RESUMO: A temática da representatividade adequada na ação civil pública (ACP) configura verdadeira celeuma doutrinária no que tange à catalogação de sua natureza jurídica. É inconteste que o instituto em tela representa uma condição da ação coletiva, resta, todavia, a necessidade de especificá-lo dentro deste gênero. Na atualidade, a processualística brasileira biparte-se entendendo, de um lado, que a representatividade adequada consiste numa interface da legitimidade ad causam[1], doutro lado, há os que argumentam uma maior proximidade do instituto com o interesse agir[2]. Embora a primeira corrente se mostre majoritária no plano quantitativo, se mostra necessário analisar se majoritariedade também se faz no plano qualitativo.
Palavras–chave: Ação civil pública. Legitimidade no processo coletivo. Representatividade adequada.
Sumário: 1. Considerações Preliminares: 1.1. Legitimidade; 1.2. Interesse de agir – 2. Representatividade adequada; 2.1. Controle legislativo ou in abstrato da representatividade adequada; 2.2. Controle judicial ou in concreto da representatividade adequada – 3. Conclusão – Referencial Bibliográfico.
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
De início, relava notar a necessidade de se abstrair da lógica do processo individual e enxergar o processo coletivo à luz de sua base principiológica própria, como bem aponta DANIEL MOTA GUTIERREZ[3]:
“Essa recorrente insistência de considerável parcela dos juízes (e demais operadores do direito) em interpretar dispositivos e institutos repousantes na legislação relativa a direitos metaindividuais exclusivamente à luz da caracterização/concepção desses institutos segundo a sistemática – individualista, registre in passant – do CPC, olvidando-se da necessidade de levar em consideração, sobretudo, os princípios relativos aos direitos metaindividuais, revela uma evidente deficiência técnica na aplicação da legislação metaindividual”.
1.1. Legitimidade
A legitimidade é, antes de tudo, qualidade jurídica da parte no processo. Ato contínuo, de acordo com GIUSEPPE CHIOVENDA “parte é aquele que demanda em seu próprio nome (ou em cujo nome é demandado) a atuação duma vontade da lei, e aquele em face de quem essa situação é demandada[4]”.
No direito processual civil individual, o CPC traz, como regra geral, que será legitimado o autor do direito material demandado, isto é, em via ordinária, aquele que pleiteia direito próprio em nome próprio. Contudo, admite-se, de forma extraordinária, demandar em nome próprio direito alheio (art. 6º).
É ínsita à origem do processo coletivo a legitimação extraordinária. Trata-se de uma substituição processual atípica, onde determinada coletividade é representada por um ou alguns. Muito embora a doutrina ainda se digladie quanto a melhor teoria para o estudo da legitimidade no processo coletivo (ordinária[5] ou extraordinária[6]), entendemos que a razão está com a teoria da legitimação extraordinária em decorrência, como dito, da própria origem do processo coletivo. No entanto, vale ressaltar que, dentre os legitimados em lei para propor ACP[7], RODOLFO MANCUSO menciona “ser a legitimidade das associações ordinária, quando defendem bem difuso ou coletivo cuja proteção está prevista em seus fins institucionais, defendendo, assim, interesse próprio[8]”.
Logo, a legitimação em processo coletivo se opera ope legis e aproxima-se muito mais à figura do substituto processual do que a da própria coletividade substituída.
1.2. Interesse de agir
O interesse de agir é a condição da ação constituída pelo binômio utilidade-necessidade. Explica LIEBMAN que o “interesse de agir é representado pela relação entre a situação antijurídica denunciada e o provimento que se pede para debelá-la mediante a aplicação do direito; deve essa relação consistir na utilidade do provimento, como meio para proporcionar ao interesse lesado a proteção concedida pelo direito[9]”. Por sua vez, caracteriza-se como necessário o provimento jurisdicional entendido como última forma de solução do conflito.
É por essa razão que “a constatação do interesse de agir faz-se, sempre, in concreto, à luz da situação narrada no instrumento da demanda. Não há como indagar, em abstrato, se há ou não interesse de agir, pois ele sempre estará relacionado a uma determinada demanda judicial[10]”.
Em sede de processo coletivo, a utilidade surge da aptidão da tutela proporcionar a máxima satisfação dos direitos e interesses metaindividuais. Por seguinte, a necessidade fundamenta-se na premissa de que o processo coletivo é a última maneira de solucionar o litígio.
1.3. Representatividade adequada
A representatividade adequada é um dos pressupostos da class action norte-americana[11]. Releva notar que o vocábulo “representatividade” é empregado em sentido diverso do usual, aqui, ele denota o porta-voz ou interprete[12] do grupo ou classe de indivíduos titulares do direito metaindividual em juízo. No sistema de common law norte-americano, a adequação de tal representatividade é aferida no caso concreto, daí falar-se em controle judicial da representatividade adequada.
Em contraponto, o sistema brasileiro, o qual é de civil law, guardou o juízo de adequação da representatividade para o legislador, falando-se, assim, de controle legislativo ou in abstrato da representatividade adequada. Talvez, por isso, exista doutrina alegando que “no sistema brasileiro, ao contrário, não se cogita de representatividade adequada[13]”, o que, permissa vênia, não nos parece correto. Existe, sim, representatividade adequada no sistema brasileiro, mas nos moldes do sistema de civil law, isto é, o juízo de adequabilidade fica a cargo da lei.
Nos últimos anos, contudo, o desenvolvimento do neoconstitucionalismo pátrio e, por conseguinte, o neoprocessualismo trouxe uma série de mudanças no panorama jurídico, dentre elas, a flexibilização do sistema de civil law em virtude do acolhimento de certas premissas do common law[14].
Com isso, partimos da premissa da coexistência de dois modelos de controle da representatividade adequada.
1.3.1. Controle legislativo ou “in abstrato” da representatividade adequada
Como dito anteriormente, o juízo de adequabilidade da representação é realizado pelo legislador e sua aferição realiza-se em abstrato. É o que ocorre, a exemplo, no art. 5ª da Lei de Ação Civil Pública ao dispor do rol dos legitimados a propor ACP.
Neste caso, a representatividade adequada tem inequívoca relação com o instituto da legitimidade, o controle de ambos é realizado ope legis seguindo-se o sistema de aplicação das regras jurídicas, isto é, a subsunção ou a técnica do All or Nothing como bem elucidou ROBERT ALEXY em sua Teoria dos Direitos Fudamentais. Ousamos a dizer que a representatividade adequada, nesta perspectiva legal, consiste na própria legitimidade do processo coletivo.
A possível declaração de ilegitimidade, dessa forma, poderia ocorrer somente sob três formas[15]: a) não ocorrência da subsunção, isto é, o sujeito não se encontra no rol de legitimados; b) invalidade da regra jurídica mediante revogação por outra lei, ou c) declaração de inconstitucionalidade da regra.
Ainda vale dizer que há, na doutrina, quem defenda que o requisito da pertinência temática para a propositura de ACP pelas associações configura atividade ponderativa, na qual o magistrado exerce juízo de valor comparativo entre o pedido realizado e as finalidades da instituição. Ousamos discordar de tal entendimento por uma única razão: nessas hipóteses, a pertinência temática fica adstrita ao exame, pelo magistrado, das finalidades prescritas no Estatuto ou no Contrato Social da instituição, o que se revela ser, ao nosso entendimento, mero juízo de subsunção.
1.3.2. Controle judicial da representatividade adequada e sua inadequação sintática
Como dito no tópico anterior, a legitimidade só é aferida em abstrato. Todavia, há respeitável seguimento doutrinário entendendo que a legitimação em sede de ACP ocorre em duas fases: uma abstrata e outra concreta[16]. Permissa vênia, discordamos desta tese. Acreditamos que o controle judicial ou in concreto da representatividade adequada se aproxima muito mais de um exame do interesse de agir do que o da legitimidade.
Para ilustrar o que foi dito, RUGGERI RÉ traz um interessante caso hipotético:
“Imagine que o Poder Público pretenda construir um aeroporto internacional em determinado bairro. Tal empreendimento causará muitos transtornos aos moradores que residem em torno do futuro terminal. Porém, sob outra óptica, o aeroporto levará muito progresso, desenvolvimento e empregos aos moradores do bairro como um todo. A Associação de Moradores do local possui, como fim institucional, a proteção do bem-estar daquela comunidade e, por isso, tem legitimidade para interpor uma ação coletiva para embargar a obra, porque inquestionável a presença da pertinência temática[17]”.
No caso em análise, realiza-se, primeiramente, o controle in abstrato da representatividade adequada, estando preenchidos os requisitos do art. 5º, V, alíneas “a” e “b”, ou seja, constituição com período superior a 1 (um) ano e a pertinência temática da associação com o objeto da ACP, diz-se legítima a parte, não cabendo nenhum juízo ponderativo sobre tal.
“Porém, em uma análise concreta, “a posteriori”, teria esta associação interesse processual em impugnar o projeto, tendo em vista os benefícios que a obra trará aos moradores em geral? Portanto, o magistrado terá que verificar, segundo um juízo de ponderação de valores, o que é mais útil aos moradores, o embargo da obra por meio da tutela coletiva ou a efetiva instalação do aeroporto, com todo o progresso que ele acarretará. Este juízo é de interesse processual e não de legitimidade de agir ou pertinência temática[18]”.
Infelizmente, a jurisprudência e a doutrina têm empregado a rubrica “representatividade adequada” em referência tanto à legitimidade quanto ao interesse de agir, gerando verdadeira inadequação sintática. “As teorias jurídicas passam a padecer de inadequação sintática, na medida em que utilizam termos iguais para explicar fenômenos desiguais, instalando, na ciência do direito, o germe da ambiguidade[19]”.
2. CONCLUSÃO
A explanação dos conceitos e entendimentos trazidos neste trabalho nos permitiu a sensibilidade de enxergar uma distinção entre dois institutos que, por receberem a mesma denominação, são tratadas indistintamente pela maioria dos autores que abordam o tema. Além disso, foi possível analisar que a problemática foi gerada por uma questão de inadequação sintática do nomem júris “representatividade adequada”.
Acreditamos que a celeuma tenha se originado no seguinte trâmite. Importou-se o instituto jurídico da representatividade adequada originado do common law promovendo-se a sua adaptação ao civil law pátrio, mas não se realizou uma modificação de sua nomeclatura. Este fato levou uma parcela doutrinária a entender, erroneamente, que não existe representatividade adequada no Brasil, enquanto, doutro lado, surgiu a equivocada tese de um controle judicial da legitimidade nos moldes da class action norte-americana.
Portanto, concluímos que o instituto jurídico da representatividade adequada, em seu controle ope legis, relaciona-se com a própria legitimidade enquanto condição da ação. Porém, ocorrendo o controle ope iudicius, não há mais de se falar em legitimidade, e sim, de interesse processual.
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
ÁVILA, H. B. (2009). Repensando o "princípio da supremacia do interesse público sobre o particular". Salvador: Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE).
CHIVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, volume 2, 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1969.
DIDIER JR., Fred. Curso de Direito Processual Civil v. 1, 12ªed. e v. 4, 4ª ed. Salvador: Juspodivm, 2010
GUTIÉRREZ, Daniel Mota In: GOMES JÚNIOR, L. M. (2007). Curso de Direito Processual Coletivo. São Paulo: SRS Editora.
MANCUSO, Rodolfo. Ação civil pública. São Paulo: RT, 2002.
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 3ª ed., São Paulo: RT, 2008.
NERY Jr., Nelson e NERY, Rosa. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 8ª ed. São Paulo: RT, 2004.
RÉ, Aluísio Iunes Monti Ruggeri. Pertinência temática nas ações coletivas. 2011, texto encontrado em http://migre.me/9W9l2.
SCARPINELLA BUENO, Cassio. As “class actions” norte-americanas e as ações coletivas brasileiras: pontos para uma reflexão conjunta, in: Revista de Processo, n. 82. São Paulo: 1996.
NOTAS:
[1] Compartilham deste entendimento Arruda Alvim; Fred Didier Jr.; Hugo Nigro Mazzilli e outros.
[2] São signatários desta tese Luiz Manoel Gomes Jr.; Aluísio Iunes Monti Ruggeri Ré e outros.
[3] GUTIÉRREZ, Daniel Mota. In: GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel. Curso de Direito Processual Coletivo. 2. Ed., SRS Editora, 2007, p. 84.
[4] CHIVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, volume 2, 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1969, p.234.
[5] Teoria defendida por Kazuo Watanabe.
[6] São partidários da tese Pedro Lenza; Pedro da Silva Dinamarco; Diogo Maia.
[7] São legitimados (art. 7º): I – o Ministério Público; II – a Defensoria Pública; III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V - a associação constituída a mais de 1 (um ano) e tenha pertinência temática.
[8] MANCUSO, Rodolfo. Ação civil pública. São Paulo: RT, 2002, p. 89.
[9] LIEBMAN, Enrico Túlio. Manual de Direito Processual Civil, in: MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 3ª ed., São Paulo: RT, 2008, p.250.
[10] DIDIER JR., Fred. Curso de Direito Processual Civil volume 1, 12ª ed. Salvador: Juspodivm, 2010, p.211.
[11] Cassio Scarpinella entende se tratar de a representatividade adequada como uma questão prejudicial para o processamento de uma demanda, trata-se de verdadeira condição de prejudicialidade. (SCARPINELLA BUENO, Cassio. As “class actions” norte-americanas e as ações coletivas brasileiras: pontos para uma reflexão conjunta, in: Revista de Processo, n. 82. São Paulo: 1996, p.102.
[12] Terminologia adotada por José Carlos Barbosa Moreira
[13] RÉ, Aluísio Iunes Monti Ruggeri. Pertinência temática nas ações coletivas. 2011, texto encontrado em <
[14] Acerca da referida temática: CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo in: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador: 2008.
[15] Adotando a mesma concepção NERY Jr., Nelson e NERY, Rosa. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 8ª ed. São Paulo: RT, 2004, p. 1427.
[16] [16] DIDIER JR., Fred. Curso de Direito Processual Civil volume 4, 4ª ed. Salvador: Juspodivm, 2010, p.205/206.
[17] RÉ, Aluísio Iunes Monti Ruggeri. Pertinência temática nas ações coletivas. 2011.
[18] Idem.
[19] ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o "princípio da supremacia do interesse público sobre o particular", 2007. Salvador: Revista Eletrônica da Reforma do Estado (RERE).
Acadêmico do curso de ciências jurídicas da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Estagiário da Receita Federal do Brasil atuante com ênfase no setor de Licitações e Contratos Administrativos. Estagiário do escritório Abreu & Batista advocacia e consultoria jurídica.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BATISTA, Leonardo Silva. Representatividade adequada em sede de ação civil pública: legitimidade ou interesse de agir? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 maio 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44305/representatividade-adequada-em-sede-de-acao-civil-publica-legitimidade-ou-interesse-de-agir. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
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