CONFISSÃO RATIFICADA EM JUÍZO SOB O CRIVO DO CONTRADITÓRIO. ART. 563 DO CPP. ORDEM DENEGADA.
1. A ausência de defesa técnica na audiência de oitiva informal do menor perante o Ministério Público não configura nulidade, mas mera irregularidade.
2. Inexistindo prejuízo à Defesa, em razão da ratificação do depoimento do menor perante o Juízo competente, sob o crivo do contraditório, não há como reconhecer a nulidade apontada, nos termos do art. 563 do Código de Processo Penal.
3. Ordem denegada.
(HC 109.241/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 17/03/2011, DJe 04/04/2011) (grifou-se)
Após o julgamento do HC 109.241/SP, não houve novo posicionamento do STJ acerca do tema. Sobre o tema ainda não há posicionamento do Supremo Tribunal Federal.
Assim, ainda prevalece o entendimento esposado no último julgado acima explicitado, no sentido de que não há nulidade na ausência de acompanhamento por defensor no momento da “oitiva informal”.
5. Conclusão
O tema da legalidade da “oitiva informal” sem a presença do defensor já chegou a ser levantada no âmbito do Congresso Nacional, com a apresentação do Projeto de Lei nº 259/1999. Contudo, após aprovação pelo Legislativo, houve veto presidencial no ano de 2000.
Após quinze anos, assiste razão no retorno desta discussão à baila, tendo em vista a evolução do devido processo legal e dos demais princípios que assistem ao réu.
Deve-se levar em consideração que eventuais confissões efetuadas pelo adolescente em sede de “oitiva informal” poderão ser utilizadas em seu desfavor. Havendo o acompanhamento de defensor, o adolescente tem a possibilidade de melhor elaborar sua estratégia de defesa, não estando completamente vulnerável às inquirições do Parquet.
O adolescente que comete ato infracional encontra-se em situação de vulnerabilidade e, portanto, merece a proteção do Estado. A averiguação do ato infracional, diversamente das infrações penais, não tem como norte a retribuição pelo mal causado, mas sim natureza educadora e protetora do adolescente que se põe em situação de risco pela própria ação. Desse modo, não deve prevalecer a direito estatal à persecução penal em face dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.
Muito embora diversos tribunais de justiça decidam no sentido de que a oitiva informal do adolescente configura mero procedimento administrativo, e que, por isso, não deve observar o crivo do contraditório e da ampla defesa, este argumento não deve prosperar, uma vez que esta oitivaserve como elemento de convicção e prova do Ministério Público para a propositura da ação em face do adolescente.
Outrossim, os dispositivos presentes do Estatuto da Criança e do Adolescente devem ser interpretados sistematicamente, levando-se em consideração toda a legislação protetiva e os princípios esculpidos na Constituição Federal, como a ampla defesa, o contraditório, o nemo tenetur se detegere, a máxima proteção e atenção à condição de pessoa em desenvolvimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MASSON, Cleber. Direito Penal – Vol. 1 – Parte Geral. 7ª ed. Método. São Paulo. 2013.
BARROS, Guilherme Freire de Melo. Direito da Criança e do Adolescente – Coleção sinopses para concursos. 2ª ed. JusPodivm. Salvador. 2014.
DIGIÁCOMO, Murillo José e Outro. Estatuto de Criança e do Adolescente anotado e interpretado. 2ª ed. FTD. São Paulo. 2011.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: KHOURI, Ana Carolina Ivo. Legalidade da "oitiva informal" do adolescente pelo Ministério Público sem a presença do defensor Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 mar 2015, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43650/legalidade-da-quot-oitiva-informal-quot-do-adolescente-pelo-ministerio-publico-sem-a-presenca-do-defensor. Acesso em: 22 nov 2024.
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