Resumo: Discute o julgamento do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Constitucional Português, visando explicar quais os fatos que fundamentam ambas as causas, e as controvérsias que residem diante dos direitos em confronto. Com base nos estudos, cabe definir se garantir o Direito à Vida é garantir o Direito de escolher continuar ou deixar de viver?
Palavras-chave: Aborto. Anencéfalo. Constitucional. Direito à Vida. Ponderação dos Direitos Fundamentais.
1. INTRODUÇÃO
A anencefalia, ou vulgarmente conhecida como “ausência de cérebro”, de acordo com a literatura médica, é conceituada como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto nasce sem o cérebro e o córtex.
Posto isso, a anomalia importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central, responsável pela consciência, cognição e vida social, restando apenas para outros órgãos, funções secundárias que controla parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e medula espinhal.
Cerca de 50% dos fetos anencéfalos apresenta parada dos batimentos cardíacos fetais antes mesmo do parto, morrendo dentro do útero da gestante, de acordo com dados da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). O diagnóstico pode ser dado com total precisão pelo exame de ultrassom e podendo ser detectado em até o terceiro meses de gestação.
O abrangendo também outros assuntos, tratada na ciência do direito, uma vez que discute os Direitos Fundamentais em conflito, o que desencadeia discussões sobre a possibilidade ou não de aborto, sem que tipifique os crimes previstos pelo Código Penal nos seus artigos 125[1], 126[2] e 128[3]. Temos um confronto entre direitos fundamentais que irão dirimir os debates no Supremo Tribunal Federal, bem como uma comparação com o Tribunal Constitucional Português.
O Tribunal Constitucional Português tratará da questão não só quanto à despenalização da interrupção voluntária, mas também da participação do Estado no fornecimento de informações a serem dadas às mulheres grávidas de fetos anencéfalos, sendo a decisão com base em uma tutela progressiva.
Ademais, também aborda sobre a característica do Direito à Vida, visando determinar se tal direito assume o caráter de absoluto ou não.
2. A ANTECIPAÇÃO VOLUNTÁRIA DO PARTO DE FETOS ANENCÉFALOS. PONDERAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EXISTENTE NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
O tema em questão discutido, no que tange à liberdade individual, assegurou a Constituição da República em seu art. 5º, dentre outros, o Direito Fundamental de não ser submetido à tortura ou a tratamento desumano ou degradante (inciso III), a Liberdade de consciência e crença (inciso VI) e o Direito Fundamental à privacidade e integridade física (inciso X). O Constituinte decidiu, no que diz respeito ao inciso III, portanto, que a mulher tem o direito de não ser torturada nem submetida a tratamento degradante, sendo exemplos quando nos referimos ao caso dos fetos anencéfalos: abrigar, sem desejar, um feto que não possui qualquer viabilidade de vida; ter que passar, sem desejar, pelas delicadas circunstâncias inerentes à gravidez, não somente as possíveis complicações decorrentes da gestação e do parto, mas também o dano psicológico da dor da perda.
Bem como no inciso X, no qual partimos do questionamento de como poderemos garantir esse direito fundamental, quando o Estado obriga a mulher a gerar durante nove meses um feto, que ao fim da gestação, não terá expectativa de vida fora do útero?
No Brasil, uma grande parte da dificuldade em se solucionar a controvérsia, no que tange à constitucionalidade da antecipação voluntária do parto de fetos anencefálicos, reside na compreensão equivocada da controvérsia em si, ou seja, na delimitação dos requisitos necessários da técnica da ponderação dos direitos em conflito.
Inserida na ponderação, é necessário à correta e precisa demarcação do campo normativo dos interesses em conflito (topografia do conflito), sendo fundamental definir se há, de verdade, uma sobreposição de regulação de interesses conflitantes e qual a parcela de vigência para cada um desses interesses. Exige-se que a solução do conflito seja feita através de uma ponderação de interesses, seja quanto a bens, direitos ou valores, visando à concordância prática dos mesmos. A ponderação, como método de solução de conflitos entre princípios, exige a simetria de peso entre os direitos ponderados, partindo do pressuposto de que a própria Constituição não prevê a inexistência de hierarquia normativa, que não poderá o Juiz excluir do âmbito normativo de certo princípio a proteção de determinada conduta. Trata-se de fixar os limites imanentes de cada princípio.
Deste modo, quanto à antecipação do parto de fetos anencefálicos, a Constituição da República fixou uma hierarquia normativa entre os direitos da mãe e os do feto. Tal hierarquia está presente quando não se questiona a antecipação voluntária do parto em outros casos, como na gravidez decorrente de estupro. Afinal, uma vez reconhecida à relevância da vida do feto, sua existência não poderia depender, exclusivamente, da liberdade do ato que a criou, com isso, deixou-se de adotar a doutrina que defende a concepção como o marco inicial da vida.
Como iremos analisar no decorrer do trabalho, a Corte Constitucional Portuguesa deixou claro que a criminalização desfavorece as mães economicamente mais frágeis, que, forçadas pela realidade a fazer o aborto, irão se utilizar dos procedimentos mais indignos, inseguros e arriscados para realizar o aborto, ainda correndo o risco de, acaso sobrevivam, serem penalmente processadas.
Por fim, quando se indaga a descriminalização do aborto, não significa forçar as mães grávidas de fetos anencefálicos a antecipar os respectivos partos, bem como negar a importância moral inerente ao tema ou que o Estado não possa deixar de exigir atestados e exames que comprovem a anencefalia. Significa, antes, permitir às mães que abrigam tais fetos, e que desejem antecipar o parto, a fazê-lo em condições dignas e seguras, permitindo que cada mãe possa ter sua convicção religiosa ou filosófica.
3. O CASO BRASILEIRO: ADPF 54
O tema da anencefalia chegou ao Supremo Tribunal Federal através do ajuizamento, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, em 2004. Na ação, a entidade defende a descriminalização da antecipação terapêutica do parto em caso de gravidez de feto anencéfalo.
De acordo com a legislação penal brasileira, o aborto é conduta criminosa, sendo a vida do ser humano em desenvolvimento o bem jurídico tutelado. As únicas permissões estão previstas nos artigos 124, 125, 126 e 128, todos do Código Penal. Indagava-se se, sendo o feto anencéfalo, seria possível a interrupção da gestação, sem que tal conduta fosse tipificada como aborto, no caso de anencefalia, seria possível se falar em proteção ao direito à vida do feto, uma vez que a anomalia inviabiliza a vida extrauterina do nascituro.
Como lei penal não dispõe expressamente sobre o tema, antes da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF nº 54, o Brasil não possuía uma posição definitiva sobre o assunto, e, para que a gestante pudesse interromper a gravidez, era preciso autorização judicial. Logo, o que se pretende na ação é o reconhecimento do direito da gestante de submeter-se ao citado procedimento sem precisar da apresentar autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão do Estado.
A decisão se deu por 8 votos a favor e 2 votos contra, sendo, assim favorável as grávidas de fetos anencéfalos poderão optar por interromper a gestação com assistência médica, excluindo a possibilidade de criminalização. A decisão tomou como base as seguintes argumentações:
Ministro Marco Aurélio Mello: “Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível. O feto anencéfalo é biologicamente vivo, por ser formado por células vivas, e juridicamente morto, não gozando de proteção estatal. [...] O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa”.
Ministro Luiz Fux: "Apesar de que alguns indivíduos com anencefalia possam viver por minutos, a falta de um cérebro descarta complementarmente qualquer possibilidade de haver consciência”.
Ministra Cármen Lúcia: “Estamos deliberando sobre a possibilidade jurídica de um médico ajudar uma pessoa que esteja grávida de feto anencéfalo de ter a liberdade de seguir o que achar o melhor caminho”.
Ministro Ayres Britto: “O aborto do feto anencéfalo é um direito que tem a mulher de interromper uma gravidez que trai até mesmo a ideia-força que exprime a locução ‘dar à luz’. [...] Levar às últimas consequências esse martírio contra a vontade da mulher corresponde à tortura, a tratamento cruel”.
Ministro Celso de Melo: "Não pode ser taxada de aborto". [...] A interrupção da gravidez em decorrência da anencefalia não satisfaz esses elementos".
Ministro Luís Roberto Barroso: "A interrupção nesses casos não é aborto. O feto anencefálico não terá vida extrauterina. De aborto não se trata".
Ministra Rosa Weber: “ o Feto anencefálico jamais terá condições de desenvolver uma vida com a capacidade psíquica, física e afetiva inata ao ser humano. O que está em jogo, é o direito da mãe de escolher se ela quer levar adiante uma gestação cujo fruto nascerá”.
Ministro Joaquim Barbosa: “a antecipação do parto, em nome da saúde física e psíquica da mulher não se contrapõe ao princípio da dignidade da pessoa humana. Deve prevalecer à dignidade da mulher”.
Ministro Ricardo Lewandowski: “Uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos anencéfalos, ao arrepio da legislação existente, além de discutível do ponto de vista científico, abriria as portas para a interrupção de gestações de inúmeros embriões que sofrem ou viriam sofrer outras doenças genéticas ou adquiridas que de algum modo levariam ao encurtamento de sua vida intra ou extrauterina".
Ministro Cesar Peluso: "Ao feto, reduzido no fim das contas à condição de lixo ou de outra coisa imprestável e incômoda, não é dispensada de nenhum ângulo a menor consideração ética ou jurídica nem reconhecido grau algum da dignidade jurídica. Essa forma de discriminação em nada difere, a meu ver, do racismo e do sexismo e do chamado especismo”.
4. CASO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL PORTUGUÊS
O contexto de Portugal antes dos referendos foi repleto de reinvindicações. A primeira reivindicação ao direito ao aborto livre e gratuito surgiu em 1974; em 1979, surgiu a Campanha Nacional pelo Aborto e Contracepção (CNAC);em 1980, na agenda política nacional, inicia-se com o tema do aborto e dos direitos das mulheres.
A principal argumentação para a despenalização do aborto era de natureza econômica, visando salientar desigualdades existentes entre diferentes classes sociais no que diz respeito ao recurso ao aborto. A Igreja Católica respondeu dizendo que o aborto não era a solução e propondo a criação de melhores condições para a população mais carenciada e mais apoio às famílias.
Foram feitos projetos de lei buscando alterações no código penal português, em relação ao aborto, não apenas visando a despenalização da intervenção voluntária da gestação, por opção da mãe, nas primeiras semanas, bem como para alterar a quantidade de semanas nos outros casos de aborto, permitidos pelo código, como o aborto eugênico, aborto sentimental ou quando indicado para resguardar a saúde da mãe.
Após várias reinvindicações pró IVG (intervenção voluntária da gravidez), foi levado ao Tribunal Constitucional Português a proposta de um referendo, já aprovado pela Assembleia da República, para que o Tribunal deliberasse acerca da constitucionalidade do referendo.
Houveram alguns pontos de discussão polêmicos sobre a constitucionalidade do referendo e sobre a maneira que ele deveria ser realizado, uma vez que havia uma lei nova que acabara de entrar em vigor. Entretanto ficou decidido que a lei anterior regulamentaria a legitimidade, a competência e o cumprimento do referendo, enquanto que a lei nova averiguaria a conformidade da pergunta formulada com os critérios correspondentes.
Destarte, o Tribunal decidiu pela constitucionalidade do referendo e, em 1998, foi feito o primeiro referendo de Portugal. Neste referendo tínhamos em conflito o direito à vida intrauterina e a autodeterminação da mulher. Quem era contrário a despenalização, tinha como argumento que a vida era absoluta. Quem era a favor utilizou como argumentação os casos concretos que os seres humanos, as mulheres, corriam riscos com o aborto clandestino. Neste referendo os contrários venceram, com uma diferença mínima.
Algum tempo depois, foram surgindo campanhas como Borndiepcom objetivo de relançar definitivamente o tema da legalização do aborto na opinião pública, alertando a necessidade de mudar a lei. Dentre os vários efeitos dessa campanha, houve a criação da associação Médicos Pela Escolha – que foi decisivo para a quebra do aparente unanimismo existente na classe médica -, ou seja, teve a participação de médicos que concordavam com a despenalização e, ainda, teve grande participação dos jovens, contrariando a abstenção que havia caracterizado a consulta popular em 1998.
Outro efeito interessante foram as pesquisas de campo feita por estações de televisão e rádio, para saber se as pessoas estavam de acordo com a decisão do Governo de vedar a entrada do Borndiep em Portugal, e a maioria disse que não. No mesmo sentido, uma pesquisa telefônica demonstrou que as pessoas eram a favor de um novo referendo e que uma grande parte defendia a despenalização do aborto.
Logo após o Borndiep partir de Portugal, surgiu a noticia de que uma jovem de 21 anos, acusada de ter provocado uma interrupção voluntaria da gravidez com Misoprostol, quando tinha 17 anos, seria julgada num tribunal em Lisboa. Os processos e julgamento por aborto sucediam-se e o mal-estar de suas consequências também.
A aplicação de uma lei que durante anos não tinha passado do papel, tendo em média 18 mil abortos clandestinos por ano em Portugal. E também de que essas medidas coercitivas eram excessivas e inadequadas. Os contrários à despenalização passaram a propor sanções alternativas aos julgamentos e penas de prisão.
Apesar das argumentações terem convergido sobre: o aborto clandestino enquanto problema de saúde pública, a ineficácia da lei e a desumanidade dos julgamentos que dela decorriam, o respeito pelas escolhas de consciência e sobre Portugal como um dos últimos redutos europeus a criminalizar o aborto e a levar as mulheres a tribunal. O principal objetivo deles era que não se poderia perder um voto, no sentido de que todos deveriam se manifestar, pois o referendo não é obrigatório e participa quem quer, e em 1998, parte considerável da população não participou.
Era cada vez mais perceptível que a sociedade portuguesa era a favor da alteração da lei. Houve várias ações de quem era contrário à mudança da lei, dentre elas, na Conferencia Episcopal Portuguesa foi promovida uma reunião para mobilizar os bispos e sacerdotes na defesa do “não”, alguns padres diziam que iam excomungar os fiéis que votassem a favor da mudança na lei.
Face à campanha desenvolvida pela Igreja, as argumentações dos favoráveis à mudança esforçaram-se por passar a mensagem de que as convicções religiosas eram convicções pessoais, de que o Estado, sendo laico, não devia impô-las universalmente.
Em suma, podemos afirmar que o contexto em que decorreu a campanha do referendo de 2007 foi substancialmente diferente do de 1998. Os vários julgamentos por aborto tornados públicos a partir de 2001 modificaram manifestamente a percepção de muitas pessoas sobre a lei existente. Destarte, o resultado do referendo foi a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, em até 10 semanas, a escolha da mulher.
5. HÁ DIREITOS EM CONFRONTO NOS CASOS ANALISADOS? O DIREITO À VIDA É ABSOLUTO?
No caso de gestação de feto com anomalia congênita, como a anencefalia, existe de um lado, a mãe, e do outro lado, o feto portador da doença. Uma vez que, como ambos são titulares de Direitos e Garantias Fundamentais consagrados pela Constituição Federal brasileira de 1988, surge o conflito entre seus direitos no momento, em que colide o direito do exercício à vida e da dignidade da pessoa humana, que são direitos que vão nortear e ao mesmo tempo amparar decisões favoráveis ou contrárias à interrupção da gravidez.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, caput, reconhece no Título II dos Direitos e Garantias Fundamentais, a inviolabilidade do direito à vida. À vida é o direito mais fundamental entre todos os direitos e garantias assegurados no nosso texto constitucional, pois ele é pré-requisito para a existência e exercício de todos os demais direitos.
O legislador constituinte simplesmente o garantiu sem traçar qualquer referência, mas delegou a demonstração do exato momento do surgimento da vida humana à doutrina e à jurisprudência, com a utilização dos diversos ramos da ciência.
Existem quatro correntes quanto ao início da vida humana: a) Teoria da fecundação/concepção: defende que o início da vida começa com a concepção; b) Teoria da nidação: defende que o início da vida começa com a implantação do embrião no útero; c) Teoria encefálica: defende que o início da vida começa com o início da atividade cerebral; d) Teoria do Nascimento: defende que o início da vida começa com o nascimento com vida do embrião.
Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) que estabelece em seu art. 4º,I “ Toda pessoa tem direito que se respeite a sua vida. O Código Civil brasileiro no seu art. 2º dispõe que “ A personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Portanto, se adotamos que a vida se inicia com a concepção, o feto anencéfalo é detentor do exercício do direito à vida, ainda que lhe sobrevenha à morte. Maria Helena Diniz que defende que “a vida humana é bem anterior ao direito e que a ordem jurídica deve respeitar”[4].
De acordo com a coordenadora da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Neonatal do Hospital São Francisco, Cinthia Macedo Specian, o feto anencéfalo, ao contrário do que considera o Conselho Federal de Medicina (CFM), não deve ser considerado um natimorto cerebral. “Ele tem um comprometimento severo de um órgão muito importante, mas não posso classificá-lo como um indivíduo que está em morte encefálica. Estudos mostram que todos eles têm respiração espontânea, mais de 50% conseguem mamar, sugar e deglutir o leite”, explicou.
O direito à vida é um direito a uma vida digna, com esteio nos princípios da razoabilidade e proporcionalidade que faz com que se opte por não fazer a mãe correr riscos para preservar um ser que não tem cérebro e, por esta razão, obviamente, é um natimorto cerebral, mas deve ser ressalvado que o feto dentro do ventre materno tem vida, mas existe a inviabilidade dele viver fora do útero da mãe, uma vez que a sua expectativa de vida após o parto pode ser medida em horas ou dia, por causa dos transtornos causados pela anomalia.
No que diz respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, caracteriza-se como uma norma princípio, a fundamentar e possibilitar o exercício de outros Direitos Fundamentais. Tal direito, não é definido expressamente, salvo no art.227, da CF/88, como Direito Fundamental pelo ordenamento jurídico constitucional brasileiro. Mas, pelo menos, pode ser considerado Direito Fundamental Decorrente de Princípio ou do Regime adotado pelo nosso país. Portanto, pode ser exigido o seu reconhecimento e proteção.
A dignidade da pessoa humana figura como fundamento de nossa República, Art. 1º, III, no Título I, que trata dos Princípios Fundamentais de nossa República, destarte o Estado existe em função da pessoa humana, sendo os direitos e garantias fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana como norma anterior e superior ao Estado. Alguns autores sustentam que os Direitos Fundamentais correspondem a explicitações ou pressupostos elementares, em maior ou menor grau, da Dignidade da Pessoa Humana, mas seu elemento nuclear reside na autonomia (ou liberdade), no direito de autodeterminação de cada pessoa e na igualdade. Sendo, ao mesmo tempo, limite de atuação e tarefa do Estado. Engloba o respeito e proteção da integridade física, psíquica e corporal (veda pena de morte, tortura, pesquisas científicas, detector de mentiras, etc); condições justas e adequadas de vida e isonomia de todos os seres humanos (veda escravidão, discriminação racial, etc)
Definição de INGO SARLET:
“Qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.
Existe divergência doutrinária acerca da eficácia normativa de tal princípio supracitado, onde os quais muitos discorrem que tal direito apenas vincularia à medida de prestações que servissem para garantir as condições elementares necessárias à existência humana, que se traduz na própria ideia de mínimo existencial, mas deve se ressaltar que o mínimo existencial é a menor medida aceitável de dignidade da pessoa humana. O mínimo existencial é um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos. Fora disto, o Estado poderia alegar a reserva do possível.
Portanto, acentuando que o feto portador da anencefalia tem a sua vida extrauterina inviável o foco de atenção há de voltar-se para a mãe, pessoa titular de todos os direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Constitucional. Dentre eles, o da dignidade da pessoa humana, lhe dar garantias, tais como o respeito e proteção à sua integridade física, psíquica e corporal, autonomia da vontade e condições justas e necessárias para subsistir.
É mediante a tudo isso que foi exposto, que obrigar a essa mãe a continuar com a gestação é praticamente submete-la a sessões ininterruptas de tortura psicológica. Além do mais, a continuação de tal gravidez pode lhe acarretar inúmeros problemas de saúde, pois o aumento do líquido amniótico na gestação pode ocasionar o polidrâmnio, que gera o descolamento da placenta, aumento da pressão arterial, hemorragia, etc.
O princípio supracitado desde quando consagrado e convalidado na nossa Constituição Federal de 1988 e convenções ou tratados o qual o Brasil é consignatário, exige o reconhecimento da proteção da dignidade da pessoa humana, sendo valor intrínseco a própria espécie humana. É dever do ente estatal prestar toda assistência necessária à mulher e a sua família, quando essa se encontra diante de situações como no caso da gestação de feto com anomalia congênita, devendo-lhe prestar assistência tanto médica como psicológica.
Diante de tudo que foi dito, resulta que não mais precisará se discutir quanto à legalidade do abortamento de anencéfalos se a gestação puder ser enquadrada nas hipóteses literalmente previstas no CP, de inaplicabilidade da pena. Entretanto, em não sendo possível tal enquadramento, restará a necessidade como definir se aquele que pratica do abortamento de fetos com esta característica restará submetido à incidência da norma incriminadora ou poderá, a exemplo dos demais casos, ser beneficiado, tendo sua conduta como permitida.
Na garantia do devido processo legal, defende-se a necessidade de que no pedido de abortamento de gestação de feto anencefálico, haja a nomeação de um curador especial, que responderia em nome dos interesses do feto.
HABEAS CORPUS. ANENCEFALIA. ANTECIPAÇÃO DE PARTO. ABORTO. Pedido indeferido em primeiro grau. Admissão do 'habeas corpus' em função de precedente do STJ. Ausência de previsão legal. Risco de vida para a gestante não demonstrado. Eventual abalo psicológico não se constitui em excludente da criminalidade. ORDEM DENEGADA. POR MAIORIA. (Habeas Corpus Nº 70020596730, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Julgado em 25/07/2007).
O desembargador Ivan Leomar Bruxel faz referência ao art. 2º do CC/2002, no qual a lei resguarda o direito do nascituro. A partir desse dispositivo legal, ele tomou por premissa o fato de que o feto anencéfalo encontra-se vivo, declarando: “na realidade existe vida. Pragmaticamente, talvez ela não tenha valor, mas, repito, existe vida, pois o feto, desconsiderando a anencefalia, se desenvolve”.
Neste contexto o desembargador do caso destaca o art. 9 do Código de Processo Civil (mesmo artigo no novo CPC 2015) diz que o Juiz dará curador Especial ao incapaz quando este não tiver representante legal, ou quando os seus interesses colidirem com os daquele que seria seu representante. Ao avaliar o contexto do pedido de aborto tem-se o fato de que o nascituro não obteve direito de defesa, ferindo o princípio do contraditório, que por sua vez integra o macro princípio do devido processo legal garantido como direito fundamental pela Constituição Brasileira.
Haja vista que existem também possibilidades de que o anencéfalo possa, após o parto, sobreviver por semanas e até meses, e de forma indiscutível neste caso, pode-se afirmar que houve vida, ainda que sua vida seja ‘comprometida’ em função da enfermidade, mas mesmo assim seria uma vida, e deveriam possuir o direito aos procedimentos do devido processo legal. Ao se tratar dos interesses do filho ou ‘’da criança concebida’’, tem-se o art. 1.692 do Código Civil :“ Sempre que no exercício do poder familiar colidir o interesse dos pais com o do filho, a requerimento deste ou do Ministério Público o juiz lhe dará curador especial.” .
6. GARANTIR O DIREITO À VIDA É GARANTIR O DIREITO DE ESCOLHER CONTINUAR OU DEIXAR DE VIVER?
Para Dworkin, os direitos à vida, à dignidade da pessoa humana e liberdade (indisponíveis) manifestam caráter deontológico que formam um peso maior que os bens coletivos ou objetivos políticos. Neste sentido, têm-se que o direito à vida e o direito de escolher continuar ou deixar de viver estão em um mesmo plano, ou seja, respeitam o princípio da unidade. Conforme o autor, a decisão deve partir do caso concreto e, através de processo reconstrutivo, atingir alto grau de abstração de forma revelar o princípio referente ao caso. As regras devem ser interpretadas à luz de princípios, podendo ser afastadas se não atenderem ao princípio referente à situação.
Ao ver de Ronald Dworkin, toda decisão é única, e deve ser analisada de acordo com regras e princípios; portanto, no que concerne ao titular do direito de liberdade e dignidade da pessoa humana, representada pela mãe (em um conflito principiológico / direitos fundamentais: DPH X VIDA) o direito à vida pode ser equivalente ao direito de escolher a manutenção ou “descarte” da vida alheia, sempre levando em conta a santidade da vida humana, isto é, em determinada situação, a exemplo dos fetos anencéfalos, tutelando a liberdade da genitora à prática do aborto, eu garanto a santidade da vida humana para ela e o feto, levando em consideração a ínfima probabilidade de sobrevivência após o nascimento? Se positiva for à resposta, também será à questão acima: “Garantir o direito à vida, é garantir o direito de escolher continuar ou deixar de viver?”.
Logo, se faz necessário saber se a dignidade da pessoa humana e liberdade (liberdade de consciência = santidade da vida humana) legitima ou não o direito de viver ou o direito de morrer.
7. CONCLUSÃO
O trabalho apresentado procurou evidenciar todas as posições acerca do polêmico tema e demonstrar a situação atual em que as gestantes de um feto portador de anencefalia enfrentam em alguns países e o posicionamento dos tribunais.
A vida, como bem jurídico inerente ao ser, é tutelada e resguardada pela Constituição da República e, por conseguinte, por todo o ordenamento jurídico nacional. Um dos pilares do Estado Democrático de Direito brasileiro é a dignidade humana; o princípio em foco está amplamente assegurado pela Magna Carta, mais precisamente no artigo 1º, inciso III. Ao passo que o anencéfalo não possui a possibilidade de manter uma vida extrauterina, impor a uma mulher, nesse caso, a gestação, fere a Dignidade da Pessoa Humana, uma vez que essa gestação compromete a saúde da gestante em suas diversas vertigens.
O grande cerne da questão se encontra no conflito de direitos fundamentais existentes no caso, ou seja, de um lado, o direito à vida do feto portador da anomalia letal, de outro lado, a dignidade humana da gestante, bem como o seu direito à saúde e à dignidade da pessoa humana. Não bastasse o conflito de direitos fundamentais, também recais sobre a discussão, questões de ordem religiosa, onde a Igreja Católica, representante da religião predominante no país, é totalmente contrária à realização da interrupção da gestação, mesmo no caso de feto portador de anencefalia. Ressalte-se, todavia, que o Brasil se caracteriza por ser um Estado laico, ante a determinação contida no artigo 19, inciso I, da Constituição Federal, onde nenhuma decisão jurisdicional deveria pautar-se em convicções religiosas.
Houve a exposição das argumentações favoráveis e contrárias à antecipação terapêutica, termo esse que foi adotado pelo ministro Marco Aurélio para se referir ao aborto dos fetos com anencefalia. Após tudo o que foi demonstrado pelo grupo, chegamos à conclusão que primeiramente antes de adotarmos quaisquer posicionamentos acerca de sermos ou não favoráveis, devemos fazer a distinção entre o que é feto malformado do que é feto inviável.
Quando tratamos de malformação fetal, dependendo da gravidade, elas não provocam a morte do feto ao nascer e mesmo que ainda estejam presentes anomalias congênitas, é possível que o feto malformado sobreviva, porém com certas limitações no que diz respeito a sua qualidade de vida. Em alguns casos, existem tratamentos clínicos ou cirúrgicos que podem mitigar ou até curar os efeitos desta malformação. A fenda lábio-palatina[5]é um exemplo de anomalia fetal compatível com a vida. Porém esta malformação pode ser tão severa ou estar associada a outras anomalias, que tornam o feto inviável, ou seja, o prognóstico morte é certo e irreversível. São casos, por exemplo, em que um ou vários órgãos vitais (tais como o cérebro, bexiga ou rins) não se formaram.
Portanto, nos casos em que o feto é inviável, isto é, em que ele não tem chances de ter vida extrauterina, desde que, o diagnostico dessa inviabilidade seja identificado por profissionais competentes, somos favoráveis ao aborto. Haja vista que, se o feto não tem expectativa de vida, não seria razoável continuar a gestação, pois submeter á mãe seções ininterruptas de tortura, bem como os possíveis riscos à sua saúde.
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida: Aborto, Eutanásia e Liberdades Individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2009. (p. 141 a 249).
- FREITAS, Patrícia Marques. Os fetos anencéfalos e a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Ícone, 2011.
- Parecer Procuradoria Geral da República.
- Decisão Liminar STF ADPF 54.
- Decisão do Tribunal Constitucional Português. Revista Sub Judice. No. 20/21. Jan a Jun 2000. P.175 a 220.
- http://www.idecrim.com.br/index.php/artigos/178-consideracoes-acerca-do-aborto-anencefalico-no-brasil. Acesso em: 01 de Novembro de 2015.
- http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2012-04-10/especialistas-defendem-direito-vida-de-fetos-com-anencefalia. Acesso em: 28 de Setembro de 2015.
http://www.ces.uc.pt/myces/UserFiles/livros/226_Oficina_do_CES_320_Jan2009.pdf . Acessado em 03/11/2015
[1] Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de três a dez anos.
[2]Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.
[3]Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
[4]DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, pag. 32/34.
[5]A fissura labial ou fenda palatina é uma abertura que começa sempre na lateral do lábio superior, dividindo-o em dois segmentos.
Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário do Estado do Pará - CESUPA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MAGALHAES, Fernanda Rodrigues. Caso dos fetos anencéfalo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 nov 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45501/caso-dos-fetos-anencefalo. Acesso em: 22 nov 2024.
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