Resumo: O presente trabalho busca analisar a perplexidade em que vive a sociedade brasileira frente ao descaso do Estado com a barbárie que ocorre diuturnamente dentro dos Estabelecimentos Penais Brasileiros. Partindo do que dispõem o artigo 1º, III e o artigo 5º, III, XLVII, e, e XLIX, da Constituição Federal de 1988, não se pode negar o descumprimento diário da Ordem Constitucional pelo Estado Brasileiro, diante dos inúmeros relatos de violências física, sexual, moral, torturas, homicídios, entre outros crimes que diariamente são praticados contra os presos que estão sob a custódia do Estado Brasileiro, a ensejar a sua responsabilidade objetiva, nos termos do disposto no artigo 37, § 6º da Constituição Federal de 1988. Como detentor do monopólio da coação física legítima deve o Estado zelar pela higidez física e moral dos presos que cumprem pena em seu Sistema Prisional, mas a omissão do Estado na garantia dos direitos fundamentais dos presos é por todos conhecida e se prolonga no tempo sem perspectiva de solução, enquanto a sociedade assiste à desumanização e extermínio dos presos. Pretendemos com este trabalho, demonstrar a necessidade da intervenção do Poder Judiciário para forçar o Estado, a assumir o seu papel constitucional e efetivamente se fazer presente dentro dos Estabelecimentos Penais, dentro dos quais vigem regras e princípios próprios e nos quais os presos são largados à própria sorte e ficam vulneráveis a todo tipo de violência.
Palavras-chave: responsabilidade objetiva do Estado; higidez física e moral dos presos; estabelecimentos penais brasileiros.
Vários são os casos do total abandono do Sistema Penitenciário Brasileiro e da ausência de responsabilização direta e objetiva do Estado, sem análise de dolo, culpa ou causas excludentes por esse fato.
Cite-se, por exemplo, o caso dos presos em caráter cautelar alocados dentro de contêineres de metal no Centro de Detenção Provisória de Cariacica no Estado do Espírito Santo, sem grades e sem janelas.
Sobre esse caso, assim se manifestou o Ministro Nilson Naves, relator do Habeas Corpus nº 142.513, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em 23.3.2010[1]:
É caso de extrema ilegitimidade; é caso de manifesta ilegalidade. Sobretudo de manifesta ilegalidade.
Como nos descreveu o relatório, estou aqui lhes falando, Srs. Ministros, da prisão à qual, são palavras dos impetrantes, falta efetiva fundamentação, e da prisão, são também palavras das últimas informações a nós prestadas, que está sendo cumprida num contêiner. Observem, Senhores, num contêiner. Num contêiner! Isso é impróprio e odioso, ou não é caso de extrema ilegalidade? É cruel, disso, dúvida não tenho eu: entre nós, entre nós e entre tantos e tantos povos cultos, não se admitem, entre outras penas, penas cruéis (Constituição, art. 5º, XLVII, e). E a prisão cautelar nada mais é do que a execução antecipada de pena, tanto que um dos pressupostos da preventiva é a probabilidade de condenação (fumus boni iuris) – da condenação advém a aplicação de pena, da aplicação, a execução, etc. E, a propósito, computa-se, "na pena privativa de liberdade (...), o tempo de prisão provisória..." (Cód. Penal, art. 42).
Limito-me, pois, neste momento, ao aspecto da prisão cumprida num contêiner e repito, a esse respeito, as informações da ilustre Juíza da comarca de Serra:
"1. Segundo informações da Superintendência de Polícia Prisional do Estado do Espírito Santo, prestadas a este juízo por telefone, o paciente Antonio Roldi Filho está preso no Centro de Detenção Provisória de Cariacica, onde é usado 'contêiner' com adaptações como cela, situação que é do conhecimento do Conselho Nacional de Justiça - CNJ e já resultou em reclamação contra o estado do Espírito Santo na ONU."
Isso é humilhante e intolerável!
Pois se tal já resultou em reclamação, reclamo eu também. Reclamo e protesto veementemente, porquanto em contêiner se acondiciona carga, se acondicionam mercadorias, etc.; lá certamente não se devem acondicionar homens e mulheres. Eis o significado de contêiner segundos os dicionaristas: "recipiente de metal ou madeira, ger. de grandes dimensões, destinado ao acondicionamento e transporte de carga em navios, trens etc."; "cofre de carga"; "grande caixa (...) para acondicionamento da carga geral a transportar".
Decerto somos todos iguais perante a lei, e a nossa lei maior já se inicia, e bem se inicia, arrolando entre os seus fundamentos, isto é, entre os fundamentos da nossa República, o da dignidade da pessoa humana. E depois? Depois, lá estão, entre os direitos e garantias fundamentais, entre os princípios e as normas, entre as normas e os princípios: (I) não há pena sem prévia cominação legal (então também não há de haver prisão sem previsão legal), por exemplo, prisão em contêiner; (II) não haverá, entre outras, penas cruéis; (III) assegura-se aos presos o respeito à integridade física e moral; (IV) assegura-se a todos o devido processo legal; (V) ninguém é culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; (VI) a prisão ilegal há de ser imediatamente relaxada; e (VII) ninguém será levado à prisão quando a lei admitir a liberdade provisória. Podendo aqui me valer de tantos e tantos outros textos (normas nacionais e normas internacionais), quero ainda me valer de um, um da Lei de Execução Penal, o do art. 1º: "A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado."
Se assim é – e, de fato, é assim mesmo –, então a prisão em causa é inadequada e desonrante. Não só a prisão que, aqui e agora, está sob nossos olhos, as demais em condições assemelhadas também são obviamente reprováveis. Trata-se, em suma, de prisão desumana, que abertamente se opõe a textos constitucionais, igualmente a textos infraconstitucionais, sem falar dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos (Constituição, art. 5º, § 3º). Basta o seguinte (mais um texto): "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral" (Constituição, art. 5º, XLIX).
É despreziva e chocante! Não é que a prisão ou as prisões desse tipo sejam ilegais, são manifestamente ilegais. Ilegais e ilegítimas.
Ultrapassamos o momento da fundamentação dos direitos humanos; é tempo de protegê-los, mas, “para protegê-los, não basta proclamá-los”. Numa sociedade igualitária, livre e fraterna, não se pode combater a violência do crime com a violência da prisão. Quem a isso deixaria de dar ouvidos? Ouvindo-o a quem? A Dante? “Renunciai as esperanças, vós que entrais”.
Quanto à prisão cautelar, aqui adentramos um aspecto grave do problema: a violência no cumprimento desse tipo de medida contribui, evidentemente, para o robustecimento da violência ao legitimar a violência institucionalizada.
Trago comigo, então, duas propostas. Uma, no sentido de, pura e simplesmente, revogar a prisão preventiva recaída sobre o paciente; a outra, no sentido de substituir a prisão num contêiner por prisão domiciliar. Num e noutro sentido, estendo a proposta a tantos quantos – homens e mulheres – estejam cautelarmente (repito, cautelarmente) presos nas mesmas condições. As prisões não são ilegais, são, isto sim, manifestamente ilegais. Ilegais e ilegítimas.
Já se escreveu que "a lei garante o cidadão e o magistrado garante a lei". Antes de sermos pessoas de ideias, somos pessoas de princípios, pessoas que cultivam princípios, entre os quais, e é para isso que aqui nos encontramos, o de promover o bem de todos sem preconceitos. Por sinal, tal é o que reza um dos objetivos fundamentais da nossa República: sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Somos, também, historicamente comprometidos: é que o Judiciário tem históricos compromissos com a ideia de justiça, pois não é que andamos, é verdade, diariamente, desde que o mundo é mundo, procurando dar resposta à eterna pergunta "o que é a justiça?"! Fazemos diariamente a justiça da melhor maneira possível, conquanto, ao fazê-la, acabemos por agradar a uns e por desagradar a outros. Quanto é difícil agradar a todos!
Porém somos uns sonhadores, sonhamos o sonho do poeta, sentimos a dor do poeta, do poeta que fingia tão completamente que chegava a fingir ser dor a dor que deveras sentia. Talvez por isso é que já se disse que a justiça é o sonho humano – sonho que pouco importa aos pássaros, aos peixes ou ao Deus eterno.
Num momento de intimidação do Judiciário nos anos cinquenta, o Instituto dos Advogados prestou calorosa homenagem ao Juiz Aguiar Dias, oportunidade em que o orador daquela tarde, Dario de Almeida Magalhães, concluiu assim seu magnífico pronunciamento:
"Dos que se investem da missão de distribuir justiça, o que se exige, antes de tudo, é rigorosa independência. Para resguardá-la cerca a Constituição os juízes de garantias cabais. A tibieza e a demissão da parte deles equivalem, por isso, à traição ao dever elementar. E quando esta desgraça acontece, não há salvação no naufrágio em que se perde o regime.
Marcais com o vosso exemplo de intrepidez e energia moral a compreensão que tendes das vossas responsabilidades; e para honra da nossa magistratura, anima-nos a certeza de que no seio dela não representais uma posição solitária, nem sois uma sentinela perdida. Sois, sem dúvida, porém, um expoente e uma segurança, numa quadra de perigos em que é preciso relembrar o aforismo de BACON: 'A lei garante o cidadão e o magistrado garante a lei'."
Sim, é a lei que garante o cidadão, e é o magistrado quem garante a lei. O caso, Srs. Ministros, é de extrema ilegalidade.
Pelo que disse linhas atrás, voto pela concessão da ordem no sentido de revogar a prisão preventiva recaída sobre o paciente, impondo-lhe, no entanto, o compromisso de comparecer a todos os atos do processo. Caso prefiram V. Exas., voto no sentido de substituir a prisão num contêiner por prisão domiciliar. Num e noutro sentido, estendo a ordem a tantos quantos – homens e mulheres – estejam cautelarmente (repito, cautelarmente) presos nas mesmas condições. Quanto à extensão dos efeitos da ordem ora concedida, fica nas mãos do Juiz do processo o exame de cada caso, cabendo de sua decisão reclamação ao Superior Tribunal. As prisões não são ilegais, são, isto sim, manifestamente ilegais. Ilegais e Ilegítimas.
Cerca de 700 presos estavam nessa situação, sendo que houve reclamação contra o Estado do Espírito Santo perante a ONU, mas nenhuma responsabilização objetiva do Estado por descumprimento da Constituição Federal de 1988 e da Lei de Execução Penal.
Foi divulgado um vídeo nas redes sociais em que um preso acusado da prática do crime de estupro é torturado e sofre violência sexual por parte de um grupo de presos, que filma com uma câmera de celular o seu empalamento com um cabo de vassoura, dentro de um presídio em Anápolis/GO.
Ele teve o intestino perfurado.
Atualmente cumpre pena em regime de prisão domiciliar, medida que foi adotada pelo Poder Judiciário como forma de resguardar a sua incolumidade física.
Não se tem notícia sobre providências tomadas para responsabilização objetiva do Estado de Goiás pela ofensa à integridade física e moral do preso em questão.
Lenio Luiz Streck[2] assim se manifestou sobre a ausência de notícias acerca de providências que teriam sido tomadas em relação ao caso:
Notícia cobre notícia. Banalizamos o mal, para repetir ad nauseam a máxima cunhada por Hannah Arendt. E quando o mal se banaliza, perdemos a capacidade de perceber a diferença. Perdemos a capacidade de separar o joio do trigo. E quando o fazemos, ficamos com o joio. Vai mal a sociedade. E por quê? Porque não consegue fazer uma antropofagia do mal e das maldades cotidianas. Indignamo-nos no varejo e nos omitimos no atacado. Somos um misto de anorexia e bulimia informacionais. Não queremos mastigar informações mais complexas e que possam nos fazer refletir; e quando alguma delas passar pelo nosso filtro do mal-estar-civilizacional, vomitamos (bulimia) tudo. Assim, vamos enfraquecendo.
(…)
Falamos dos alemães que ficaram inertes vendo os nazistas mandarem os judeus para os campos de concentração. No fundo, não há muita diferença entre os campos de concentração e a prisão de Pedrinhas ou de Anápolis ou do Presídio Central de Porto Alegre ou de Cascavel. E não se faz nada. Diz-se sempre o chavão: haverá investigação... Onde está nossa intelligentia? Há um ministério que trata do assunto “direitos humanos”. Mas que tem muito mais um efeito de flambar as coisas. Como está Pedrinhas, hoje? Outro dia houve fuga em massa. E como está o caso de Anápolis? Diz-se que o acusado-empalado foi para prisão domiciliar. Mas, se isso é verdade, porque teve sua preventiva decretada? Gostaria de por os olhos na decisão de preventiva do acusado-empalado. Quem a tiver, mande-a, por favor. E o parecer do Ministério Público. Aliás, como a Coluna será lida pelos promotores que pediram o afastamento do diretor, eles mesmo poderiam me mandar (ou para a ConJur) tanto o pedido de preventiva como o parecer ministerial e a decisão do magistrado.
Em 21.10.2007, na cidade de Abaetetuba no Estado do Pará, uma menina de 15 anos foi presa junto com cerca de 20 homens na mesma cela da Delegacia de Polícia por aproximadamente 25 dias, durante os quais foi repetidamente torturada e estuprada pelos outros presos.
A menina foi resgatada pelo Conselho Tutelar de Abaetetuba após denúncias de outros presos.
O Conselho Nacional de Justiça do Brasil (CNJ)[3] puniu a juíza responsável pelo caso, a qual tinha conhecimento de que a menor estava presa em uma cela com homens, posto que o único local da cidade onde poderia ser recolhida, com aposentadoria compulsória, mas a decisão foi anulada Supremo Tribunal Federal que considerou a punição excessiva.
Atualmente a Juíza exerce as suas funções judicantes normalmente.
Alguns dos delegados e agentes policiais envolvidos foram punidos administrativamente, com perda do cargo.
A questão ganha relevo na medida em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da questão constitucional da responsabilização objetiva do Estado em situações envolvendo a violação a direitos fundamentais de presos em alguns processos que aguardam julgamento pela Corte:
No Recurso Extraordinário nº 580.252, relator Ministro Teori Zavascki, discute-se a contraposição entre a chamada cláusula da reserva financeira do possível e a pretensão de obter indenização por dano moral decorrente da submissão a tratamento desumano e degradante, em flagrante ofensa à integridade física em moral de presos;
No Recurso Extraordinário nº 592.581, relator Ministro Ricardo Lewandowski, discute-se a possibilidade do Poder Judiciário determinar ao Estado obrigação de fazer consistente na execução de obras em estabelecimentos penais, para garantia dos direitos fundamentais dos presos, em razão das precárias condições das penitenciárias, o que implica ofensa à integridade física e moral dos presos;
No Recurso Extraordinário nº 638.467, relator Ministro Luiz Fux, discute-se a possibilidade de responsabilização objetiva do Estado em razão de morte de preso dentro de estabelecimento penal, em ofensa a direito fundamental de garantia de higidez física e moral;
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5170, ajuizada em 20.10.2014 pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, pede-se que o Supremo Tribunal Federal “confira interpretação conforme à Constituição aos artigos 43, 186 e 927, caput e parágrafo único, do Código Civil (Lei nº 10.406/2002), de modo a declarar que o Estado é civilmente responsável pelos danos morais causados aos detentos quando os submete à prisão em condições sub-humanas, insalubres, degradantes ou de superlotação”.
O enfrentamento do tema pelo Supremo Tribunal Federal nos quatro processos acima mencionados possibilitará que o Estado assuma a sua responsabilidade objetiva, por atos comissivos e omissivos, sobre a violência sofrida pelos presos que estão sob a sua guarda, considerados os princípios da máxima efetividade e da força normativa da Constituição.
A jurisdição constitucional qualificar-se-á nesses processos paradigmas como importante fator de contenção das ações e omissões do Estado transgressoras do texto da Constituição da República conferindo plena eficácia ao disposto no artigo 1º, III, no artigo 5º, III, XLVII, e, e XLIX e no artigo 37, § 6º, todos da Constituição Federal de 1988, responsabilizando objetivamente o Estado Brasileiro, por atos comissivos e omissivos, independentemente de aferição de dolo ou culpa e sem excludentes de responsabilidade, em suas três esferas, Federal, Estadual/Distrital e Municipal pelos danos causados aos presos que estão sob os seus cuidados, tendo em vista que exerce o monopólio do Aparelho Penal Repressor e Punitivo.
A superlotação é um dos maiores problemas identificados nos presídios brasileiros e decorre de uma política de encarceramento em massa aliada à falta de investimentos.
O Presídio Aníbal Bruno, em Recife/PE, é considerado o pior do país.
Lá, 6.862 presos disputam as 1.466 vagas.
Segundo o Juiz José Braga Neto, Coordenador do Mutirão Carcerário realizado no local pelo Conselho Nacional de Justiça, nos meses de abril e maio de 2014, o Presídio não dispõe de condições mínimas para a custódia dos presos e afirmou: “Já coordenei diversos mutirões carcerários, visitei vários presídios, mas este é o pior local que eu já vi. As instalações são insalubres, a estrutura é antiquada e improvisada, gerando verdadeiras favelas, com celas escuras ou com pouca luminosidade e ventilação precária. Essas pessoas são esquecidas pelo governo e pela sociedade, cumprindo pena ou aguardando julgamento em situação degradante, humilhante”[4].
Mais recentemente o Presídio da cidade de Pedrinhas, localizado no Maranhão, ocupou durante meses o noticiário e as redes sociais.
A barbárie no Complexo Penitenciário de Pedrinhas chocou o Brasil.
O Juiz Douglas Martins, em visita ao Complexo Penitenciário ocorrida em 20.12.2013, informou que esposas e irmãs de presos são obrigadas a manter relações sexuais com líderes de facções criminosas, que ameaçam de morte os presos que se recusam a permitir o estupro das mulheres, concluindo:
“As parentes de presos sem poder dentro da prisão estão pagando esse preço para que eles não sejam assassinados. É uma grave violação de direitos humanos”, afirmou o juiz, que é coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (DMF) do CNJ. Ele vai incluir a informação no relatório sobre a situação de Pedrinhas que vai entregar ao presidente do CNJ, ministro Joaquim Barbosa esta semana. A visita ocorreu após a morte de um detento quinta-feira (19/12). Seria o 58º preso morto este ano no Complexo de Pedrinhas, segundo a imprensa maranhense”[5].
Decapitações e esquartejamentos foram filmados pelos próprios presos em execuções de penas de morte, com extrema crueldade, cujos vídeos foram orgulhosamente exibidos nas redes sociais.
Vive-se uma verdadeira violência institucionalizada e combate-se a violência do crime com a violência da prisão.
A violação aos direitos humanos mais básicos, à dignidade da pessoa humana, à integridade física e psíquica, ocorre sem controle e aos olhos de todos.
Aos presos é reservado o tratamento mais desumano, degradante e cruel possível.
Como forma de retribuição pelo crime que cometeram, permite-se que contra eles sejam cometidos os crimes mais hediondos.
Como um verdadeiro símbolo da total falência e crise institucional do modelo prisional brasileiro, o Ministro da Justiça do Brasil, Sua Excelência, José Eduardo Cardozo, em 13.11.2012, em evento realizado na cidade de São Paulo, declarou que os presídios no Brasil são “medievais” e “escolas do crime” e ainda que “preferia morrer a ficar preso no sistema penitenciário brasileiro”.[6]
Nos termos do artigo 37, § 6º da CF/88 as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
A questão da omissão do Estado na garantia da dignidade da pessoa humana do preso e de sua integridade física e moral, diariamente exposta para a sociedade brasileira, conduz à reflexão sobre a necessidade de se buscar a efetiva responsabilização objetiva do Estado diante da constatação de ineficiência, descaso e degradação em que se encontra o sistema carcerário brasileiro, conferindo-se concretude aos comandos constitucionais que garantem que ninguém será submetido à tortura, a tratamento desumano ou degradante, nem a penas cruéis e ainda que asseguram aos presos o respeito à integridade física e moral, em razão da mais absoluta sujeição dos presos ao castigo imposto pelo Estado: aprisionamento sob a sua vigilância.
Diante desse quadro de abandono e superlotação dos presídios brasileiros, assume especial relevo o papel do Supremo Tribunal Federal na concretização dos direitos fundamentais dos presos, que estão previstos na CF/88, sob pena de não se realizarem e se tornarem apenas promessas do Poder Constituinte Originário para a população carcerária.
Ao Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, cabe a guarda da Constituição, competindo-lhe assegurar a força normativa da Carta Magna, não permitindo que as normas constitucionais, em especial as asseguradoras de direitos e garantias, tornem-se vazias.
No dia 3.12.2014 o Supremo Tribunal Federal interrompeu o julgamento do Recurso Extraordinário nº 580252, após o pedido de vista do Ministro Luís Roberto Barroso, tendo o Ministro Teori Albino Zavascki proferido voto no sentido de manutenção da condenação do Estado de Mato Grosso do Sul ao pagamento de indenização por danos morais causados a um detento, no que foi acompanhado pelo Ministro Gilmar Mendes.
Assim consignou o Relator em seu voto:
Portanto, repita-se, os fatos da causa são incontroversos: o recorrente, assim como os outros detentos do presídio de Corumbá/MS, cumprem pena privativa de liberdade em condições não só juridicamente ilegítimas (porque não atendem às mínimas condições de exigências impostas pelo sistema normativo), mas também humanamente ultrajantes, porque desrespeitosas a um padrão mínimo de dignidade.
Também não se discute que, nessas condições, o encarceramento impõe ao detendo um dano moral, cuja configuração é, nessas circunstâncias, até mesmo presumida.
Sendo incontroversos os fatos da causa e a ocorrência do dano, a questão jurídica desenvolvida no presente recurso ficou restrita à sua indenizabilidade, ou seja, à existência ou não da obrigação do Estado de ressarcir os danos morais verificados nas circunstâncias enunciadas. É nesses limites e sob esse enfoque que o recurso extraordinário deve ser examinado.
(...)
O dever de ressarcir danos, inclusive morais, efetivamente causados por ato dos agentes estatais ou pela inadequação dos serviços públicos decorre diretamente do art. 37, § 6º, da Constituição, disposição normativa autoaplicável, não sujeita a intermediação legislativa ou administrativa para assegurar o correspondente direito subjetivo à indenização. Ocorrendo o dano e estabelecido o seu nexo causal com a atuação da Administração ou dos seus agentes, nasce a responsabilidade civil do Estado, caso em que os recursos financeiros para a satisfação do dever de indenizar, objeto da condenação, serão providos, se for o caso, na forma do artigo 100 da Constituição.
(...)
Em suma, a tese de repercussão geral que proponho seja afirmada é a seguinte: considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento.
Trata-se de julgamento ainda pendente de conclusão, cujo desfecho terá impacto em centenas de ações judiciais onde se discute a responsabilidade civil objetiva do Estado por danos causados aos presos que cumprem pena em seus presídios.
Outro julgamento importante pendente de julgamento é o da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5170, na qual o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil formulou pedido para que o Supremo Tribunal Federal confira interpretação conforme a Constituição aos artigos 43, 186 e 927, caput e parágrafo único, do Código Civil, de modo a declarar que o Estado é civilmente responsável pelos danos morais causados aos presos quando os submete à prisão em condições sub-humanas, insalubres, degradantes ou de superlotação.
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil fez ainda um pedido para que o Supremo Tribunal Federal edite uma sentença aditiva, determinando que o valor da indenização seja pago em parcelas mensais, iguais e sucessivas, correspondentes ao período de tempo que o preso foi mantido em condições de indignidade.
Como guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal deve velar pela máxima efetividade das normas constitucionais e pela força normativa da Constituição, de modo a extrair-se a maior realização do texto constitucional, com incidência da Constituição sobre as relações sociais, impondo-se como estatuto jurídico máximo do país, com força para por si só regular casos concretos.
A discussão acerca do STF estar ofendendo o princípio da separação dos poderes ganha especial relevo para o debate jurídico no sentido de que, ao dar concreção a direitos previstos na Constituição, o Supremo Tribunal realiza a vontade do Poder Constituinte Originário, que previu direitos que não podem restar esvaziados diante da inatividade dos outros dois Poderes da República, isso em atenção à sua missão constitucional de guardião da Constituição.
O posicionamento do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIN nº 5170 indicará a tendência da jurisdição constitucional, considerados os novos contornos atribuídos ao princípio da máxima efetividade e da força normativa da Constituição.
A jurisdição constitucional qualifica-se como importante fator de contenção de eventuais excessos, abusos ou omissões transgressoras do texto da Constituição da República.
Em junho de 2014, o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça divulgou o seguinte diagnóstico de pessoas presas no Brasil[7]:
Panorama Brasileiro
População no sistema prisional = 563.526 presos
Capacidade do sistema = 357.219 vagas
Déficit de Vagas = 206.307
Pessoas em Prisão Domiciliar no Brasil = 147.937
Total de Pessoas Presas = 711.463
Déficit de Vagas = 354.244
Número de Mandados de Prisão em aberto no BNMP = 373.991
Total de Pessoas Presas + Cumprimento de Mandados de Prisão em aberto = 1.085.454
Déficit de Vagas = 728.235
A superlotação carcerária é tema que está em debate no Brasil.
As violentas rebeliões nos presídios brasileiros e a forte presença de facções criminosas atuantes dentro e fora dos estabelecimentos penais, comandando ataques de dentro das prisões, são reveladoras da ausência do Poder Público no cotidiano das prisões.
Não obstante ser o detentor do monopólio da força física e dos meios de violência, o Estado, ao encarcerar seus criminosos, os abandona à própria sorte submetendo-os à tortura, a tratamento desumano e degradante e a penas cruéis, em clara violação à integridade física e moral dos presos.
Não há como se manter inerte diante da gravíssima violação de direitos humanos que ocorre diariamente dentro dos estabelecimentos penais brasileiros e o Supremo Tribunal Federal tem sido instado a viabilizar, por meio de suas decisões, o exercício de direitos e garantias constitucionais, a despeito da omissão do Poder Executivo, como forma de garantir a supremacia e a força normativa da Constituição, protegendo a vontade do Poder Constituinte Originário para que a Constituição não seja submetida a inaceitável desprestígio, diante da ineficácia de suas normas, em virtude de inércia do Poder Executivo no cumprimento de seus comandos, situação configuradora de desapreço pela autoridade, pelo valor e pelo alto significado de que se reveste a Constituição da República do Brasil, estatuto político máximo do País, com a qual todos os demais atos normativos devem guardar relação de compatibilidade vertical, sob pena de nulidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 638.467. Recorrente: Estado do Rio Grande do Sul. Recorrido: Vandrey Jardim de Quevedo. Relator: Luiz Fux. Rio Grande do Sul. Disponível em: http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 22/9/2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252. Recorrente: Anderson Nunes da Silva. Recorrido: Estado de Mato Grosso do Sul. Relator: Teori Zavascki. Mato Grosso do Sul. Disponível em: http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 22/9/2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 592.581. Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Recorrido: Estado do Rio Grande do Sul. Relator: Ricardo Lewandowski. Rio Grande do Sul. Disponível em: http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 22/9/2014.
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[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma. Habeas Corpus nº 142.513. Relator Ministro Nilson Naves. Espírito Santo, 23 de março de 2013. Disponível em www.stj.jus.br. Acesso em 22/9/2014.
[2] STRECK, Lenio Luiz. Senso Incomum. Vivemos entre anorexia e bulimia informacionais: assistam ao vídeo! Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2014-set-25/senso-incomum-vivemos-entre-anorexia-bulimia-informacionais-assistam-video>. Acesso em: 22/9/2014.
[3]MB/MM Agência CNJ de Notícias. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/albuns/96-noticias/8930-juiza-do-pa-que-manteve-menina-presa-em-cela-masculina-e-aposentada-pelo-cnj>. Acesso em: 22/9/2014.
[4] Jorge Vasconcellos Agência CNJ de Notícias. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/28453-mutirao-aponta-graves-problemas-no-presidio-anibal-bruno-em-recifepe#ad-image-0>. Acesso em: 22/9/2014.
[5] Manuel Carlos Montenegro Agência CNJ de Notícias. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/27250:juiz-do-cnj-cobra-fim-da-violencia-a-familias-de-presos-durante-visitas-intimas-em-pedrinhas>. Acesso em: 22/9/2014.
[6] Tatiana Santiago do G1 de São Paulo. Disponível em: < http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2012/11/ministro-da-justica-diz-que-preferia-morrer-ficar-preso-por-anos-no-pais.html>. Acesso em: 2/12/2014.
[7] http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf
Defensora Pública Federal no Distrito Federal, Pós-Graduação em Direito Processual Civil e Direito Constitucional.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARRUDA, Viviane Magalhães Pereira. O sistema carcerário brasileiro e os artigos 1º, III, 5º, III, XLVII, alínea E e XLIX e 37 parágrafo 6º, da Constituição Federal de 1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jun 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44573/o-sistema-carcerario-brasileiro-e-os-artigos-1o-iii-5o-iii-xlvii-alinea-e-e-xlix-e-37-paragrafo-6o-da-constituicao-federal-de-1988. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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