RESUMO: O regime disciplinar diferenciado (RDD) foi introduzido no ordenamento brasileiro através da Lei 10.792/03, a qual alterou o artigo 52 da Lei de Execuções Penais, a fim de consagrar uma punição mais severa às faltas graves cometidas durante a execução da pena e aos participantes de organização criminosa. Todavia, os requisitos para a imposição do gravame extrapolam princípios estruturais do direito penal, configurando ofensa à dignidade humana e um retrocesso no processo de humanização do Direito.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal. Execução Penal. Regime Disciplinar Diferenciado.
ABSTRACT: The Solitary Confinement was introduced in the Brazilian by Law 10.792/03, which amended article 52 of the Criminal Law Enforcement in order to establish a more severe punishment for serious offenses committed during the execution of the sentece and the participants of a criminal organization. However, the requirements for the imposition of the lien extrapolate structural principles of criminal Law, setting offense to human dignity and a setback in the process of humanization of Law.
KEY-WORDS: Criminal Law. Criminal Enforcement. Solitary Confinement.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Apresentação do regime disciplinar diferenciado. 2. Análise crítica. 3. Análise jurisprudencial. 3.1. Na visão do STF. 3.2. Na visão do STJ. 4. Pontos controvertidos. 4.1. Progressão de regime no RDD. 4.2. Trabalho para o preso em RDD. Conclusões. Referências Bibliográficas.
Introdução
O regime disciplinar diferenciado (RDD) foi introduzido no ordenamento brasileiro através da Lei 10.792/03, a qual alterou o artigo 52 da Lei de Execuções Penais (LEP), como forma de combater a criminalidade organizada dentro dos presídios brasileiros, especialmente, os paulistas e cariocas.
O presente artigo visa apresentar as incompatibilidades deste regime com os princípios e garantias penais previstos na Constituição da República e nos tratados e declarações internacionais de proteção a pessoa humana e discutir os motivos que levam boa parte da doutrina e a jurisprudência dominante a considerá-lo como compatível com a dignidade humana.
Inicialmente apresenta-se o instituto para, a seguir, analisar as várias ofensas aos princípios e garantias penais constitucionais e aos tratados e declarações de Direitos Humanos que a adoção do Regime Disciplinar Diferenciado representa.
1 Apresentação do regime disciplinar diferenciado
O regime disciplinar diferenciado (RDD) foi introduzido no ordenamento brasileiro através da Lei 10.792/03, a qual alterou o artigo 52 da Lei de Execuções Penais, a fim de consagrar uma punição mais grave e severa às faltas graves cometidas durante a execução da pena, bem como aos participantes do crime organizado.
O surgimento deste regime está associado à estruturação do crime organizado dentro dos presídios brasileiros, em franca demonstração de poder das facções criminosas e da incompetência do poder repressor do Estado.
Assim, para dar uma resposta, mais simbólica que efetiva, o Estado inaugura o RDD, que nas palavras de Christiane Russomano Freire[1] reflete “o desejo ávido de controlar o descontrole, num golpe de cena, deu forma e propagou em nível nacional a punição disciplinar por meio do isolamento celular pelo período de 360 dias”.
Deste modo, pela ineficiência do Estado em cumprir as clássicas finalidades da pena – prevenção, retribuição e ressocialização – os presídios se tornaram um câncer social, reduto de aprimoramento da criminalidade, prova cabal do insucesso de uma política criminal inadequada, pautada, durante décadas, no direito penal do autor e no movimento de lei e ordem.
Todavia, para resolver estes problemas o Estado usa do mesmo veneno para se curar, buscando o recrudescimento de penas, em detrimento de uma política social e ressocializadora. Neste contexto, exsurge no cenário nacional o famigerado RDD, cuja transcrição vale ser feita, in litteris, para fins de análise:
Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:
I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada;
II - recolhimento em cela individual;
III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas;
IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.
§ 1o O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.
§ 2o Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando.
As principais críticas apontadas pela doutrina penal derivam, primeiramente, do aporte filosófico e teleológico do instituto, e, em segundo lugar, das incongruências das regras ante o ordenamento jurídico constitucional-penal, tais como, a dupla punição por um mesmo fato, o retorno da solitária, a incerteza da duração, limitação de visitas, a abrangência do preso provisório, punição pela moral da pessoa e não pelo fato cometido, possibilidade de decretação baseada em suspeita, excesso de expressões vagas e procedimento sem contraditório.
Tal medida surge como caráter emergencial no discurso político, mas se instaura em caráter definitivo, com o aval entorpecido de uma sociedade alienada e amedrontada, a qual imbuída pelo sentimento de vingança consente com a transmudação do sistema meritório, pautado nas punições e recompensas, ao permitir o isolamento celular independentemente da prática efetiva e devidamente apurada da falta graves[2], ocasionando o agigantamento do poder discricionário do Diretor do Presídio.
2. Análise crítica
O RDD viola vários princípios constitucionais penais e processuais de garantia da dignidade humana.
A lei penal deve ser objetiva, clara e certa, o que não acontece com o artigo 52 da Lei 7210/84 (LEP) o qual prevê palavras vagas, indeterminadas e frases ambíguas, tais como, ‘falta grave’, ‘subversão da ordem’, ‘sem contar as crianças’, ‘a qualquer título’, ‘fundadas suspeitas’.
O uso destas expressões vagas e ambíguas, além de causar confusão, diminui as garantias do réu, abrindo margem ao cometimento de arbitrariedades por parte do poder público. Neste sentido, colaciona-se abaixo julgado do STF em que se entendeu como falta grave dormir durante a chamada:
HABEAS CORPUS - Empate. O empate na votação de habeas corpus, ausente um dos integrantes do Colegiado, deságua na imediata proclamação do resultado mais favorável ao paciente. Pena - Execução - Dias Trabalhados - Perda - Falta Grave – Ausência de Razoabilidade. Surge discrepante da razoabilidade impor ao preso pena, considerado o que enquadrado como falta grave, a alcançar não só o isolamento como também a perda dos dias remidos em razão de não haver atendido, porquanto dormia, à chamada. (STF - HC 94701/RS) (negritei)
A imposição de pena ao condenado deve observar o procedimento de individualização da pena, que busca uma “adequação da pena ao delito, garantindo também a eficácia da sanção penal aplicada, utilizando-se de um método individualizador para que o condenado não sofra mais do que o prescrito em lei e possa exercer os direitos que não foram atingidos pela pena[3]”.
Verifica-se que a individualização da pena é um procedimento tanto do juiz da condenação quanto do juiz da execução, haja vista que o Brasil adotou o sistema progressivo de penas, sendo a execução conduzida pela imposição de punições e recompensas, todavia, a imposição de um período de tempo fixo no RDD, o qual pode ultrapassar 360 dias, contraria o sistema progressivo e o procedimento de individualização, por ser um período extenso, sem avaliação do comportamento do condenado, sem qualquer estímulo ao bom comportamento ou alguma medida ressocializadora.
Muito pelo contrário, o uso da solitária impede o trabalho social do preso, cessa o contato com outras pessoas, e, consequentemente, impede a ressocialização, além de ocasionar danos psicológicos em virtude da tortura psicológica, que é a solidão por longo período. Vale lembrar que o ser humano é um ser social, que vive em comunidade, e o fato de segregá-lo, significa coisificá-lo, ao desmerecer as características de ser social.
O sistema progressivo de cumprimento de penas visa a ressocialização e foi o sistema adotado no Brasil para o cumprimento de penas, sendo inclusive finalidade da execução penal, prevista no art. 1º da LEP. Todavia, o RDD foge a esta regra, ao aniquilar a vontade do preso, haja vista que durante o período de isolamento, de nada adianta qualquer bom comportamento ou qualquer mérito do condenado, pois nada alterará sua situação. Vale registrar algumas notas sobre o sistema progressivo, por Bitencourt[4]:
A meta do sistema tem dupla vertente: de um lado pretende constituir um estímulo à boa conduta e à adesão do recluso ao regime aplicado e, de outro, pretende que este regime, em razão da boa disposição anímica do interno, consiga paulatinamente sua reforma moral e a preparação para a futura vida em sociedade. O regime progressivo significou, inquestionavelmente, um avanço penitenciário considerável. Ao contrário dos regimes auburniano e filadélfico, deu importância à própria vontade do recluso, além de diminuir significativamente o rigorismo na aplicação da pena privativa de liberdade.
O artigo 58 da Lei 7210/84, estabelece que o isolamento não poderá exceder a 30 dias, mas a lei 10792/03 excepcionou este artigo a fim de possibilitar que o RDD seja de 360 dias, podendo ser repetido por um período de um sexto da pena aplicada, sendo que a jurisprudência vem tergiversando sobre qual seria esta ‘pena aplicada’, o que é mais uma violação ao direito penal.
Esta longa duração do isolamento traz graves consequências psicológicas ao recluso, o que, claramente, ofende a dignidade humana, pilar do Estado Democrático de Direito, especialmente por não contar com acompanhamento médico durante um longo período de isolamento. Aliás, é o posicionamento do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciaria (CNPCP) do Ministério da Justiça[5]:
A questão da sanidade mental e física do preso mostra-se absolutamente relevante e, neste aspecto, a Lei n. 10.792/03 andou mal em não prever qualquer amparo médico ao submetido ao RDD. Ausente o acompanhamento médico, restaram violadas as Regras Mínimas e presume-se que a aplicação da segregação individual resulta em crueldade, desumanidade e/ou degradação da pessoa encarcerada.
O RDD, nos termos da lei, será aplicado ao preso provisório ou condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando. Não obstante a vagueza das expressões, o referido artigo consagra em poucas palavras o direito penal do autor, o direito penal do inimigo e o direito penal de periculosidade – em ofensa ao princípio da lesividade.
Vale colacionar o ensinamento de Zaffaroni[6]:
[...] a personalidade que se inclina ao delito, é gerada na repetição de condutas que num começo foram livremente escolhidas e, portanto, postula que a reprovação que se faz ao autor não o é em virtude do ato, mas em função da personalidade que este ato revela (culpabilidade de autor). Também entende que o que é proibido é a personalidade, o que se chama “tipo de autor”. Portanto: todo direito penal de periculosidade é direito penal de autor, enquanto o direito penal de culpabilidade pode ser de autor ou “de ato” (que é o seu oposto). (destaque do autor)
A aplicação do RDD ao réu suspeito de fazer parte em organizações criminosas, é nítido delito de perigo, forma de direito penal do autor, que consagra opção de direito penal do inimigo, além de fugir a suposta finalidade do instituto que é ser sanção por falta grave, como adverte o parecer do CNPCP[7]:
Entretanto, mesmo que o isolamento de presos de alta periculosidade fosse permitida pela lei, a norma que instituiu o RDD o fez como sanção pela prática de infração disciplinar grave, não como regime de cumprimento de pena, contrariando, aliás, sua própria denominação.
Contudo, permitir a punição por ter suspeitas de participação em organização criminosa, quadrilha ou bando, configura violação a proibição de bis in idem, haja vista que o réu estará sendo punido duas vezes pelo mesmo fato, ao responder pelo crime do art. 288 do Código Penal ou por outro delito correspondente, previsto na legislação especial, e por ser incluído ao RDD.
Importante, trazer à baila a conclusão do parecer do CNPC sobre o RDD [8]
Diante do quadro examinado, do confronto das regras instituídas pela Lei n. 10.792/03 atinentes ao Regime Disciplinar Diferenciado, com aquelas da Constituição Federal, dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Prisioneiros, ressalta a incompatibilidade da nova sistemática em diversos e centrais aspectos, como a falta de garantia para a sanidade do encarcerado e duração excessiva, implicando violação à proibição do estabelecimento de penas, medidas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, prevista nos instrumentos citados. Ademais, a falta de tipificação clara das condutas e a ausência de correspondência entre a suposta falta disciplinar praticada e a punição decorrente, revelam que o RDD não possui natureza jurídica de sanção administrativa, sendo, antes, uma tentativa de segregar presos do restante da população carcerária, em condições não permitidas pela legislação.
Por fim, viola-se o princípio da humanidade da pena, ao impor ao apenado uma sanção desproporcional, extensa, capaz de produzir danos psicológicos, pautada em bases arbitrárias, ou, simplesmente por punir a pessoa – supostamente participante de organização criminosa, quadrilha ou bando – independentemente da realização de conduta criminosa.
Assim, é importante observar o ensinamento de Shecaira[9] sobre o princípio da humanidade das penas, “é através da forma de punir que ser verifica o avanço moral e espiritual de uma sociedade, não se admitindo pois, nos tempos atuais, qualquer castigo que fira a dignidade e a própria condição do Homem”.
O irracional poder punitivo reflete um autoritarismo sem base científica ou filosófica, pautado apenas numa opacidade perversa, simplista e rasa, difundido através da mídia e de uma propaganda retaliativa, que a cada momento seleciona um inimigo para expiar as frustrações individuais de uma coletividade acéfala.
Assim, no âmbito da ignorância massiva e dos sentimentos coletivos de vingança, se abre espaço para a aprovação majoritária do RDD, para que o inimigo sofra e a sociedade seja vingada. É claro que a aplicação simplista do RDD não combate o crime organizado, nem resolve o problema da impunidade e da criminalidade no Brasil, mas serve de expiação das frustrações coletivas no sangue dos indesejáveis da sociedade.
Muitos doutrinadores pátrios defendem o RDD por considerá-lo benéfico ao condenado, ou seja, buscam compensar as péssimas condições dos presídios com isolamento, sob a falácia de que o preso estaria melhor na solitária do que num cárcere imundo. Ora, fosse assim, o RDD não cumpriria sua finalidade de punir com maior severidade os membros do crime organizado, já que se apresentaria como uma benesse, ao se retirar o preso do cárcere superlotado para uma “sala vip”.
Neste sentido, Guilherme de Souza Nucci[10]:
Por isso, o regime disciplinar diferenciado tornou-se um mal necessário, mas está longe de representar uma pena cruel. Severa, sim; Desumana, não. Aliás, proclamar a inconstitucionalidade desse regime, mas fechando os olhos aos imundos cárceres aos quais estão lançados muitos presos no Brasil, é, com a devida vênia, uma imensa contradição. É sem dúvida, pior ser inserido em uma cela coletiva, repleta de condenados perigosos, com penas elevadas, muitos deles misturados aos presos provisórios, sem qualquer regramento e completamente insalubre, do que ser colocado em cela individual, longe da violência de qualquer espécie, com mais higiene e asseio, [...]. (itálico do autor)
Desta forma, se o RDD é um bem em si, por ser, supostamente, melhor do que o cárcere imundo configuraria, então, uma recompensa e não uma punição mais severa, razão pela qual tal argumento se mostra falacioso.
Ademais, este argumento é desprovido de legitimidade e de base, pois optar entre duas indignidades significa desprezar o caráter humano dos condenados, tratando-os como coisas desprovidas de valor, cuja dignidade pode ser barganhada, sob o clichê de que “não há direitos absolutos”. E, pode, ainda, acarretar uma perigosa fenda no sistema jurídico, que justifica o descumprimento de outras normas, abrindo-se o flanco para qualquer aberração, por exemplo, a instalação da pena de morte.
Reconhecer o RDD como um mal necessário é o primeiro passo para se reconhecer nos Direitos Humanos um bem desnecessário, permitindo restrições indevidas nos direitos e liberdades fundamentais do ser humano.
Neste sentido, Zaffaroni acrescenta[11]:
A periculosidade e seu ente portador (o perigoso) ou inimigo ontologicamente reconhecível, provenientes da melhor tradição positivista e mais precisamente garofaliana, cedo ou tarde, devido à sua segurança individualizadora, termina na supressão física dos inimigos. O desenvolvimento coerente do perigosismo, mais cedo ou mais tarde, acaba no campo de concentração.
A ideia de que a violência e a repressão são soluções parte da coisificação do ser humano, da massificação da cultura e do pensamento e incapacidade de se pensar no outro com respeito, ética e solidariedade.
A violência não é o caminho para se ressocializar o preso, nem para resolver o problema da criminalidade organizada. A História já forneceu inúmeros exemplos de que a violência e o desrespeito a dignidade alheia não foram, nem nunca serão solução para qualquer coisa.
Ao contrário, a violência representa a perda de poder do Estado e a degenerescência dos sentimentos positivos e na corrosão das relações político-sociais, não por outra razão, Hannah Arendt ensina que “a violência destrói o poder, não o cria”[12].
Nesta esteira, Arendt[13]
Para resumir: politicamente falando, é insuficiente dizer que poder e violência não são o mesmo. Poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em risco, mas, deixada a seu próprio curso, conduz à desaparição do poder. Isso implica ser incorreto pensar o oposto da violência como a não violência; falar de um poder não violento é de fato redundante. A violência pode destruir o poder; ela é incapaz de criá-lo.
De acordo com o pensamento arendtiano se encontram os ensinamentos de Eugenio Raúl Zaffaroni, no sentido de entender que o “mero exercício do poder não é direito penal”, a violência do direito penal escondida atrás da palavra repressão, não é finalidade do direito penal. Ao contrário, o direito penal para ser efetivo precisa ser legítimo, e da violência nunca advém legitimidade.
A violência se funda no sentimento de vingança e não na justiça, de forma que ela atua fora do plano racional e sem limites, haja vista que a irracionalidade é ilimitada.
Assim, corrobora Zaffaroni[14]:
O direito penal efetivo será aquele que tenha capacidade para mostrar-se como um direito penal “liberador”, enquanto o não efetivo será um direito penal “repressivo”. Aqueles que afirmam que todo o direito penal é repressivo porque “reprime” caem num absurdo infantilismo positivista, cômodo para quem detém o poder, até o dia em que se seja deposto por seu opositor. Tudo se passará da mesma maneira como o critério acerca do “repressivo” fundado no formal: nós, cientistas do direito penal, nos sentaremos para presenciar como aquele que tem o poder fuzila seus opositores e, no dia seguinte, como os opositores de ontem fuzilam os depostos de hoje, o direito penal pode terminar em um espetáculo para sádicos.
Resta demonstrado filosoficamente que a violência corrói o poder e quando travestida de direito penal, perde a sua legitimidade, caminhando para tornar o direito penal num espetáculo de horror. Também a História é pródiga em demonstrar a incompetência da violência para governar, basta lembrar, do nazismo, do stalinismo, das ditaduras totalitárias, sendo interessante notar que as políticas que os embasavam não pregavam a violência, haja vista que os atos perpetrados não eram tidos como violentos por quem os praticava, dado o papel bem cumprido da propaganda massificadora, da ideologia de negação do outro, do individualismo capitalista.
Ainda, há operadores do direito que defendem o RDD, por não o considerarem como uma violência, entretanto, tais operadores se encastelam na própria opinião desprovida de base jurídica nos Direitos Humanos e alheia às considerações de outros profissionais da saúde, como psiquiatras e psicólogos, ou de outras áreas como filósofos, cientistas políticos, sociólogos etc.
E se houvesse dúvida sobre o uso da solitária consistir ou não em uma violência à pessoa humana, em observância ao princípio pro homine, a única opção condizente com o Sistema de Proteção da Pessoa Humana seria considerar a violência, por não ser legítimo correr o risco de violentar uma pessoa em virtude de uma dúvida.
O direito penal caminha para se tornar um espetáculo de horrores, num regime de nulificação das liberdades públicas, com decisões pautadas em uma retórica vazia, que reproduz a arcaica ideologia de poder e uma concepção deturpada de direito penal puramente repressor (conforme acórdão abaixo), o qual desconsidera por completo a presença do réu, o qual figura como mero detalhe numa sentença penal condenatória.
EMENTA: "HABEAS CORPUS" – [...] Revela-se inadmissível, na hipótese de condenação a pena não superior a 08 (oito) anos de reclusão, impor, ao sentenciado, em caráter inicial, o regime penal fechado, com base, unicamente, na gravidade objetiva do delito cometido, especialmente se se tratar de réu que ostente bons antecedentes e que seja comprovadamente primário. - O discurso judicial, que se apóia, exclusivamente, no reconhecimento da gravidade objetiva do crime - e que se cinge, para efeito de exacerbação punitiva, a tópicos sentenciais meramente retóricos, eivados de pura generalidade, destituídos de qualquer fundamentação substancial e reveladores de linguagem típica dos partidários do "direito penal simbólico" ou, até mesmo, do "direito penal do inimigo" -, culmina por infringir os princípios liberais consagrados pela ordem democrática na qual se estrutura o Estado de Direito, expondo, com esse comportamento (em tudo colidente com os parâmetros delineados na Súmula 719/STF), uma visão autoritária e nulificadora do regime das liberdades públicas em nosso País. Precedentes. (STF - HC 85531 / SP) (destaquei)
É preciso, urgentemente, uma educação em Direitos Humanos, não apenas universitária, mas também direcionada aos operadores do direito e a sociedade, a fim de combater o direito penal simbólico, o direito penal do inimigo, e, especialmente, para que o discurso do “mal necessário” seja abolido e substituído pelo reconhecimento dos Direitos Humanos como um bem necessário a todos.
A preocupação com a dignidade humana ganhou o cenário internacional após os horrores cometidos durante a Segunda Guerra Mundial, de modo que favoreceu a celebração de vários tratados e declarações internacionais de Direitos Humanos.
Entretanto, o RDD ofende vários destes tratados, que consagram a dignidade humana, conforme as razões expostas no item acima, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, os Pactos de Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana de Direitos Humanos, entre outros.
Merece destaque a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e a Convenção Interamericana contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, tendo em vista que “o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, assentou entendimento segundo o qual o confinamento solitário, especialmente se o preso restar incomunicável, pode acarretar atos proibidos pelo artigo 7º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos”[15].
Por fim, ressalte-se as Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, que é expressa quanto a impossibilidade de punição desumana e/ou cruel por falta disciplinar e a imprescindibilidade de um acompanhamento médico para a pena de isolamento, o que denota a gravidade da medida, que coloca em risco a saúde mental do preso.
31. Serão absolutamente proibidos como punições por faltas disciplinares os castigos corporais, a detenção em cela escura e todas as penas cruéis, desumanas ou degradantes.
32. a. As penas de isolamento e de redução de alimentação não deverão nunca ser aplicadas, a menos que o médico tenha examinado o preso e certificado por escrito que ele está apto para as suportar.
b. O mesmo se aplicará a qualquer outra punição que possa ser prejudicial à saúde física ou mental de um preso. Em nenhum caso deverá tal punição contrariar ou divergir do princípio estabelecido na regra 31.
Ademais, em outubro do ano de 2011, o Relator Especial das Nações Unidas para Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, Juan E. Méndez citou o Brasil no relatório como um país em que o regime disciplinar em celas individuais pode ultrapassar os 360 dias, afirmando: “Segregação, isolamento, solitária […] qualquer que seja o nome, o confinamento solitário deve ser banido pelos Estados como técnica de punição ou intimidação”[16].
O relatório da ONU ainda assevera[17]:
O confinamento solitário é uma medida dura contrária à reabilitação, objetivo do sistema penitenciário. Com base em estudos científicos, o relator defendeu que a segregação indefinida ou por tempo superior a 50 dias deve ser submetida a total proibição. Estudo citados por ele durante a apresentação da versão provisória do relatório sobre o tema à Assembleia Geral revelam que bastam alguns dias de isolamento social para que sejam causados danos mentais duradouros. Ele também defende a proibição do uso desse recurso na prisão preventiva, no encarceramento de jovens ou pessoas com problemas mentais.
Deste modo, resta claro a incompatibilidade do RDD com a dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, com o Estado Democrático de Direito.
3. Análise jurisprudencial
3.1 Na visão do STF
A aplicação do RDD requer a necessidade prévia de procedimento administrativo contraditório, com possibilidade de manifestação e instrução por parte do Ministério Público e da Defesa. O procedimento tem seu tramite previsto nos artigos 59 a 75 do decreto 6049/07.
O STF já se manifestou pela indispensabilidade do procedimento administrativo prévio para aplicação do RDD.
EMENTA: AÇÃO PENAL. Condenação. Execução. Prisão. Regime disciplinar diferenciado. Sanção disciplinar. Imposição. Repercussão no alcance dos benefícios de execução penal. Indispensabilidade de procedimento administrativo prévio. Não instauração. Violação ao devido processo legal. Ordem concedida de ofício para que a sanção já cumprida não produza efeitos na apreciação de benefícios na execução penal. O regime disciplinar diferenciado é sanção disciplinar, e sua aplicação depende de prévia instauração de procedimento administrativo para apuração dos fatos imputados ao custodiado. (STF – HC 96328 / SP, Julgamento: 02/03/2010). (negritei)
Porém, a transferência de estabelecimento prisional prescinde de audiência com Ministério Público e Defesa, conforme decisão do STF:
EMENTA: 1. PRISÃO PREVENTIVA. Cumprimento. Definição do local. Transferência determinada para estabelecimento mais curial. Competência do juízo da causa. Aplicação de Regime Disciplinar Diferenciado– RDD. Audiência prévia do Ministério Público e da defesa. Desnecessidade. Ilegalidade não caracterizada. Inteligência da Res. nº 557 do Conselho da Justiça Federal e do art. 86, § 3º, da LEP. É da competência do juízo da causa penal definir o estabelecimento penitenciário mais curial ao cumprimento de prisão preventiva. 2. PRISÃO ESPECIAL. Advogado. Prisão preventiva. Cumprimento. Estabelecimento com cela individual, higiene regular e condições de impedir contato com presos comuns. Suficiência. Falta, ademais, de contestação do paciente. Interpretação do art. 7º, V, da Lei nº 8.906/94 – Estatuto da Advocacia, à luz do princípio da igualdade. Constrangimento ilegal não caracterizado. HC denegado. Precedentes. Atende à prerrogativa profissional do advogado ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, em cela individual, dotada de condições regulares de higiene, com instalações sanitárias satisfatórias, sem possibilidade de contato com presos comuns. (STF – HC 93391 / RJ – Julgamento: 15/04/2008) (negritei)
3.2 Na visão do STJ
Há vários julgados no STJ acerca da extemporaneidade da aplicação do RDD, ou seja, quando decorre tempo excessivo entre o fato ensejador do RDD e sua aplicação efetiva, de modo que o decurso temporal descaracteriza a finalidade do regime diferenciado.
Neste sentido, julgou o STJ:
EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS. (1) REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO. REQUERIMENTO E IMPLEMENTAÇÃO. EXTEMPORANEIDADE. FINALIDADE DO INSTITUTO. DESCARACTERIZAÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. (2) ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
1. In casu, vislumbra-se o alegado constrangimento ilegal, uma vez que a circunstância de a inclusão do paciente no RDD ter sido requerida mais de 11 (onze) meses depois da fuga (3/2/2013), e implementada quase dois anos após, descaracteriza a finalidade do instituto.
2. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para determinar o arquivamento do requerimento de inclusão do paciente no regime disciplinar diferenciado. (STJ – HC 301707 / RJ, julgado em: 17/03/2015). (negritei)
Também é possível constatar, na jurisprudência do STJ, a vagueza dos conceitos indeterminados e a manipulação de expressões abertas e genéricas para se fundamentar a prorrogação da permanência do RDD, o que deriva da própria caracterização genérica do instituto, conforme apontado acima. Vale conferir:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. EXECUÇÃO DA PENA. REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO. PRORROGAÇÃO DA PERMANÊNCIA EM PRESÍDIO FEDERAL. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. GARANTIA DA SEGURANÇA PÚBLICA.
1. Muito embora a Lei de Execução Penal assegure ao preso o direito de cumprir sua reprimenda em local que lhe permita contato com seus familiares e amigos, tal garantia não é absoluta, podendo o Juízo das Execuções, de maneira fundamentada, indeferir o pleito se constatar ausência de condições para o novo acolhimento.
2. Na hipótese dos autos, a prorrogação da permanência do condenado em regime disciplinar diferenciado foi justificada por sua alta periculosidade e influência em organizações criminosas, motivos suficientes para justificar a medida excepcional e descaracterizar o constrangimento ilegal aduzido.
4. Recurso a que se nega provimento. (STJ – RHC 44417/MS, julgado em: 25/02/2014)
Contudo esta situação deve ser melhor analisada, pois se a pessoa já está no RDD e sua prorrogação é definida com base na “alta periculosidade” e “influência em organizações criminosas”, indaga-se durante este período em que o preso ficou no RDD como se aferiu a alta periculosidade e como ele continuou influenciando a organização criminosa dentro do RDD. Então porque prorrogar, se ele continua chefiando o crime organizado de dentro do RDD? Há algo errado: no RDD ou na fundamentação de sua prorrogação, e isto decorre dos termos atécnicos que definem as hipóteses do regime disciplinar diferenciado.
Vale mencionar um interessante julgado do STJ que adverte para os riscos da linguagem genérica do RDD, o que facilita a violação da liberdade individual.
Habeas corpus substitutivo de recurso especial. Não-cabimento. Ressalva do entendimento pessoal da relatora. Execução penal. Regime disciplinar diferenciado. Alegação de desproporcionalidade da medida. Inexistência. Requisitos legais preenchidos. Paciente que possui posição privilegiada na hierarquia da organização criminosa conhecida como “PCC”. Ordem de habeas corpus não conhecida.
1. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal e ambas as Turmas desta Corte, após evolução jurisprudencial, passaram a não mais admitir a impetração de habeas corpus em substituição ao recurso ordinário, nas hipóteses em que esse último é cabível, em razão da competência do Pretório Excelso e deste Superior Tribunal tratar-se de matéria de direito estrito, prevista taxativamente na Constituição da República.
2. Esse entendimento tem sido adotado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, com a ressalva da posição pessoal desta Relatora, também nos casos de utilização do habeas corpus em substituição ao recurso especial, sem prejuízo de, eventualmente, se for o caso, deferir-se a ordem de ofício, em caso de flagrante ilegalidade.
3. O art. 52 da Lei de Execuções Penais prevê o cabimento do Regime Disciplinar Diferenciado em três situações distintas. Ao contrário do caráter repressivo da primeira hipótese (caput), o “alto risco” e as “fundadas suspeitas” a que fazem referência os parágrafos 1.º e 2.º do art. 52 ilustram a preocupação do legislador em prevenir condutas que, porventura, possam acarretar em subversão da ordem ou disciplina internas.
4. A indeterminação da linguagem utilizada nesses casos, agregada ao considerável grau de intervenção na liberdade individual ínsito à aplicação do instituto, são fatores que, à luz do postulado da proporcionalidade e do dever constitucional de fundamentação, obrigam maior prudência e cautela por parte dos magistrados, para que decisões flagrantemente ilegais, baseadas mais em seus anseios pessoais de justiça do que na intencionalidade normativa do direito, não sejam proferidas. Por outro lado, não é qualquer suspeita de participação em grupos criminosos que conduz à conclusão inarredável, como se automática fosse, de que há ameaça à subversão da ordem ou à disciplina interna, devendo o magistrado fundamentar a decisão com base em dados concretos presentes nos autos. Mas o fato é que a lei, em nenhum momento, estabelece como requisito, nessas duas últimas hipóteses, qualquer demonstração de atos previamente praticados pelo apenado no estabelecimento criminal. Por conseguinte, qualquer interpretação que porventura condicione, também nas hipóteses em apreço, a aplicação da medida a atos pretéritos de indisciplina recairá em notória argumentação contra legem.
5. No particular, a inserção do Paciente em Regime Disciplinar Diferenciado restou devidamente fundamentada, já que o próprio se declarou membro da organização criminosa conhecida como Primeiro Comando da Capital (PCC), tendo sido encontrada em seu poder, ainda, uma cartilha contendo instruções do grupo. Mais do que isso, a Corte de origem salientou que o Paciente é o encarregado de exercer a função de “disciplina” no pavilhão, posição hierárquica importante que lhe concede a tarefa de impor e cobrar dos demais integrantes as incumbências criminosas atribuídas, e que lhe possibilita ter informações privilegiadas sobre todas as ações praticadas na região, presídio, pavilhão ou raio subordinado, tudo isso a desvendar o preenchimento do requisito previsto no art. 52, §2.º da Lei n.º 7.210/1984, não havendo se falar em desproporcionalidade da medida.
6. Ordem de habeas corpus não conhecida. (STJ – HC 265937 / SP, julgamento em: 11/02/2014) (negritei)
A atecnia da lei aliada a exegese desvinculada dos direitos fundamentais e dos Direitos Humanos dos operadores do direito e a concepção - de mundo e sociedade - massificada e estereotipada que também impregna a estrutura do Judiciário coloca em risco os direitos fundamentais e humanos dos excluídos, marginalizados e oprimidos, fragmentando a democracia e a solidariedade.
4. Pontos Controvertidos
Embora conte com mais de dez anos de aplicação, ainda há muitas questões não resolvidas, que causam celeuma doutrinária e jurisprudencial, visto que ainda não foram decididas pelos tribunais superiores.
4.1 Progressão de regime no RDD
A matéria é divergente, não havendo consenso sobre a possibilidade ou não de se progredir no RDD, sendo que a lei foi omissa neste ponto.
Inadmitindo a possibilidade de progressão no RDD, há os argumentos de Norberto Avena[18]:
Embora não haja proibição legal expressa à progressão de regime durante o período de cumprimento do RDD, não vislumbramos a possibilidade de considerar preenchido o requisito subjetivo da progressão pelo condenado sujeito às restrições desse regime. Isso porque as situações previstas no art. 52, caput e §§ 1º e 2º, da LEP, sugerem periculosidade, desajuste carcerário e inadequação à terapêutica penal aplicada, revelando que o apenado está longe de alcançar a reintegração social que se espera com o cumprimento da pena privativa de liberdade.
Em sentido contrário, Renato Marcão destaca[19]:
Não há vedação expressa à progressão de regime prisional durante o tempo de cumprimento da sanção disciplinar denominada regime disciplinar diferenciado (RDD). Não é possível alcançar tal vedação por qualquer forma de interpretação, notadamente a ampliativa, já que a conclusão seria sempre em prejuízo do preso, e bem por isso não autorizada.
Seria ilógico admitir que em razão do crime pelo qual foi condenado o preso poderia obter progressão, mas que em razão de ter sido submetido a regime disciplinar diferenciado num determinado tempo, estaria proibida a progressão de regime por todo o período de duração da sanção disciplinar.
É de se admitir, portanto, a possibilidade de progressão de regime prisional estando o preso submetido a regime disciplinar diferenciado, devendo cada caso ser apreciado com especial atenção, ficando afastada, portanto, a genérica e superficial conclusão no sentido da impossibilidade do benefício por incompatibilidade.
Realmente, a Lei de Execução Penal não proíbe a progressão de regime para o preso no RDD, de modo que seguindo os princípios penais em favor do réu e mesmo pela lógica jurídica é de se concluir que o que não está proibido está permitido.
Contudo, o preenchimento do requisito subjetivo da progressão deve ser avaliado com cautela, e ser decidido no caso concreto, e não com uma solução a priori de se proibir a progressão em todos os casos, o que seria prejudicial ao réu.
Como bem coloca, Renato Marcão a lei deveria ter estabelecido um prazo para o efeito da aplicação da sanção disciplinar[20], pois o preso que cumpre o RDD não pode ser impedido de progredir por todo o resto de cumprimento de sua condenação, pois seria criação de norma, pelo juízo, em prejuízo ao condenado, o que contraria o art. 54 do decreto 6049/07, que determina que a sujeição do preso, provisório ou condenado, ao regime disciplinar diferenciado será feita em estrita observância às disposições legais.
4.2 Trabalho para o preso em RDD
Discute-se sobre a possibilidade de o preso em RDD trabalhar. Há julgados que negam tal direito sob a alegação de que a lei não trouxe tal possibilidade, o que não é correto, pois a LEP trata do trabalho do preso nos artigos 28 a 37, no art. 39 inciso V (como dever do preso) e no art. 41, inciso II (como direito).
Ademais, em momento algum a LEP excepciona o trabalho ao preso em RDD, sendo que no decreto 6049/07 há regras expressas sobre o trabalho do preso em RDD, o qual poderá trabalhar internamente e sem contato com os demais detentos, nos termos do art. 98, §2º do decreto 6049/07. Vale conferir:
Art. 98. Todo preso, salvo as exceções legais, deverá submeter-se ao trabalho, respeitadas suas condições individuais, habilidades e restrições de ordem de segurança e disciplina.
§ 1o Será obrigatória a implantação de rotinas de trabalho aos presos em regime disciplinar diferenciado, desde que não comprometa a ordem e a disciplina do estabelecimento penal federal.
§ 2o O trabalho aos presos em regime disciplinar diferenciado terá caráter remuneratório e laborterápico, sendo desenvolvido na própria cela ou em local adequado, desde que não haja contato com outros presos.
§ 3o O desenvolvimento do trabalho não poderá comprometer os procedimentos de revista e vigilância, nem prejudicar o quadro funcional com escolta ou vigilância adicional.
Vale destacar, que o STF já decidiu pela impossibilidade de remição ficta, isto é, aquela conferida ao preso, mesmo sem o cumprimento efetivo do trabalho ou estudo, por culpa do Estado.
Neste sentido, o STF julgou:
EMENTA Recurso ordinário constitucional. Habeas corpus. Execução Penal. Remição. Inexistência de meios, no estabelecimento prisional, para o desempenho de atividades laborais ou pedagógicas. Pretendido cômputo fictício de potenciais dias de trabalho ou estudo. Inadmissibilidade. Necessidade do efetivo exercício dessas atividades. Preso, ademais, sob regime disciplinar diferenciado (RDD). Inexistência de previsão legal para que deixe a cela para executar trabalho interno. Recurso não provido. 1. O direito à remição pressupõe o efetivo exercício de atividades laborais ou estudantis por parte do preso, o qual deve comprovar, de modo inequívoco, seu real envolvimento no processo ressocializador, razão por que não existe a denominada remição ficta ou virtual. 2. Por falta de previsão legal, não há direito subjetivo ao crédito de potenciais dias de trabalho ou estudo em razão da inexistência de meios para o desempenho de atividades laborativas ou pedagógicas no estabelecimento prisional. 3. O Regime Disciplinar Diferenciado impõe ao preso tratamento penitenciário peculiar, mais severo e distinto daquele reservado aos demais detentos, estabelecendo que o preso somente poderá sair da cela individual, diariamente, por duas horas, para banho de sol. 4. Não há previsão, na Lei de Execução Penal, para que o preso, no regime disciplinar diferenciado, deixe a cela para executar trabalho interno, o que também se erige em óbice ao pretendido reconhecimento do direito à remição ficta. 5. Recurso não provido. (RHC 124775 / RO, julgado em: 11/11/2014) (negritei)
Destarte, não há razão para se negar o direito e dever de trabalho ao preso em RDD, muito pelo contrário, se o preso do RDD é um preso mais “perigoso”, com mais razão se deve atribuir trabalho e não lhe deixar ocioso.
Conclusões
O RDD, em suma, é um gravame, aplicado no âmbito da execução penal como forma de punir os membros de crime organizado e as faltas graves que acarretem subversão da ordem, consistente no uso da solitária, por um prazo até, ou mais, de 360 dias.
A medida conta com uma série de violações a regramentos internacionais e nacionais, especialmente, aos princípios e garantias penais previstos na Constituição, tanto de ordem material como processual. Contudo, embora tais violações sejam óbvias, não têm o reconhecimento doutrinário e jurisprudencial, assim, se faz necessário investigar a razão da opção pelo não reconhecimento da inconstitucionalidade.
Este apego ao RDD é fruto de uma cultura jurídica massificada, desprovida de base científica, com viés autoritário e com uma concepção pobre e distorcida de mundo, reduzida ao raciocínio binário - bem x mal - visualiza no outro um mal a ser combatido e não um ser semelhante, de forma que não se solidariza com as agruras daqueles que a propaganda midiática escolhe como inimigos.
Este descaso com os encarcerados é justificado por que eles são vistos como o “bode expiatório” dos problemas da sociedade e por isto merecem ser duramente punidos, conforme a crença binária simplista produzida e disseminada pela mídia.
É urgente a criação de uma cultura jurídica fundada nos direitos fundamentais e nos Direitos Humanos, apta a romper o raciocínio binário (bem x mal) dos operadores do direito, para findar com visões estereotipadas e preconceituosas, a fim de permitir o desenvolvimento do pensamento complexo para que a criminalidade seja entendida como um fenômeno complexo que requer atuação conjunta das várias esferas de poder para o combate efetivo, direcionado as causas e não aos efeitos.
É óbvio que o crime organizado precisa ser contido, porém, a restrição generalizada de direitos fundamentais não é a via adequada, até porque, raramente estas restrições alcançam os chefes do crime, tendo em vista que elas recaem sobre os elos mais fracos da cadeia criminosa.
Destarte, enquanto for possível o uso do RDD como um mal necessário, estará aberta a porta para o reconhecimento dos Direitos Humanos como um bem desnecessário, guiando a sociedade para o caminho da barbárie, da vingança, do preconceito e do ódio social.
Referências Bibliográficas
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AVENA, Norberto. Execução penal esquematizado. São Paulo: Forense, 2014.
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MARCÃO, Renato. Progressão de regime prisional estando o preso sob regime disciplinar diferenciado (RDD). Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 590, 18 fev. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6323>. Acesso em: 21 jun. 2015.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 5. ed. São Paulo: RT, 2010.
SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORREA JÚNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 8. ed. São Paulo: RT, 2009.
[1] FREIRE, Christiane Russomano. A violência do sistema penitenciário brasileiro contemporâneo: o caso RDD (regime disciplinar diferenciado). São Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 146.
[2] FREIRE, Christiane Russomano. A violência do sistema penitenciário brasileiro contemporâneo: o caso RDD (regime disciplinar diferenciado). São Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 158.
[3] SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORREA JÚNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002, p. 84.
[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: RT, 1993, p. 81.
[5] Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/cnpcp/main.asp?View={923C6532-A970-4208-8BE0-3B1E9F482B3F}>. Acesso em: 30 nov. 2011.
[6] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 8. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 107.
[7] Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/cnpcp/main.asp?View={923C6532-A970-4208-8BE0-3B1E9F482B3F}> . Acesso em: 30 nov. 2011.
[8] Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/cnpcp/main.asp?View={923C6532-A970-4208-8BE0-3B1E9F482B3F}>. Acesso em: 30 nov. 2011.
[9] SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORREA JÚNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002, p. 87.
[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 5. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 498.
[11] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 104.
[12] ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 11.
[13] ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 73-74.
[14] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 8. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 318.
[15] Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/cnpcp/main.asp?View={923C6532-A970-4208-8BE0-3B1E9F482B3F}> . Acesso em: 30 nov. 2011.
[16] Disponível em: http://www.onu.org.br/citando-o-brasil-relator-especial-da-onu-pede-fim-de-confinamento-solitario-nos-sistemas-prisionais/#_=1322185218078&count=horizontal&id=twitter_tweet_button_0&lang=en&original_referer=http%3A%2F%2Fwww.onu.org.br%2Fcitando-o-brasil-relator-especial-da-onu-pede-fim-de-confinamento-solitario-nos-sistemas-prisionais%2F&text=Citando%20o%20Brasil%2C%20Relator%20Especial%20da%20ONU%20pede%20fim%20de%20confinamento%20solit%C3%A1rio%20nos%20sistemas%20prisionais%20%7C%20ONU%20Brasil&url=http%3A%2F%2Fwww.onu.org.br%2Fcitando-o-brasil-relator-especial-da-onu-pede-fim-de-confinamento-solitario-nos-sistemas-prisionais%2F&via=onubrasil. Acesso em: 18 out. 2011.
[17] Disponível em: http://www.onu.org.br/citando-o-brasil-relator-especial-da-onu-pede-fim-de-confinamento-solitario-nos-sistemas-prisionais/#_=1322185218078&count=horizontal&id=twitter_tweet_button_0&lang=en&original_referer=http%3A%2F%2Fwww.onu.org.br%2Fcitando-o-brasil-relator-especial-da-onu-pede-fim-de-confinamento-solitario-nos-sistemas-prisionais%2F&text=Citando%20o%20Brasil%2C%20Relator%20Especial%20da%20ONU%20pede%20fim%20de%20confinamento%20solit%C3%A1rio%20nos%20sistemas%20prisionais%20%7C%20ONU%20Brasil&url=http%3A%2F%2Fwww.onu.org.br%2Fcitando-o-brasil-relator-especial-da-onu-pede-fim-de-confinamento-solitario-nos-sistemas-prisionais%2F&via=onubrasil. Acesso em: 18 out. 2011.
[18] AVENA, Norberto. Execução penal esquematizado. São Paulo: Forense, 2014, p. 238.
Advogada e Professora universitária.Bacharela em Direito pela UNESP. Mestra em Direitos Humanos Fundamentais. Bacharela em Filosofia. Especialista em Direito Ambiental. Especialista em Direito Processual Civil. Especialista em Direito Penal. <br><br><br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROSA, Vanessa de Castro. Breves apontamentos sobre RDD: crítica e jurisprudência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jul 2015, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44700/breves-apontamentos-sobre-rdd-critica-e-jurisprudencia. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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