Professor orientador: Alcir Rocha (Advogado. Especialista em Direito Público. Mestrando em Direitos Fundamentais. Professor da Faculdade Guanambi).
RESUMO: Desde a antiguidade o crime de estupro é praticado, embora violências que hoje são descritas como estupro não recebiam tal denominação. Com o avanço da maneira de agir e pensar da sociedade quanto à violência sexual, surgiu-se a necessidade de adaptação das normas penais, passando a violência física e moral empregada à pessoa com finalidade sexual denominar-se estupro. Objetiva-se discutir acerca da possibilidade de configuração do crime de estupro na relação conjugal, dando ênfase à possibilidade de o marido figurar como sujeito ativo do crime, com amparo em Leis, doutrinas e jurisprudências. Verifica-se que alguns doutrinadores afirmam que não é possível a prática desse crime na relação conjugal, enquanto outros aceitam que é possível. Embora o ato sexual seja considerado um dever conjugal, isso não dá o direito ao cônjuge de praticar tal ato de forma forçada, podendo este diante da recusa injustificada do outro cônjuge em praticar o ato sexual, pedir a anulação do casamento com base na legislação civil. A relação sexual forçada por ameaça ou coação configura crime de estupro, podendo este crime ocorrer na relação conjugal, sendo possível o marido ou companheiro figurar no pólo ativo desse delito.
Palavras-chave: Casamento. Dever conjugal. Estupro marital. Família patriarcal.
(IM) POSSIBILITY OF LEGAL RAPE CRIME SETTING OF MARITAL RELATIONSHIP
ABSTRACT: Since ancient times the rape crime is practiced, although the violence that currently are described as rape did not receive such designation. With the improvement of acting and thinking of society as sexual violence, occur the requirement to adapt the criminal law, from the physical and moral violence apply to the person with sexual purpose be denominated rape. The objective of this paperwork is to discuss about the possibility of rape crime in the marital relationship, emphasizing the possibility of the husband appear as an active subject of this crime, grounded on laws, doctrines and jurisprudence. It concludes that some scholars assert that the practice of this crime in the marital relationship is impossible, while others accept that it is possible. Although sexual intercourse is considered a marital duty, it does not allows the husband to practice it forcefully, may require an marriage annulment based on civil law face of the unjustified refusal of the wife to practice the sexual act. Forced sexual intercourse caused by threat or coercion results rape crime, including in the marital relationship, can appear the husband or partner in an active subject of this crime.
Key words: Wedding. Marriage Duty. Marital Rape. Patriarchal family.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como tema a violência sexual na relação conjugal, que é assunto de grandes polêmicas desde a antiguidade, onde as mulheres eram vistas e tratadas como objeto dos seus maridos.
Discussão acerca da possibilidade de configuração do crime de estupro na relação conjugal teve início desde a sociedade patriarcal. Ao decorrer dos tempos, as mulheres passaram a conquistar direitos, como direito ao voto, ao trabalho renumerado, à educação, entre outros.
O crime de estupro é um delito praticado desde os primórdios da existência humana, pois a liberdade sexual da mulher não era vista como ponto central de determinado crime em épocas anteriores, devido às mesmas serem consideradas propriedade e objetos de seus maridos. Tendo como enfoque a busca incessante por igualdade de direitos equiparados entre homens e mulheres, esse direito passou a ser constitucionalmente amparado por leis. Neste contexto, há desrespeito à pessoa humana, em especial às mulheres que eram consideradas “mulheres sem honra”, como diziam antigamente, tais como as prostitutas, por terem um trabalho diferenciado dos outros, no qual se explora o trabalho com o corpo praticando ato sexual. Nesse sentido, caso uma prostituta fosse estuprada, a pena do estuprador não se equiparava à pena aplicada ao estupro de outras mulheres, realizando-se uma diferenciação em relação à conduta da mulher e não em relação à conduta do estuprador. Hoje em dia, esse conceito de mulher honesta foi banido do ordenamento jurídico brasileiro, por se entender que a honestidade e a honra são uma virtude das pessoas e independem da conduta de cada uma, sendo que todos têm direitos iguais perante a lei (BARBOSA, 2014).
Atualmente, o crime de estupro é previsto no artigo 213 do Código Penal, que prevê o seguinte: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos”.
Necessário se faz o estudo e análise dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo previsto na Constituição Federal e dos direitos e deveres inerentes ao casamento trazidos pelo Código Civil, que demonstra o respeito quanto à decisão da vítima e direito que esta tem sobre seu corpo, para verificar que é possível o estupro acontecer na relação conjugal ou na união estável. Desta forma, o marido ou companheiro que forçar ou constranger a sua esposa ou companheira à pratica de conjunção carnal, incorrerá no crime de estupro.
Embora sejam frequentes os casos em que mulheres são violentadas sexualmente pelos maridos, algumas delas não sabem que estão sendo estupradas e quando sabem sentem-se envergonhadas e têm medo de denunciar o agressor e essa situação acaba que perdurando por muito tempo.
O crime de estupro na relação conjugal existe, compreendendo como todos os atos praticados forçadamente contra a vontade da mulher.
EVOLUÇÃO HISTÓRICA E ANÁLISE DO CRIME DE ESTUPRO
O estupro é um crime previsto e punido em toda a sociedade civilizada, desde o início. Com a instalação do sistema patriarcal viu-se uma sociedade machista, onde a mulher era tida como uma mercadoria valiosa. O sistema patriarcal de certa forma permitiu a violência contra as mulheres, pois estas acreditavam que se restringiam apenas à reprodução e sexualidade passiva (SILVA, 2011).
Na legislação Hebraica, o quinto livro da Bíblia, Deuteronômio (XXII), previa pena de morte para o homem que forçasse a mulher desposada (prometida em casamento) a se casar com ele. Porém, se a mulher fosse virgem e não desposada, o autor do delito pagaria ao pai da vítima cinquenta ciclos de prata e ainda se casaria com a mesma.
O Código de Hamurabi em seus artigos 130, 131 e 132 previa formas de violência contra a mulher e suas respectivas penas.
130º - Se alguém viola a mulher que ainda não conheceu homem e vive na casa paterna e tem contato com ela e é surpreendido, este homem deverá ser morto, a mulher irá livre.
131º - Se a mulher de um homem livre é acusada pelo próprio marido, mas não surpreendida em contato com outro, ela deverá jurar em nome de Deus e voltar à sua casa.
132º - Se contra a mulher de um homem livre é proferida difamação por causa de um outro homem, mas não é ela encontrada em contato com outro, ela deverá saltar no rio por seu marido.
No Egito, a pena aplicada era a mutilação. Na Grécia, inicialmente aplicava-se pena de multa, depois passou a ser imposta pena de morte para aqueles que praticassem tal delito. No direito germânico, o crime também era punido severamente. No direito canônico, além de exigir o emprego de violência, exigia-se que a mulher fosse virgem, caso não fosse, não poderia ocorrer a prática desse crime (SILVA, 2011).
Embora o crime de estupro tenha levado um tempo para ser denominado, o nosso ordenamento jurídico sempre considerou crimes as condutas tipificadas no artigo 213 do atual Código Penal, artigo este, que hoje define o crime de estupro.
Nossa antiga legislação penal chamada de Ordenações Filipinas, sancionada em 1595, dividida em cinco livros, sendo a violência sexual prevista no livro V, Título XVIII. Aquele que praticasse estupro contra qualquer mulher receberia pena de morte, assim como também receberia esse tipo de pena, a pessoa que de alguma forma tivesse participado do delito, seja ajudando, prestando favor ou aconselhando. Para aqueles que praticassem cópula anal era aplicada pena de morte pelo fogo (SILVA, 2011).
No Código Criminal do Império (1930), ter cópula carnal por meio de violência ou ameaças, com qualquer mulher honesta, receberia pena de prisão de 3 a 12 anos e pagamento de um dote à ofendida. Caso a mulher vítima do crime fosse prostituta, a pena seria reduzida para 1 mês a 2 anos. Porém, se o autor do delito se casasse com a vítima ficaria isento de pena.
O Código Criminal de 1832 mesmo não trazendo ainda a designação do crime de estupro, previa para aquele que praticasse tal crime pena de trabalhos forçados.
Apesar de legislações anteriores prevê o crime de estupro, este só foi denominado no Código Penal de 1890 que definiu tal crime como sendo o ato pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, virgem ou não. Se a estuprada fosse mulher honesta, virgem ou não, a pena cominada para esse delito seria de prisão celular por um a seis anos. Entretanto, se a vítima fosse mulher pública ou prostituta a pena seria reduzida para seis meses a dois anos de prisão celular.
No Código Penal de 1940, o crime de estupro era definido como o ato de constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça, com pena reclusão de seis a dez anos. Portanto, somente mulheres poderiam figurar no pólo passivo do crime e somente homens, no polo ativo.
A anterior denominação do Título VI – “Dos crimes contra os costumes” – era reveladora da importância que o legislador de 1940 atribuía à tutela da moralidade sexual e do pudor público nos crimes sexuais em geral, ao lado, e, às vezes, acima da proteção de outros bens jurídicos relevantes como a integridade física e psíquica e a liberdade sexual. É o que se verificava claramente, por exemplo, na previsão como causa extintiva de punibilidade o casamento da ofendida com o autor do crime sexual, por se considerar este causa de desonra para a vítima e união em matrimonio uma forma de se reparar o mal causado pelo delito, mediante a restauração do conceito que usufruía ela no meio social (MIRABETE, 2010).
Surgiu-se a necessidade de adaptação das normas penais em virtude da evolução da sociedade em sua forma de pensar e agir quanto a matéria sexual, e adaptar-se também às inovações trazidas pela Constituição Federal de 1988, desta forma, a Lei nº 12.015/2009 provocou uma alteração da nomenclatura do Título VI da Parte Especial do Código Penal, abandonando a visão tradicional “dos costumes” e trazendo uma nova denominação dada ao Título VI, “Dos crimes contra a dignidade sexual”, bem jurídico tutelado no artigo 1 º, III, da Constituição Federal (NUCCI, 2014).
A lei 12.015/2009 trouxe ao direito positivo brasileiro uma nova acepção do vocábulo estupro: conjunção carnal violenta contra homem ou mulher (estupro em sentido estrito) e também o comportamento de obrigar a vítima, homem ou mulher, a praticar ou permitir que com o agente se pratique outro ato libidinoso. (SANCHES, 2013).
O informativo nº 505 do STJ a seguir faz uma análise do crime de estupro antes da edição da Lei 12.015/2009 e após a mesma.
DIREITO PENAL. NATUREZA HEDIONDA. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR COMETIDOS ANTES DA LEI N. 12.015/2009. FORMA SIMPLES. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. N. 8/2008-STJ).
Os crimes de estupro e atentado violento ao pudor cometidos antes da edição da Lei n. 12.015/2009 são considerados hediondos, ainda que praticados na forma simples. O bem jurídico tutelado é a liberdade sexual, não a integridade física ou a vida da vítima, sendo irrelevante que a prática dos ilícitos tenha resultado lesões corporais de natureza grave ou morte. As lesões corporais e a morte são resultados que qualificam o crime, não constituindo, pois, elementos do tipo penal necessários ao reconhecimento do caráter hediondo do delito, que exsurge da gravidade dos crimes praticados contra a liberdade sexual e merecem tutela diferenciada, mais rigorosa. Ademais, afigura-se inequívoca a natureza hedionda do crime de estupro praticado sob a égide da Lei n. 12.015/2009, que agora abarca, no mesmo tipo penal, a figura do atentado violento ao pudor, inclusive na sua forma simples, por expressa disposição legal, bem assim o estupro de vulnerável em todas as suas formas, independentemente de que a conduta venha a resultar lesão corporal ou morte. Precedentes citados do STF: HC 101.694-RS, DJe 2/6/2010; HC 89.554-DF, DJ 2/3/2007; HC 93.794-RS, DJe23/10/2008 ; do STJ: AgRg no REsp 1.187.176-RS, DJe 19/3/2012, e REsp 1.201.911-MG, DJe 24/10/2011. REsp 1.110.520-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 26/9/2012.
Com a Lei 12.015/2009, foi dada uma nova redação ao crime de estupro, alterando dois tipos penais previstos na redação original do Código Penal, o de estupro que era definido como o constrangimento da mulher à conjunção carnal e o de atentado violento ao pudor que punia o constrangimento de alguém à pratica de ato libidinoso, unificando esses dois tipos penais em somente um (MIRABETE, 2010).
Nucci (2009) apresenta o conceito do crime de estupro como o ato de:
Constranger (tolher a liberdade, forçar ou coagir) alguém (pessoa humana), mediante o emprego de violência ou grave ameaça, à conjunção carnal (cópula entre pênis e vagina), ou à prática (forma comissiva) de outro ato libidinoso (qualquer contato que propicie a satisfação do prazer sexual, como por exemplo, o sexo oral ou anal, ou o beijo lascivo), bem como a permitir que com ela se pratique (forma passiva) outro ato libidinoso.
O crime de estupro é delito bicomum, qualquer pessoa, homem ou mulher, pode figurar como sujeito passivo ou ativo do delito. Pune-se a prática de conjunção carnal ou atos libidinosos acompanhados de física ou moral. O meio de execução do crime é a violência (emprego de força física capaz de impedir a vítima de reagir) e grave ameaça (violência moral, direta, justa ou injusta). Nem sempre se faz necessário contato físico entre o autor e vítima, pratica o crime aquele que para a sua lascívia ordena que a vítima explore o seu corpo (masturbando-se) somente para contemplação (SANCHES, 2013).
O elemento subjetivo é o dolo. O delito consuma-se com a introdução, ainda que incompleta, do pênis na vagina e com a prática de qualquer ato libidinoso, e é admissível tentativa. O crime será qualificado quando da conduta do agente resultar lesão corporal de natureza grave, nesse caso, a pena aplicada será de reclusão, de oito a doze anos. Se a conduta do agente resultar em morte da vítima, a pena é de reclusão, de 12 a 30 anos. O crime será qualificado também se for cometido contra vítima menor de 18 ou maior de 14 anos (NUCCI, 2009).
Com a Lei 12.015/2009, entendemos que o crime de estupro passou a ser de conduta múltipla ou de conteúdo variado. Praticando o agente mais de um núcleo, dentro do mesmo contexto fático, não desnatura a unidade do crime. A mudança é benéfica para o acusado, devendo retroagir para alcançar os fatos pretéritos (SANCHES, 2013).
A regra é que o crime de estupro será de ação penal pública condicionada à representação da vítima ou de seu sucessor, nos termos do artigo 225 do Código Penal Brasileiro, sendo o crime de ação pública incondicionada somente quando fosse praticado contra menor de 18 anos.
Entretanto, em observância ao artigo 101 do Código Penal e da súmula 608 do Supremo Tribunal Federal o crime de estupro será de ação pública incondicionada.
Art. 101 do Código Penal:
Quando a lei considera como elemento ou circunstancias do tipo legal fatos que, por si mesmos, constituem crimes, cabe ação pública em relação àquele, desde que, em relação a qualquer destes, se deva proceder por iniciativa do Ministério Público.
Súmula 608 do STF:
No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal será incondicionada.
É relevante trazer a definição do crime de estupro trazida pela nossa atual legislação penal.
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. § 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2o Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos
A primeira conduta descrita no tipo penal é a do constrangimento à conjunção carnal. Conjunção carnal, para a lei é a cópula vagínica, completa ou incompleta entre homem e mulher, penetração do membro viril no órgão sexual da mulher, com ou sem o intuito de procriação. Já a segunda conduta descrita fala em constranger a vítima a praticar ou permitir que com ela se pratique outro ato libidinoso. Ato libidinoso é definido como todo ato lascivo, voluptuoso, dissoluto, destinado ao desafogo da concupiscência. Sendo também considerado ato libidinoso, o beijo aplicado de modo lascivo ou com finalidade erótica (MIRABETE, 2010).
A VITIMIZAÇÃO DA MULHER (ESPOSA)
Floresta (1989), primeira feminista do país que passou a defender e falar dos direitos das mulheres, uma vez que naquela época as mulheres não possuíam direito algum, escreveu seu primeiro livro: Direitos das mulheres e injustiça dos homens, escrito em uma época onde as mulheres possuíam apenas deveres, não podendo expressar opiniões em relação aos filhos, casamento, nem mesmo em relação a própria vida. Vivia-se uma sociedade patriarcal, as mulheres não tinham acesso nem sequer à educação, ficando submissas ao homem.
Por que [os homens] se interessam em nos separar das ciências a que temos tanto direito como eles, senão pelo temor de que partilhemos com eles, ou mesmo nos excedemos na administração dos cargos públicos, que quase sempre tão vergonhosamente desempenham? (FLORESTA, 1989).
Vivia-se em uma sociedade patriarcal, a mulher era vista como propriedade do homem, com finalidade apenas de gerar filhos e satisfazer os desejos e caprichos dos seus maridos. Desta forma, estas passaram a acreditar que sua existência estaria restrita a reprodução e a sexualidade passiva, ficando sujeitas às mais variadas formas de violência, físicas e psicológicas, praticadas pelo marido. Outro fator que contribui para aceitação desta submissão e violência por parte das mulheres é o fator da dependência financeira, uma vez que não era permitido que as mulheres trabalhassem.
A família patriarcal era a base da sociedade e desempenhava os papéis de procriação, administração econômica e direção política. A unidade da família devia ser preservada a qualquer preço, e, por isso, eram comuns os casamentos entre parentes, desta forma, a fortuna do clã e suas propriedades concentravam-se nas mãos do patriarca. A exploração da mulher pelo homem, característica de outros tipos de sociedade ou de organização social, mas notadamente do tipo patriarcal-agrário, tal como o que dominou longo tempo no Brasil, convém a extrema especialização ou diferenciação dos sexos. Os homens possuíam infinitas regalias, inclusive a de manter aventuras com criadas e ex-escravas, desde que fosse guardada certa discrição. No que se refere às mulheres, tudo que não se relacionasse com a procriação era proibido (COSTA, 2008).
Antigamente, o homem também tinha o direito de subjugar a mulher à conjunção carnal, com o emprego de violência ou grave ameaça, alegando exercício regular do direito, uma vez que o direito civil previa o debito conjugal, compreendido como direito/dever de ambos os cônjuges de manterem relações sexuais entre si (NUCCI, 2014).
Com a evolução da sociedade e realizações de movimentos feministas, as mulheres foram conquistando direitos, como direitos políticos, à educação, ao trabalho renumerado, a pratica sexual sem finalidade reprodutiva e até mesmo fora do casamento, entre outros. Passaram a conquistar o seu espaço na sociedade e o reconhecimento dos seus valores por parte da mesma.
O movimento feminista brasileiro foi um ator fundamental nesse processo de mudança legislativa e social, denunciando desigualdades, propondo políticas públicas, atuando junto ao Poder Legislativo e, também, na interpretação da lei. Desde meados da década de 70, o movimento feminista brasileiro tem lutado em defesa da igualdade de direitos entre homens e mulheres, dos ideais de Direitos Humanos, defendendo a eliminação de todas as formas de discriminação, tanto nas leis como nas práticas sociais. De fato, a ação organizada do movimento de mulheres, no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, ensejou a conquista de inúmeros novos direitos e obrigações correlatas do Estado, tais como o reconhecimento da igualdade na família, o repúdio à violência doméstica, a igualdade entre filhos, o reconhecimento de direitos reprodutivos, etc. (BARSTED, 1999).
Até os dias atuais, essa sociedade machista que desde os primórdios existiu, ainda se faz presente. Ainda existe na sociedade a figura da “dominação masculina”, expressão esta, que é titulo do livro do filósofo Pierre Bourdieu, onde o autor discute o papel do homem e da mulher na sociedade, dando ênfase à posição da mulher na sociedade e sua dominação em relação ao homem.
Uma sociologia política de alto sexual faria ver que, como sempre se dá em uma relação de dominação, as práticas e as representações dos dois sexos não são, de maneira alguma, simétricas. Não só porque as moças e os rapazes têm, até mesmo nas sociedades euro-americanas de hoje, pontos de vista muito diferentes sobre a relação amorosa, na maior parte das vezes pensada pelos homens com a lógica da conquista (sobretudo nas conversas entre amigos, que dão bastante espaço a um contar vantagens a respeito das conquistas femininas), mas também porque o ato sexual em si é concebido pelos homens como forma de dominação, de apropriação, de “posse” (BOURDIEU, 2002).
O legislador infraconstitucional diante das situações de violência contra a mulher viu-se que tais situações mereciam atenção jurídica especial. A mulher sempre foi desprestigiada no âmbito jurídico, no sentido de que não gozava ela de igualdade de direitos com o homem. Atualmente a Constituição Federal consagra igualdade de direitos e obrigações entre o homem e a mulher (SANTOS, 2013).
Destaca-se o princípio da igualdade previsto no artigo 5º, I, da Constituição Federal, entre as conquistas em relação às mulheres. As mulheres lutaram para que o princípio da igualdade ficasse bem evidenciado, evitando, assim, interpretações restritivas. Com o intuito de assegurar efetividade ao princípio da igualdade também na esfera privada, os constituintes introduziram, no capítulo destinado à família, o artigo 226, parágrafo 5º: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. Embora possa parecer desnecessário em face da igualdade prevista pelo artigo 5º, esse artigo representa um instrumento de superação das desigualdades sofridas pelas mulheres na esfera privada, já que as desigualdades mais acentuadas sofridas pelas mulheres ocorrem na esfera das relações domésticas. (COSTA, 2008).
Grande conquista também para as mulheres foi a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que visa punir aos homens que agridem fisicamente ou psicologicamente a uma mulher, tendo como finalidade a prevenção e cessação à violência doméstica e familiar contra a mulher.
A referida Lei foi decretada pelo Congresso Nacional, e em seguida, sancionada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 07 de agosto de 2006. Em sua introdução a lei faz menção ao artigo 226 da Constituição Federal, este que em seu §8º diz que “O estado assegurará assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismo para coibir a violência no âmbito de suas relações”. O artigo 5º do mesmo diploma legal, em seu caput, afirma que todos são iguais perante a lei. Diante o exposto surgem discussões acerca da constitucionalidade da referida lei uma vez que a mesma se destina e limita apenas ao sexo feminino.
A Lei Maria da Penha trouxe transformações na legislação penal, procedendo à alteração do Código Penal quando incrementou as penas referentes ao crime de violência doméstica e determinou procedimento de ordem processual que garanta assistência e proteção à mulher ofendida. Inclusive o artigo 41 desta lei, determina que os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher não se aplicarão a Lei 9.099/95 que é a Lei dos Juizados Especiais Criminais (SANTOS, 2013).
DEVERES CONJUGAIS
A Constituição Federal reservou um espaço para tratar da família, em seu artigo 226 explica que ela é a base da sociedade e merece especial proteção do estaco. O §8º deste artigo, preconiza que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, devendo o Estado criar mecanismos para coibir a violência doméstica.
A sociedade clássica e tradicional ao falar em relação conjugal se refere a duas modalidades de relação, a saber, casamento e união estável. Em parte da sociedade contemporânea, é aceito e visto como válida a relação conjugal entre pessoas do mesmo sexo, ou seja, casamento ou união estável entre homossexuais.
O casamento é uma espécie de contrato civil realizado entre pessoas, e após este, os cônjuges passam a serem sujeitos de direitos e deveres o artigo 1.566 do Código Civil Brasileiro estabelece alguns deveres atribuídos aos cônjuges aos contraído o casamento:
São deveres de ambos os cônjuges:
I – fidelidade recíproca;
II – vida em comum, no domicílio conjugal;
III – mútua assistência;
IV – sustento, guarda e educação dos filhos;
V – respeito e consideração mútuos.
O não cumprimento de qualquer um desses deveres pode conduzir à separação do casal, independentemente da vontade do outro cônjuge. O Código Civil em seu artigo 1557 dispõe alguns erros essenciais sobre a pessoa do outro cônjuge que, se ocorrerem, podem acarretar na anulação do casamento, desde que dentro respeitando o prazo de até três anos após sua celebração. Situações previstas no mencionado artigo: quando o cônjuge oculta fatos que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama no meio social; a ignorância de crime praticado antes do casamento e a ignorância que um dos cônjuges tem grave doença mental ou defeito físico irremediável ou de moléstia grave e transmissível (COSTA, 2008).
Já a união estável entre um homem e uma mulher, assim como o casamento, também é uma entidade familiar, sendo merecedora da proteção do Estado, pois conta com a mesma dignidade e importância do casamento. E uma relação onde as pessoas manifestam interesse em construção de uma família, não exigindo que estes vivam sob o mesmo teto, mas que prove de alguma forma essa relação de convivência, inclusive estes pode haver a realização de contrato dispondo sobre os bens dos companheiros. A lei não estabelece o tempo de convivência para que possa comprovação da união estável (SIMÃO et al., 2010).
Ressaltando que, com o ingresso da Constituição Federal de 1988, a união estável passou a ser assemelhada ao casamento, mas estes não possuem os mesmos efeitos jurídicos.
Os efeitos jurídicos do casamento são consequências que alteram o estado civil, cria parentesco civil, emancipa o menor e declara constituída a família, âmbito pessoal o qual estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, como estabelece o artigo 1.511 do Código Civil Brasileiro e por último, âmbito patrimonial que são as relações econômicas entre pais e filhos e entre os cônjuges.
Contraído o casamento, os cônjuges passam a serem sujeitos de direitos e deveres. O artigo 1.566 do Código Civil trás um rol de deveres inerentes a ambos os cônjuges. Dentre esses deveres trazidos no mencionado artigo, o inciso II fala da “vida em comum, no domicilio conjugal”, significa dizer, obrigação dos cônjuges de viverem em comum, sob o mesmo teto. A vida em comum no domicílio conjugal é decorrência da união de corpo e de espírito. Na convivência sob o mesmo teto está a compreensão do débito conjugal, a satisfação recíproca das necessidades sexuais. Mas não pode o cônjuge obrigar o outro a cumprir esse dever sob pena de violação da liberdade individual (VENOSA, 2007).
Nesse assunto, a jurisprudência e doutrina vêm discutindo se é possível ou não a configuração do crime de estupro na relação conjugal, embora já tenham decisões jurisprudenciais decidindo a favor dessa possibilidade. Nesse contexto, Jesus (2010) entende que embora com o casamento surja o direito de manter relacionamento sexual, tal direito não autoriza o marido a forçar a mulher ao ato sexual, empregando contra ela a violência física ou moral que caracteriza o estupro. Com o casamento, a mulher não fica sujeita aos caprichos do marido, sendo obrigada a manter relações sexuais quando e onde este quiser.
Sabe-se que manter relações sexuais é dever recíproco de ambos os cônjuges. A mulher não pode se opor a isto, cuja maior finalidade é a perpetuação da espécie. Se o marido empregar violência quando se recusar a cópula carnal por mero capricho, não configura o crime de estupro (NORONHA, 2002).
Nesse sentido, uma corrente tradicional afirma que em virtude da figura do débito conjugal, seria impossível a prática do delito de estupro na relação conjugal, uma vez que seria dever do cônjuge manter relações sempre que solicitado pelo outro; Por outro lado, a corrente moderna, afirma que é perfeitamente possível o crime de estupro na relação conjugal, uma vez que o Código Penal Brasileiro caracteriza o crime quando houver constrangimento, violência ou grave ameaça contra a pessoa, não exigindo que essa pessoa seja solteira ou casada (SILVA, 2011).
ESTUPRO MARITAL
Denomina-se estupro marital a violência sexual empregada contra a mulher na união conjugal, praticada pelo próprio cônjuge, mediante violência física ou moral. Salientando que o crime de estupro de acordo com o artigo 213 do Código Penal pode ser praticado por qualquer pessoa contra qualquer pessoa, não fazendo distinção se virgem, solteira ou casada, basta que ocorrer constrangimento mediante violência ou grave ameaça à prática de conjunção carnal ou permitir que com ela se pratique outro ato libidinoso.
Desta forma, o estupro marital é compreendido como uma modalidade do crime previsto no artigo 213 do Código Penal. Ocorre diferenciação apenas quanto ao sujeito ativo do crime, que neste caso, será o próprio marido que pratica violência sexual em relação à sua esposa ou companheira.
Marido como autor. A questão da violência doméstica e familiar contra a mulher Lei, nº 11340, de 07 de agosto de 2006: Marido que, mediante o emprego de violência ou grave ameaça , constrange a mulher à pratica de relações sexuais comete crime de estupro” (CAPEZ, 2008).
O crime de estupro previsto no Código Penal, em seu artigo 213, após alteração pela lei 12.015/2009, admite que o marido possa ser sujeito ativo do crime, uma vez que o mencionado artigo faz menção da palavra alguém, sendo esta palavra de enorme abrangência, podendo ser qualquer pessoa. Entretanto, a doutrina não é unânime em afirmar que o marido pode figurar no polo ativo do crime de estupro contra a própria esposa ou companheira.
Hungria e Noronha apud Costa Diógenes (2004) entende que o marido não pode ser acusado do crime de estupro contra a própria esposa, uma vez que o Código Civil fala em dever de coabitação, que é entendido como o dever que os cônjuges, têm de manter relações sexuais, acrescentando ainda que, quando a mulher sem motivo se recusar a manter relações sexuais com o marido, este pode vir a obriga-la sem que incorra no crime de estupro.
Fragoso (1977) entende que não é admitida a possibilidade do crime de estupro praticado pelo marido contra a mulher.
Dalmato apud Mirabete (2010) entende ocorrer o crime de estupro sempre que houver constrangimento por parte do marido para a realização do ato sexual, constituindo tal fato abuso de direito, considerando ilícita e criminosa a coação para a prática do ato por ser tal conduta incompatível com a dignidade da mulher e a respeitabilidade do ato.
Não remanesce qualquer dúvida que o crime de estupro possa ser praticado contra o cônjuge. O crime praticado pelo cônjuge é mais severamente punido, visto que, diante da nova redação dada pela Lei 11.106/2005 ao artigo 226, inciso II, ocorrerá o aumento da pena de metade. Portanto, caso o cônjuge rejeite injustificadamente a prática do ato, caberá ao outro, a separação judicial, nos termos dos artigos 1.571 ss do Código Civil (MIRABETE, 2010).
“Modernamente, perdeu o sentido tal discussão, pois, embora alguns possam querer alegar o seu “crédito conjugal”, o marido somente poderá relacionar-se sexualmente com sua esposa com o consentimento dela” (GRECO, 2010).
Diante do exposto, jurisprudência a seguir do TJRS (2008) demonstra que é admitida a possibilidade de estupro marital.
EMENTA: APELAÇÃO CRIME. CRIMES CONTRA OS COSTUMES. RÉU DENUNCIADO POR ESTUPRO. ATOS QUE SE ENQUADRARIAM NO DELITO DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. MANUTENÇÃO DA ABSOLVIÇÃO. Constou da denúncia que o acusado, mediante o uso de violência e graves ameaças, constrangeu a vítima, sua esposa, à conjunção carnal contra a vontade dessa, causando-lhe lesões corporais. Os atos de violência praticados pelo réu e confirmados pela vítima dizem com a introdução de objetos em sua vagina, causando-lhe lesões internas. Relata a ofendida que seu marido passou a exigir que as relações fossem mantidas no escuro, não tendo ela condições de afirmar quais objetos eram por ele utilizados e que acabaram por feri-la. Número: 70021263470, Tipo do Processo: (Apelação Crime. Relator: Naele Ochoa Piazzeta. Tribunal: Tribunal de Justiça do RS. Órgão Julgador: Sétima Câmara Criminal. Comarca de Origem: Comarca de Santa Maria. Seção: CRIME. Decisão: Acórdão. Data de Julgamento: 04/04/2008. Publicação: Diário da Justiça d dia 26/05/2008).
Deve-se destacar a imensa dificuldade de produzir prova a esse respeito, pois o constrangimento se passa no recôndito do lar, normalmente sem testemunhas, sendo insuficiente a palavra da vítima contra a palavra da parte agressora (NUCCI, 2014).
O crime de estupro praticado na relação conjugal é um crime de difícil comprovação uma vez que este na maioria das vezes é cometido no silêncio dos lares. Essa violência nem sempre deixa marcas ou vestígios na vítima, vez que o crime pode ser praticado utilizando-se de violência psicológica, nesse caso, o autor coage a vítima ou a ameaça de morte ou ainda, utiliza-se de coação moral, sub-rogando injurias ou difamação.
Quando da prática do crime, restar vestígios, será indispensável a realização de exame de corpo delito, não podendo supri-lo a confissão do acusado, como trás o artigo 158 do Código de Processo Penal. Vale ressaltar que nesse caso, uma vez que possível a realização do exame de corpo delito, tentado provar a prática do crime do crime por outro meio de prova, essa prova será considerada ilegítima, podendo o réu ser absolvido por dúvida em relação a existência do crime.
Já em casos em que não restar vestígios da prática delituosa ou estes terem desaparecidos, o artigo 167 do Código de Processo Penal prevê que a prova testemunhal poderá suprir a falta do exame de corpo delito, aplicando esse dispositivo quando comprovada que seria possível a realização do exame de corpo delito, mas que a época da denunciação do crime, tornou-se impossível a realização desse meio de prova uma vez que ocorreu o desaparecimento dos vestígios.
Observa-se que a realização da prova pericial é crucial para a comprovação de crimes que deixam vestígios, partindo da premissa que o depoimento da vítima também é de suma importância, mas desde que essa oferece queixa na Delegacia de Policia Civil até ao final do processo a vítima passa por várias audiências, tendo esta que prestar várias declarações acerca do crime, podendo esta chegar a contradizer algumas declarações, sendo esta declaração suficiente para absolver o réu com base no principio in dúbio pro réu, em dúvida, favorecer o réu. A liberdade prevalece sobre a punição.
Outro fator que merece atenção é a dificuldade em julgar a veracidade das alegações da vítima, pois ainda nos tempos atuais tem-se enorme dificuldade de acreditar na palavra das vítimas do estupro na relação conjugal.
Dois pontos cruciais devem ser abordados a fim de apurar o ocorrido, sendo eles, o dolo específico do sujeito ativo e o dissenso da vítima. É inegável que na sociedade conjugal, a par do surgimento de uma nova situação jurídica – onde, atualmente, os direitos e deveres são exercidos igualmente por ambos os cônjuges (art. 226, § 5º, da CF) -, a comunhão de interesses e sentimentos, bem como a intimidade advinda da vida em comum e de uma prática sexual freqüente, natural e saudável, tornam particularmente difícil a identificação do elemento subjetivo caracterizador do delito de estupro (SOUZA, 2009).
A negativa da vítima em não praticar atos sexuais deve ser capaz de demonstrar sinceridade, que ela não consentiu o ato, deve-se ter resistência por parte da vítima anterior a prática do ato, ela dever se opor a prática sexual de forma que violência física e moral praticada pelo companheiro possam vencer.
Entretanto, a palavra da vítima é relevante para configurar o marido como sujeito ativo do crime de estupro. Apesar de muitas vezes esta mulher ser tratada com discriminação, até mesmo pelo próprio magistrado, inclusive quando este for do sexo masculino, este que na maioria das vezes passa a julgar a mulher pelo seu comportamento social. Esse “comportamento aceitável” foi um modelo de comportamento imposto pela sociedade, onde a mulher tem de ser recatada, fruto da cultura machista e do sistema patriarcal. Destaca-se que, mesmo com as mudanças das Leis no sentido de proteger a liberdade sexual da pessoa humana, vislumbra-se um comportamento ainda em prol do crime praticado contra os costumes, nos quais cabe à mulher o reconhecimento e respeito, pelo enquadramento na moldura de comportamentos e atitudes que a sociedade tradicionalmente lhe atribui (BARBOSA, 2014).
A importância de tal questionamento reside não apenas no fato de oferecer resposta à opção legislativa que por décadas manteve o crime de estupro em sede de crime contra os costumes, negando-lhe a condição de crime contra a pessoa, mas também, e principalmente, para melhor proceder à análise do discurso dos operadores do direito, sendo possível constatar a ocorrência de verdadeiro julgamento moral da vítima e do acusado, em detrimento do ato de violência sexual praticado (SILVA, 2010).
É relevante destacar que mesmo a mulher sendo casada, ela tem o direito a consentir ou não a prática do ato sexual na relação, uma vez que o sexo praticado sem o consentimento desta caracteriza o crime de estupro, sendo o próprio cônjuge autor desse delito. Contraído o casamento, os cônjuges passam a serem sujeitos de direitos e deveres, sendo o sexo um dever do casamento, mas este dever deve ser exercido estando presente a vontade de ambos os consortes, não transformando este dever em uma frustração ou prática de um crime dentro da relação conjugal.
DIFICULDADE EM DENUNCIAR O TIPO PENAL. POR QUÊ?
“Quem encontra uma esposa acha uma coisa boa; e alcança o favor do Senhor” (PROVÉRBIO, 18:22). Essa passagem da Bíblia demonstra a importância que a mulher esposa tem na vida conjugal, embora em sua totalidade não sejam vistas como uma coisa boa. Lamentavelmente muitas esposas são vistas e tratadas pelos maridos como objeto, seres passíveis das mais variáveis e cruéis formas de violência.
Dentre essas formas de violência, citamos o estupro, que sem dúvidas é a mais cruel manifestação de violência contra mulher, nesse ato a mulher é tratada como um objeto, inanimado.
Verifica-se em nossa sociedade que as mulheres têm certa dificuldade em denunciar o crime de estupro cometido pelos esposos, isso acaba acarretando certa impunidade ao cônjuge autor da agressão. Isso porque a mulher vítima desconhece que possa existir o crime de estupro na relação conjugal, entendendo a prática do ato sexual, um dever conjugal ainda que seja forçadamente e sem o consentimento.
Em outros casos, como o fato acontece na maioria das vezes no silêncio dos lares, as vítimas têm medo de não conseguir comprovar o crime. As vítimas também se sentem envergonhadas em denunciar o crime de estupro pela repercussão que poderia gerar diante da sociedade e ainda, muitas delas ainda dependem financeiramente dos maridos.
Felizmente, com o avanço e a disseminação da comunicação, a mulher se conscientizou de seu valor, e essa mentalidade vem se modificando de maneira gradual, embora haja, ainda, muitos casos em que o silêncio predomina em relação à violência sofrida por elas, em especial as que sofrem violência sexual dentro de seus próprios lares. Na condição de mãe e esposa, dependente financeiramente do marido, temendo o medo e repúdio provindo do seu meio social e de exposição da sua intimidade, ela se cala e estes ainda são fatores preponderantes e limitadores da sua atitude diante de uma agressão sexual (BARBOSA, 2014).
Casos de violência contra a mulher são freqüentes, mas as vítimas ao chegar às Delegacias apenas reportam ameaças, injúrias, difamações, agressões físicas sofridas pelo marido, mas raramente ver-se denuncia de violência sexual forçada praticada pelo marido. Será que o crime de estupro na relação conjugal acontece com toda essa raridade?
Em levantamento de casos na Delegacia de Policia Civil da cidade de Caetité, estado da Bahia, verifica-se que nos últimos três anos foram registrados inúmeros casos de violência de violência doméstica contra a mulher, mas em nenhum destes casos a vítima retrata violência sexual.
O Delegado de Polícia Civil Clécio de Magalhães Chaves (2015) entende que é perfeitamente possível a configuração do crime de estupro na relação conjugal e casos de estupro praticados por maridos contra as suas esposas existem, mas acrescenta, que durante toda a sua trajetória como Delegado de Polícia nunca teve acesso a nenhum caso retratando esse tipo de violência na relação conjugal.
A história do estupro mostra que essa violência sexual no casamento é frequente e muitas vezes a vítima fica silente por temer a sociedade, a segurança dos filhos e o próprio cônjuge ou companheiro. Uma vez que o estupro não viola apenas o corpo, mas também o olhar, a moral da vítima (SILVA, 2011).
A impunidade do cônjuge agressor existe, porque a vítima desconhece que o crime de estupro exista dentro da relação conjugal. A comprovação deste crime também é difícil, vez que a vítima fica em silêncio, pois acredita que deve ficar a disposição do cônjuge para satisfazer os seus desejos, inclusive os desejos de ter relações sexuais (SILVA, 2011).
Conforme ensina a Professora e psicóloga Priscila Barbosa Lins Drumond (2015), ainda hoje, a mulher enfrenta muitas barreiras para denunciar as diversas formas de violências vivenciadas na relação conjugais. Denunciar a violência física que tem tido muita visibilidade social ainda esbarra em aprisionamentos e julgamentos sociais. A denúncia do estupro cometido pelo próprio parceiro é ainda mais difícil! Evidenciar uma violação que permeia a estrutura histórica de ordem masculina (a dominação do ser feminino) como uma violação do direito à liberdade sexual da mulher é atual e ao mesmo tempo invisível.
Drumond (2015) ainda acrescenta que, em sua maioria, as mulheres antes de sofrer a violência física e sexual, vivenciaram na sua relação de afeto situações que marcaram negativamente a sua subjetividade. Podemos citar a violência moral, a violência simbólica e a violência psicológica que aos poucos vem se tornando visível (socialmente), mas infelizmente ainda não tem o mesmo destaque da violência física e da violência patrimonial. Ainda é comum a mulher vivenciar essa experiência sofrer com essa violação, mas não conseguir nomear esse sofrimento, em função do processo cultural de dominação masculina. Será que a mulher casada, que vivencia na sua conjugalidade relações sexuais forçadas sabe que está sendo estuprada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo 5º da constituição Federal em seu inciso I, estabelece que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, esse direito à igualdade foi uma conquista das mulheres que até então não eram protegidas pela Constituição. A partir daí várias leis promoveram alterações e revogações de Códigos para se adequassem a Constituição, a começar pelo Código Civil que passou a considerar o ato sexual um dever do casamento, mas não podendo o cônjuge em virtude desse dever forçar ou constranger a sua parceira à pratica do ato sexual.
A Lei 12.015/2009 e o Código Penal passaram a proteger o livre consentimento da mulher, bem como o direito que esta tem de dispor sobre o seu próprio corpo livremente. Mesmo com essa igualdade estabelecida na Constituição e a Lei ser clara em afirmar que é perfeitamente possível a prática do crime de estupro pelo companheiro ou marido, doutrinadores tradicionais com visão de uma sociedade machista onde a mulher é submissa ao homem, ainda se posicionam em sentido contrario.
Diante do exposto, o crime de estupro na relação conjugal configura-se sempre que existir o constrangimento mediante violência ou grave ameaça para a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso, e essa violência empregada na relação conjugal não caracteriza exercício de um direito, uma vez que o débito conjugal a que se refere o Código Civil, não permite a prática desse tipo de violência da relação conjugal.
Diante de tal assertiva, o marido poderá ser autor do crime de estupro contra a sua esposa, e quando ocorrer recusa injustificada à prática do ato pela mulher, o outro cônjuge deve pedir a anulação do casamento, vez que o sexo é um dever matrimonial, mas em nenhum momento o marido poderá constranger a sua esposa com emprego de violência ou grave ameaça à praticar com ele conjunção carnal ou outro ato libidinoso. Se o fizer, estará incorrendo no crime de estupro, figurando no pólo ativo do delito, ficando sujeito às penalidades previstas na legislação penal.
REFERÊNCIAS
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