Sumário: 1 Introdução. 2 Breves apontamentos acerca dos crimes contra a ordem tributária. 3 Extinção da punibilidade pelo pagamento. 3.1 “Evolução” legislativa. 3.2 Aplicabilidade a outros tipos penais: crime de descaminho e furto de energia elétrica e água. 4 Conclusão. Referência.
RESUMO: O Direto Penal, como a ultima ratio do direito, deve ser utilizado, unicamente, nas hipóteses das outras searas jurídicas mostrarem-se insuficientes à pacificação social. Entretanto, quando diante dos crimes penais tributários, é latente que a função do Estado não é punir o infrator, mas compeli-lo ao adimplemento de sua obrigação, motivo pelo qual, em diversas oportunidades, foram elaborados instrumentos legislativos com o fim de excluir a punibilidade pelo pagamento ou suspender o processo e o prazo prescricional penal pelo parcelamento. Nada obstante a elaboração dessas leis ter por escopo os crimes contra a ordem tributária previstos nos art. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, assim como os crimes previstos nos arts. 168-A (contra o patrimônio) e 337-A (contra a administração pública) do Código Penal, o judiciário brasileiro tem ampliado o seu alcance para que alcancem, até mesmo, crimes contra o patrimônio que não envolvam matéria tributária, como é o caso do furto de energia elétrica e água. No artigo em epígrafe utilizou-se do método bibliográfico para expor tanto a evolução legislativa quanto as hipóteses de aplicação analógica da citada excludente de punibilidade.
PALAVRAS-CHAVES: Crimes contra a ordem tributária. Extinção da punibilidade pelo pagamento. Analogia in bonam partem.
1 INTRODUÇÃO
A busca pelo bem comum é a finalidade essencial do Estado, motivo pelo qual se vê obrigado a satisfazer as necessidades públicas. No entanto, a realização de atos tendentes a alcançar essa finalidade gera um acentuado custo social, que é suprido mediante a arrecadação de receitas, principalmente as derivadas, consubstanciadas em tributos.
Assim, a arrecadação tributária funciona como um fator de justiça social, garantindo, ainda que de maneira parca, o bem-estar dos brasileiros, além de promover a inclusão social dos indivíduos marginalizados.
Nada obstante as louváveis funções da tributação, muitos contribuintes não adimplem as suas obrigações tributárias voluntariamente, obrigando a Fazenda Pública a lançar mão da ação execução fiscal.
Entretanto, o inadimplemento de um tributo pode gerar consequências que transcendem o âmbito de uma mera execução forçada, gerando efeitos sancionatórios, que podem se limitar à matéria administrativa, como multas ou impossibilidade de licitar com a administração pública, ou, quando incluir elementos defraudatórios, tendo em vista o caráter fragmentário do direito penal, podem gerar efeitos criminais.
Importante explicitar, então, que não é qualquer inadimplemento tributário que acarretará consequências penais, mas aquele decorrente de fraude fiscal, ou seja, quando o agente se utiliza de manobras fraudulentas para suprimir ou reduzir tributo, como pode ser observado nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, que “define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo [...]”.
Apesar da aparente função penalizadora do diploma legal, uma análise do ordenamento jurídico evidencia a sua natureza de sanção política, porquanto não se destina à punição do infrator, mas à restituição do valor sonegado, razão pela qual, inclusive, o pagamento do tributo é capaz de extinguir a punibilidade e seu parcelamento pode suspender o processo e o prazo prescricional penal.
A despeito dos diplomas legais disciplinadores da extinção pelo pagamento referirem-se, em regra, aos crimes contra a ordem tributária, tem sido corriqueira a aplicação analógica para alcançar crimes outros, seja contra a Administração Pública, seja contra o patrimônio.
O artigo em epígrafe analisará as leis que regem a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, dando ênfase à interpretação dada pelos tribunais brasileiros acerca da aplicação e alcance dessa regra de exclusão.
2 BREVES APONTAMENTOS ACERCA DOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA
Os crimes contra a ordem tributária se dividem em duas classes, a primeira consistente naqueles cometidos pelos particulares (arts. 1º, I a V, e 2º, I a V da Lei nº 8.137/90) e a segunda consubstanciada nos crimes praticados por funcionário público (art. 3º, I a III da Lei nº 8.137/90), vejamos:
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.
Trata-se de um tipo essencialmente doloso, cujos núcleos são expressos pelos verbos suprimir (deixar de pagar) ou reduzir (pagar em quantia menor) tributo, contribuição social ou qualquer acessório mediante as condutas descritas nos incisos.
O dolo é específico, exigindo o fim especial de suprimir ou reduzir tributos, como explicita Guilherme de Souza Nucci, in verbis:
17. Elemento subjetivo: para todas as figuras do art. 1.º, exige-se dolo. Vamos além. É fundamental verificar a existência do elemento subjetivo do tipo específico (dolo específico), consistente na efetiva vontade de fraudar o fisco, deixando permanentemente de recolher o tributo ou manter a sua carga tributária aquém da legalmente exigida (grifo do autor).[1]
O crime é material, sendo indispensável a suspensão ou redução do tributo, pois é necessário o prejuízo ao erário, não se contentando com a prática de condutas meramente defraudatórias.[2] A tentativa é admissível, exceto nas condutas omissivas.
Destaque-se que não é possível dar início à ação penal antes do término de procedimento administrativo de formação da Certidão de Dívida Ativa, pois, segundo o Supremo Tribunal Federal, “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo” (súmula vinculante 24).
Superado o exame do art. 1º, passa-se à análise do art. 2º da lei sob exame:
Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;
II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal;
IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;
V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Como visto, o art. 2º também disciplina os crimes cometidos por particulares contra a ordem tributária, contudo a lei deixa de exigir a supressão ou redução dos tributos, limitando-se a enumerar condutas que descreve como crime, razão pela qual os delitos previstos nesse artigo são formais, consumando-se com a mera realização do comportamento descrito, independentemente da ocorrência do resultado naturalístico.[3]
Aqui também se exige o dolo específico, consistente no fim de fraudar o fisco, deixando de recolher o tributo ou recolhendo-o a menor, ou seja, é indispensável a real finalidade de burlar definitivamente a arrecadação do Estado.[4]
Como a pena máxima não ultrapassa 2 (dois) anos, o crime configura-se como de menor potencial ofensivo, sujeitando-se às disposições da Lei nº 9.099/95, como a transação penal e a suspensão condicional do processo.
O artigo 3º, como exposto em momento oportuno, tipifica os crimes praticados por funcionário público contra a ordem tributária. O conceito de funcionário público para fins penais encontra-se cinzelado no art. 327 do Código Penal. Observemos:
Art. 3° Constitui crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal (Título XI, Capítulo I):
I - extraviar livro oficial, processo fiscal ou qualquer documento, de que tenha a guarda em razão da função; sonegá-lo, ou inutilizá-lo, total ou parcialmente, acarretando pagamento indevido ou inexato de tributo ou contribuição social; II - exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela, vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou cobrar tributo ou contribuição social, ou cobrá-los parcialmente. Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
III - patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração fazendária, valendo-se da qualidade de funcionário público. Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Antes do advento da Lei nº 8.137/90 as condutas arroladas nos incisos do art. 3º eram enquadradas nos tipos do Código Penal, como: extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento (CP, art. 314), a concussão (CP, art. 316), a corrupção passiva (CP, art. 317) e a advocacia administrativa (CP, art. 321).
Após essa brevíssima análise dos tipos penais tributários previstos na Lei nº 8.137/90, chega-se ao cerne do presente trabalho, que é a exclusão da punibilidade pelo pagamento e a aplicação analógica a outros tipos penais.
3 EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELO PAGAMENTO
3.1 “Evolução” Legislativa
É cediço que em matéria de crime tributário o Estado não possui a intenção de punir o infrator, mas de receber o valor do tributo sonegado, motivo pelo qual diversas leis foram elaboradas com o fim de disciplinar a extinção da punibilidade pelo pagamento, bem como a suspensão do processo pelo parcelamento.
Nesse toar, já em 1995, com a Lei nº 9.249, surge a possibilidade de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo e seus acessórios, desde que efetuado antes do recebimento da denúncia (art. 34). Muito embora a lei trouxesse matéria penal não incriminadora com o fim de ampliar a receita estatal, não tratou, em qualquer dispositivo, da possibilidade de parcelamento do débito com implicações na apuração de crimes de sonegação fiscal.
Cinco anos mais tarde, em 2000, a Lei nº 9.964, que instituiu o Programa de Recuperação Fiscal (REFIS), repetiu a causa extintiva da punibilidade prevista no art. 34 da Lei nº 9.249/95 e incluiu a possibilidade do parcelamento do débito tributário como causa de suspensão do processo e da prescrição penal, mas desde que concedido antes do recebimento da denúncia criminal.
Destaque-se que a suspensão estava limitada aos débitos incluídos no Programa, excluindo-se os débitos não abrangidos pelo REFIS.
Por seu turno a Lei nº 10.684/2003, que instituiu o parcelamento especial de débitos junto à Procuradoria da Fazenda Nacional, Secretaria da Receita Federal e Instituto Nacional do Seguro Social (PAES), disciplinou, em seu art. 9º, os efeitos do parcelamento na esfera criminal:
Art. 9º É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.
§ 1º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.
§ 2º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.
Analisando o dispositivo acima transcrito é possível perceber que a denúncia deixou de ser o marco temporal para o parcelamento efetuado por pessoa jurídica, porquanto o diploma legislativo preferiu silenciar acerca do momento para a adesão. Assim, formalizado o parcelamento, independentemente do momento processual, suspendia-se a pretensão punitiva do Estado.
Igualmente, o pagamento efetuado pela pessoa jurídica relacionada com o agente, a qualquer tempo, desde que devidamente acompanhado dos seus acessórios, passou a extinguir a punibilidade, visto o teor do § 2º, interpretado juntamente com o princípio da igualdade, pois o agente que, a qualquer tempo, parcelasse o débito tributária veria suspensa a punibilidade e, quando do adimplemento integral, extinta a punibilidade, contudo, aquele que optasse por pagá-lo integralmente não contaria com a benesse legal.
Incompreensível essa exegese, razão pela qual a interpretação mais abrangente foi e é aplicada pelo Supremo Tribunal Federal:
Habeas corpus. Crime contra a ordem tributária. Aplicação do princípio da insignificância. Tese não analisada pelo Superior Tribunal de Justiça. Impossibilidade de conhecimento pela Suprema Corte. Inadmissível supressão de instância. Precedentes. Não conhecimento do writ. Requerimento incidental de extinção da punibilidade do paciente pelo pagamento integral do débito tributário constituído. Possibilidade. Precedente. Ordem concedida de ofício. 1. Não tendo sido analisada pelo Superior Tribunal de Justiça defesa fundada no princípio da insignificância, é inviável a análise originária desse pedido pela Suprema Corte, sob pena de supressão de instância, em afronta às normas constitucionais de competência. 2. Não se conhece do habeas corpus. 3. O pagamento integral de débito devidamente comprovado nos autos - empreendido pelo paciente em momento anterior ao trânsito em julgado da condenação que lhe foi imposta é causa de extinção de sua punibilidade, conforme opção político-criminal do legislador pátrio. Precedente. 4. Entendimento pessoal externado por ocasião do julgamento, em 9/5/13, da AP nº 516/DF-ED pelo Tribunal Pleno, no sentido de que a Lei nº 12.382/11, que regrou a extinção da punibilidade dos crimes tributários nas situações de parcelamento do débito tributário, não afetou o disposto no § 2º do art. 9º da Lei 10.684/03, o qual prevê a extinção da punibilidade em razão do pagamento do débito, a qualquer tempo. 5. Ordem concedida de ofício para declarar extinta a punibilidade do paciente. (STF - HC: 116828 SP, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 13/08/2013, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-206 DIVULG 16-10-2013 PUBLIC 17-10-2013, grifo nosso)
Destarte, o pagamento do tributo, ainda que em momento posterior ao recebimento da denúncia, extingue a punibilidade, mas com a ressalva de que deve ser efetuado antes do trânsito em julgado da condenação. Ressalte-se que quanto ao pagamento esse é o entendimento vigente, ou seja, está mantida essa sistemática.
Contudo, inovação legislativa trazida pela Lei nº 12.382/11 voltou a dispor que o parcelamento para suspender o processo e a prescrição punitiva deveria ser celebrado até o recebimento da denúncia.
Então, o parcelamento da dívida para efeitos penais, que poderia ser efetuado a qualquer tempo, passou a ter como prazo final, a partir de 28 de fevereiro de 2011, o recebimento da denúncia. Inexiste restrição temporal parecida para o pagamento realizado no montante integral e fora de qualquer acordo com o fisco, razão pela qual poderá ser efetuado a qualquer tempo, desde que antes do trânsito em julgado da condenação.
Em respeito à aplicação da lei no tempo, como a extinção da punibilidade pelo adimplemento integral das parcelas possui natureza nitidamente penal, não pode retroagir para prejudicar o réu, o que faz com que a novel legislação não impossibilite a extinção da punibilidade pelo adimplemento das parcelas referentes a fatos ocorridos em momento anterior à 28 de fevereiro de 2011, ainda que o acordo celebrado seja posterior ao recebimento da denúncia.
Em contrapartida, a suspensão do processo é matéria afeta à sistemática processual, o que acarreta a sua aplicação imediata, ou seja, ainda que o crime tenha ocorrido em momento anterior à 28 de fevereiro de 2011, a adesão ao parcelamento após o recebimento da denúncia não terá a aptidão para suspender o processo, mesmo que o adimplemento de todas as parcelas extinga a punibilidade.
3.2 Aplicabilidade a Outros Tipos Penais: Crime de descaminho e furto de energia elétrica e água
Em um primeiro momento explicita-se que todo o acima exposto, por expressa determinação legal, aplica-se aos crimes de apropriação indébita previdenciária (CP, art. 168-A) e sonegação de contribuição previdenciária (CP, art. 337-A), como, aliás, entende o Supremo Tribunal Federal:
QUESTÃO DE ORDEM NA AÇÃO PENAL. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. SUSPENSÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA E EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. PARCELAMENTO E PAGAMENTO DO DÉBITO ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA: EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. A jurisprudência deste Supremo Tribunal é firme no sentido da possibilidade de suspensão da pretensão punitiva e de extinção da punibilidade nos crimes de apropriação indébita previdenciária, admitindo a primeira se a inclusão do débito tributário em programa de parcelamento ocorrer em momento anterior ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória e a segunda quando o débito previdenciário for incluído - e pago - no programa de parcelamento ordinário de débitos tributários. Precedentes. 2. Questão de ordem resolvida no sentido de declarar extinta a punibilidade do réu em relação ao crime de apropriação indébita previdenciária, pela comprovação da quitação dos débitos discutidos no presente processo-crime, nos termos das Leis ns. 10.684/03 e 11.941/09. (STF - AP: 613 TO, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 15/05/2014, Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-107 DIVULG 03-06-2014 PUBLIC 04-06-2014)
Destaque-se que essas contribuições previdenciárias, também chamadas de contribuições para o custeio da seguridade social, possuem natureza tributária, o que não justificaria um traimento diversificado.
Entretanto, há crimes outros cuja aplicação é controversa, a exemplo do crime de descaminho, previsto no art. 334 do Código Penal, com redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014.
Textualmente a hipóteses de extinção da punibilidade aqui tratadas não alcançaria esse tipo penal, mas, utilizando-se da analogia in bonam partem, os nossos tribunais a tem aplicado, visto a nítida natureza tributária desse delito, observemos:
Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. DESCAMINHO (ART. 334, § 1º, ALÍNEAS “C” E “D”, DO CÓDIGO PENAL). PAGAMENTO DO TRIBUTO. CAUSA EXTINTIVA DA PUNIBILIDADE. ABRANGÊNCIA PELA LEI Nº 9.249/95. NORMA PENAL FAVORÁVEL AO RÉU. APLICAÇÃO RETROATIVA. CRIME DE NATUREZA TRIBUTÁRIA. 1. Os tipos de descaminho previstos no art. 334, § 1º, alíneas “c” e “d”, do Código Penal têm redação definida pela Lei nº 4.729/65. 2. A revogação do art. 2º da Lei nº 4.729/65 pela Lei nº 8.383/91 é irrelevante para o deslinde da controvérsia, porquanto, na parte em que definidas as figuras delitivas do art. 334, § 1º, do Código Penal, a Lei nº 4.729/65 continua em pleno vigor. 3. Deveras, a Lei nº 9.249/95, ao dispor que o pagamento dos tributos antes do recebimento da denúncia extingue a punibilidade dos crimes previstos na Lei nº 4.729/65, acabou por abranger os tipos penais descritos no art. 334, § 1º, do Código Penal, dentre eles aquelas figuras imputadas ao paciente - alíneas “c” e “d” do § 1º. 4. A Lei nº 9.249/95 se aplica aos crimes descritos na Lei nº 4.729/65 e, a fortiori, ao descaminho previsto no art. 334, § 1º, alíneas “c” e “d”, do Código Penal, figura típica cuja redação é definida, justamente, pela Lei nº 4.729/65. 5. Com efeito, in casu, quando do pagamento efetuado a causa de extinção da punibilidade prevista no art. 2º da Lei nº 4.729/65 não estava em vigor, por ter sido revogada pela Lei nº 6.910/80, sendo certo que, com o advento da Lei nº 9.249/95, a hipótese extintiva da punibilidade foi novamente positivada. 6. A norma penal mais favorável aplica-se retroativamente, na forma do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal. 7. O crime de descaminho, mercê de tutelar o erário público e a atividade arrecadatória do Estado, tem nítida natureza tributária. 8. O caso sub judice enseja a mera aplicação da legislação em vigor e das regras de direito intertemporal, por isso que dispensável incursionar na seara da analogia in bonam partem. 9. Ordem CONCEDIDA. (STF - HC: 85942 SP, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 24/05/2011, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-146 DIVULG 29-07-2011 PUBLIC 01-08-2011 EMENT VOL-02556-01 PP-00078)
Igual sorte não alcança o crime de contrabando, porquanto, diferentemente do descaminho, no qual se ilude no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria, esse delito decorre da importação ou exportação de mercadoria proibida, ou seja, não se discute mais tributação, mas a entrada no país de produtos cujo ingresso é proibido.
Situação interessante consiste na aplicação da causa extintiva da punibilidade ao crime de furto de energia elétrica e água, ainda que a contraprestação pelo serviço prestado seja paga mediante tarifa ou preço público, sob pena de violação ao princípio da isonomia, consoante vem se manifestando o Superior Tribunal de Justiça:
HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO ORIGINÁRIA. SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO ORDINÁRIO. IMPOSSIBILIDADE. RESPEITO AO SISTEMA RECURSAL PREVISTO NA CARTA MAGNA. NÃO CONHECIMENTO. 1. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, buscando dar efetividade às normas previstas na Constituição Federal e na Lei 8.038/1990, passou a não mais admitir o manejo do habeas corpus originário em substituição ao recurso ordinário cabível, entendimento que deve ser adotado por este Superior Tribunal de Justiça, a fim de que seja restabelecida a organicidade da prestação jurisdicional que envolve a tutela do direito de locomoção. 2. Tratando-se de writ impetrado antes da alteração do entendimento jurisprudencial, o alegado constrangimento ilegal será enfrentado para que se analise a possibilidade de eventual concessão de habeas corpus de ofício. FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA (ARTIGO 155, § 3º, DO CÓDIGO PENAL). ACORDO CELEBRADO COM A CONCESSIONÁRIA. PARCELAMENTO DO VALOR CORRESPONDENTE À ENERGIA SUBTRAÍDA. ADIMPLEMENTO. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO ANALÓGICA DAS LEIS 9.249/1995 E 10.684/2003. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. OCORRÊNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. 1. Embora o valor estipulado como contraprestação de serviços públicos essenciais - como a energia elétrica e a água - não seja tributo, possui ele a natureza jurídica de preço público, já que cobrado por concessionárias de serviços públicos, que se assemelham aos próprios entes públicos concedentes. 2. Se o pagamento do tributo antes do oferecimento da denúncia enseja a extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária, o mesmo entendimento deve ser adotado quando há o pagamento do preço público referente à energia elétrica ou a água subtraídas, sob pena de violação ao princípio da isonomia. 3. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para determinar o trancamento da Ação Penal n. 201221290048. (STJ - HC: 252802 SE 2012/0182157-9, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 03/10/2013, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/10/2013, grifo nosso).
Destarte, apesar da inexistência de expressa disposição legal, a jurisprudência vem ampliando, por intermédio da analogia in bonam partem, o âmbito de incidência do pagamento como excludente de punibilidade para os crimes contra a ordem tributária, fazendo com que alcancem crimes contra a administração pública e, até mesmo, crimes contra o patrimônio, a exemplo do descaminho e do furto de energia elétrica e água, respectivamente.
4 CONCLUSÃO
Não se discute a importância das receitas derivadas para a realização das políticas públicas ou mesmo para a manutenção do Estado enquanto um todo organizado para o alcance de fins comuns. Apesar da natureza essencial dos créditos tributários, muitos contribuintes agem de forma a evadir-se à obrigação tributária, muitas vezes por meios defraudatários, acarretando a utilização da ultima ratio do ordenamento jurídico, que é o direito penal.
Inclusive, devido à natureza fragmentária dessa seara do direito, não é o simples inadimplemento que acarreta a sanção criminal, mas aquele decorrente de fraudes.
Entretanto, ainda nessas situações, o interesse do Fazenda Pública vem se mostrando estritamente arrecadatório, porquanto em diversas oportunidade criou-se benesses legais para evitar condenações criminais, como a extinção da punibilidade pelo pagamento e a suspensão do processo e prescrição punitiva pelo parcelamento do tributo.
Apesar da excludente ter sido elaborada pelo legislador com o fim de alcançar somente os tipos previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, assim como os arts. 168-A e 337-A do Código Penal, a evolução jurisprudencial a tem ampliado para alcançar outros tipos penais, como o crime de descaminho e o crime de furto de energia elétrica e água, tendo em vista o princípio da isonomia.
Logo, analisando as alterações trazidas pela Lei nº 12.382/2011 quanto ao parcelamento, bem como a manutenção do regramento anterior quanto ao pagamento, conclui-se que o pagamento efetuado a qualquer tempo, antes do trânsito em julgado, seja nos crimes contra a ordem tributária, seja naqueles alcançados pela analogia in bonam partem, exclui a punibilidade, enquanto que o parcelamento pode dar ensejo à suspensão e, com o adimplemento integral, acarretar a mesma exclusão, desde que o acordo seja celebrado antes do oferecimento da denúncia.
REFERÊNCIA
AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
Capez, Fernando. Curso de direito penal: legislação penal especial. V. 4. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, epub.
Lana, Cícero Marcos Lima. Lei 12.382 alterou extinção e suspensão de punibilidade. Consultor Jurídico. Publicado em 25 de janeiro de 2013. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jan-25/cicero-lana-lei-12382-alterou-extincao-punibilidade-crime-tributario#top>. Acesso em: 20 abr. 2015.
Nucci, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, epub.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - HC: 252802 SE 2012/0182157-9, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 03/10/2013, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/10/2013
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - AP: 613 TO, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 15/05/2014, Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-107 DIVULG 03-06-2014 PUBLIC 04-06-2014
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - HC: 116828 SP, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 13/08/2013, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-206 DIVULG 16-10-2013 PUBLIC 17-10-2013
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - HC: 85942 SP, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 24/05/2011, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-146 DIVULG 29-07-2011 PUBLIC 01-08-2011 EMENT VOL-02556-01 PP-00078
[1] Nucci, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, epub.
[2] Capez, Fernando. Curso de direito penal: legislação penal especial. V. 4. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, epub.
[3] Capez, Fernando, idem.
[4] Nucci, Guilherme de Souza, idem.
Advogado e pós-graduando em Direito Tributário pela Universidade Tiradentes (UNIT).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Alysson José de Andrade. Extinção da punibilidade pelo pagamento nos crimes contra a ordem tributária: aplicação analógica a outros tipos penais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 maio 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44178/extincao-da-punibilidade-pelo-pagamento-nos-crimes-contra-a-ordem-tributaria-aplicacao-analogica-a-outros-tipos-penais. Acesso em: 22 nov 2024.
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