As imagens retratadas na película “Abril Despedaçado”[1] demonstram a ligação sedutora da violência com o ser humano, algo natural e tradicional. Em meio ao sertão nordestino o longa-metragem registra uma briga entre famílias tradicionais, tendo como marco originário incerto/indeterminado. Nesse enredo de sangue, as batalhas entre as famílias da região deveriam subsistir respeitando certas “regras”, assim, a vingança de cada, ocasionada por algum ato da outra, deveria esperar até a próxima lua cheia e também o amarelamento natural do sangue jorrado na camisa do assassinado, seria o tempo de trégua.
Perduram dois pontos como os mais importantes do filme, primeiro a prisão intelectual, amorosa, desumana em que a família Breves vive, principalmente os dois herdeiros. Tonho, o irmão do meio, que tem o dever de vingar o sangue de seu irmão mais velho, é sentenciado pelo patriarca da outra família a morrer sem conhecer o amor, após executada sua “obrigação”. O mais interessante é como a rotina e a tradição prendem aqueles indivíduos sertanejos. A irritante fala do pai em relatar que não sobrou mais nada, petrifica cada vez mais os mesmos, retirando-lhes qualquer perspectiva e animo para uma luta de evolução, seja material ou como indivíduo.
Nesse contexto, menino – filho mais novo – retrata tal situação em uma fala: “A gente tá igual boi, roda e roda, mas não sai do lugar” ou quando alerta Tonho, “os boi tão andando sozinho”, o Professor Tiago Fabres de Carvalho[2] é preciso ao relatar tal situação, afirmando que “As rodas da bolandeira que o pai não cessa de girar, conduzidas pela brutalidade do chicote nos lombos dos bois, espelham uma temporalidade cíclica, repetível [...]”.
Outro ponto a se delimitar é a ausência de um Estado naquele território. Veja que em nenhum momento surge a figura de um líder, alguém que tenha o poder de regulamentar os conflitos, nesse sentido, tentar solucioná-los. Posto isso, os conflitos familiares vão se prolongando por gerações e gerações ininterruptamente.
E essa, sem dúvida, é a realidade do nosso sistema carcerário. A figura do punir hoje se apresenta como uma vingança institucional, com o mero fundamento no sofrimento/violação individual. Apesar de termos uma Lei de Execução Penal (LEP) fantástica – em seu ideário –, não conseguimos ver seus efeitos na realidade. Esse despreparo – descaso – estatal faz com que o Judiciário, que realiza seu papel, sofra com o ataque midiático, e consequentemente popular, que anseia por uma sociedade mais pacífica, menos violenta.
A ansiedade social encadeia um vício geral de prisão, colaborando com esse sistema prisional falido, que sem dúvidas nenhuma não representa a luta do judiciário moderno. A Constituição Federal delimita diversos direitos fundamentais, e a busca garantista, que por vezes é distorcida e tida como irreal, é efetivar o que já é prescrito constitucionalmente, um tratamento humano e não degradante a qualquer indivíduo, sendo o reeducando também sujeito legítimo para figurar nesse pólo, mesmo que muitos não enxerguem dessa maneira.
O surgimento das principais organizações criminosas[3] no Brasil é um exemplo peculiar de como a ausência Estatal, ao não garantir direitos mínimos, reflete negativamente em toda sociedade. Inicialmente o Comando Vermelho (CV), organização criminosa pioneira no Brasil, e depois o Primeiro Comando da Capital (PCC), nascem em instituições prisionais, que sofriam – sofrem – com uma estruturação precária e profissionais desestimulados.
Destarte, essa relação entre aparato prisional e o indivíduo se caracteriza como um ciclo vicioso, onde um ataca e o outro responde (com a mesma brutalidade). Portanto, qualquer semelhança entre o filme e a realidade carcerária brasileira não é mera coincidência.
Vivemos em um embate violento, sanguinário e sem perspectivas de bons resultados. Acrescentar indivíduos com idade inferior a 18 (dezoito) anos a esse meio, já ineficiente e nefasto, não irá produzir qualquer significante esperado. Apenas uma sensação retributiva deveras deficiente e inócua.
Muito assusta entendermos que esses sujeitos são o mal social. O problema que “profana” a sociedade está em um buraco muito mais embaixo, algo que transcende a figura dos “menores”. Nada mais é que hipocrisia direcionarmos o terror a essas figuras, que em porcentagem praticam algo em torna de 0,5% dos homicídios praticados em terras nacionais, segundo levantamento do Ministério da Justiça.
Procuram-se mudanças, ou melhor, aguardamos a conscientização de que o cárcere por si só não resolve, e os meios sancionadores alternativos devem receber maior valorização. Esperando e questionando sempre uma atuação: onde está o nosso Estado?
NOTAS:
[1] Abril Despedaçado é um filme suíço-franco-brasileiro de 2001, dirigido por Walter Salles e baseado no romance Prilli i Thyer de Ismail Kadare, adaptado por Karim Aïnouz[.
[2] CARVALHO, Thiago Fabres de. Processo Penal Eficiente e Ética da Vingança: Em busca de uma criminologia da não violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 99.
[3] Esta fragmentação do poder e as péssimas condições de vida dos internos vai ser o estopim para uma luta entre as facções, da qual sairá vencedora a facção que ficará conhecida como Comando Vermelho. Como se observa, as falanges Jacaré, Coréia, Zona Sul e Independentes comandavam a rotina de terror que submetia a todos os demais internos. A reação a estes crimes inicia-se de maneira discreta no “fundão”, localizado na Galeria B. (A Origem do Crime Organizado no Brasil: Conceito e Aspectos Históricos. Disponível em <http://www.mpce.mp.br/esmp/publicacoes/edi12011_f/artigos/ArianeBastosdeMendoncaMaia.pdf>.).
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