RESUMO: O presente estudo tem como objetivo introduzir os institutos jurídicos mais importantes do processo coletivo. Assim, discorre sobre os princípios próprios do processo coletivo, sobre as diferentes espécies do direito coletivo lato sensu, bem como sobre as características mais distintivas dessa modalidade de tutela de direitos.
PALAVRAS-CHAVES: Processo Coletivo. Princípios específicos. Espécies de direito coletivo. Legitimidade. Ações pseudocoletivas e pseudoindividuais. Regulamentação.
INTRODUÇÃO
Como verdadeiro instrumento assecuratório de direitos, as ações coletivas são uma realidade nos Tribunais pátrios.
Nos últimos anos, foi alargada a legitimidade ativa para o manejo das ações coletivas e fortalecidas as instituições responsáveis por elas. Desde o advento da Constituição Federal de 1988, vem se fortalecendo não só o Ministério Público, mas também a Defensoria Pública, tornando possível o alargamento da tutela coletiva.
Contudo, ainda se vê um certo desconhecimento acerca das peculiaridades do processo coletivo, muito em decorrência de ainda ser um sistema de tutela de direitos recente. Isso também decorre do fato de serem poucos os legitimados a lançar mão desses instrumentos, fazendo com que o aprofundamento do estudo e pesquisa fique restrito àqueles que efetivamente lidam com a tutela coletiva.
Com a eminência da edição de um Código de Processo Coletivo, consolidando essa realidade, imperioso se faz a todos aqueles que trabalham com Direito conhecer conceitos básicos desse sistema processual.
1. PRINCÍPIOS DO PROCESSO COLETIVO
Os princípios aplicáveis ao processo coletivo podem ser divididos entre aqueles princípios aplicáveis ao direito processual em geral e aqueles princípios peculiares ao processo coletivo.
Dentre os anteprojetos de Código de Processo Coletivo existentes, dois se destacam por relacionar em incisos os princípios aplicáveis ao processo coletivo. São eles o anteprojeto de Código Brasileiro de Processo Coletivo do IBDP e o projeto de lei nº 5.139/09. Segue extrato dos anteprojetos:
(CPCO-IBDP) Art. 2º Princípios da tutela jurisdicional coletiva – São princípios da tutela jurisdicional coletiva:
a. acesso à justiça e à ordem jurídica justa;
b. universalidade da jurisdição;
c. participação pelo processo e no processo;
d. tutela coletiva adequada;
e. boa-fé e cooperação das partes e de seus procuradores;
f. cooperação dos órgãos públicos na produção da prova;
g. economia processual;
h. instrumentalidade das formas;
i. ativismo judicial;
j. flexibilização da técnica processual;
k. dinâmica do ônus da prova;
l. representatividade adequada;
m. intervenção do Ministério Público em casos de relevante interesse social;
n. não taxatividade da ação coletiva;
o. ampla divulgação da demanda e dos atos processuais;
p. indisponibilidade temperada da ação coletiva;
q. continuidade da ação coletiva;
r. obrigatoriedade do cumprimento e da execução da sentença;
s. extensão subjetiva da coisa julgada, coisa julgada secundum eventum litis e secundum probationem;
t. reparação dos danos materiais e morais;
u. aplicação residual do Código de Processo Civil;
v. proporcionalidade e razoabilidade.
(PL nº 5.139/09) Art. 3º O processo civil coletivo rege-se pelos seguintes princípios:
I - amplo acesso à justiça e participação social;
II - duração razoável do processo, com prioridade no seu processamento em todas as instâncias;
III - isonomia, economia processual, flexibilidade procedimental e máxima eficácia;
IV - tutela coletiva adequada, com efetiva precaução, prevenção e reparação dos danos materiais e morais, individuais e coletivos, bem como punição pelo enriquecimento ilícito;
V - motivação específica de todas as decisões judiciais, notadamente quanto aos conceitos indeterminados;
VI - publicidade e divulgação ampla dos atos processuais que interessem à comunidade;
VII - dever de colaboração de todos, inclusive pessoas jurídicas públicas e privadas, na produção das provas, no cumprimento das decisões judiciais e na efetividade da tutela coletiva;
VIII - exigência permanente de boa-fé, lealdade e responsabilidade das partes, dos procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo; e
IX - preferência da execução coletiva.
Dentre os princípios gerais do processo aplicados ao processo coletivo estão o acesso à justiça, a universalização da jurisdição, o contraditório, a boa-fé, a economia processual, a instrumentalidade das formas e dos atos processuais, a flexibilização do processo, a proporcionalidade e a razoabilidade.
Por apresentar peculiaridades, os princípios do devido processo legal coletivo, da aplicação residual do Código de Processo Civil, da representatividade adequada, da atipicidade da ação coletiva, da ampla divulgação da demanda coletiva, da continuidade da demanda coletiva, da obrigatoriedade da execução da sentença coletiva e da extensão subjetiva e transporte da coisa julgada serão analisados detalhadamente.
Por princípio do devido processo legal coletivo entende-se que o processo coletivo possui características tão específicas que é necessário que o princípio do devido processo legal se adeque ao processo coletivo. Assim, o princípio do devido processo legal coletivo seria o princípio matriz, do qual se derivariam diversos outros princípios, tais como o princípio da representatividade adequada, o da ampla divulgação da demanda coletiva e o da extensão subjetiva e transporte da coisa julgada.
As mudanças resultam da necessária adaptação do princípio do devido processo legal a esses novos litígios. Com isso nasce o que se pode chamar de ‘garantismo coletivo’, que paulatinamente deverá consolidar-se na doutrina e na jurisprudência para assegurar mais eficácia e legitimidade social aos processos coletivos e às decisões judiciais nessa matéria. (DIDIER, 2011, p. 113)
O princípio da aplicação residual do Código de Processo Civil é destacado por Donizetti, pois, como o processo coletivo forma um microssistema processual, não tem no Código de Processo Civil uma fonte subsidiária de normas, mas apenas residual.
Pelo princípio da representatividade adequada entende-se que, na medida em que a defesa das coletividades é feita por substitutos processuais em juízo, esta legitimação extraordinária deve ser feita de maneira adequada. Assim, não é permitido prejuízo para as partes em virtude de má atuação no processo. O princípio da representatividade adequada é importado do direito norte-americano, no qual existe o princípio da adequacy of representation.
Didier (2011, p. 114) traz o termo legitimação conglobante para caracterizar o substituto processual com condições adequadas de fazer a defesa dos direitos coletivos.
O princípio da não taxatividade da ação coletiva ou princípio da atipicidade está garantido no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, no art. 83 do Código de Defesa do Consumidor e no art. 21 da Lei da Ação Civil Pública.
Art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Art. 83 do Código de Defesa do Consumidor. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.
Art. 21 da Lei da Ação Civil Pública. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.
Pelas normas do ordenamento jurídico, não haverá lei que exclua lesão ou ameaça a direito da apreciação pelo Poder Judiciário. Assim, pelo princípio da não taxatividade da ação coletiva ou princípio da atipicidade, é garantido que não haverá empecilhos para a propositura de ação coletiva quando da inexistência de procedimentos para a proteção do direito coletivo tutelado.
Didier ressalta a desimportância do nome dado à ação coletiva quando da sua propositura. Para o doutrinador, o importante é a essência da ação e o seu conteúdo. Assim, no caso de haver ação popular, ação civil pública e mandado de segurança coletivo com mesma causa de pedir e objeto, haverá litispendência, conexão ou continência.
O principal: para fins de admissibilidade da demanda o nome é desimportante (DIDER, 2011, p. 128).
O art. 94 do Código de Defesa do Consumidor prevê o princípio da ampla divulgação da demanda coletiva, princípio da notificação adequada ou princípio da informação aos órgãos competentes.
Art. 94 do Código de Defesa do Consumidor. Proposta a ação, será publicado edital no órgão oficial, a fim de que os interessados possam intervir no processo como litisconsortes, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social por parte dos órgãos de defesa do consumidor.
Donizetti (2010, p. 105) destaca as consequências do princípio da ampla divulgação da demanda coletiva, que são: 1) a possibilidade de suspensão dos processos individuais pelos seus autores individuais; 2) a propositura de uma ação coletiva única com o mesmo objeto; 3) a intervenção do amigo da corte (amicus curiae); 4) quando se tratar de direitos individuais homogêneos, o princípio possibilita a execução individual da sentença proferida; 5) o controle da representação adequada do substituto processual.
Assim, o princípio da ampla divulgação da demanda coletiva tem como objetivo a informação da existência da demanda coletiva para que os autores das ações individuais com mesmo objeto tenham a possibilidade de suspendê-las. Tal princípio possibilita também que entidades se organizem com o objetivo de propor ação única e, ainda, que prerrogativas cabíveis às ações civis públicas também se apliquem ao processo coletivo.
Didier (2011, p. 116-117) desdobra o princípio da informação e publicidade adequadas em princípio da adequada notificação dos membros do grupo e princípio da informação aos órgãos competentes. Segundo o autor, o princípio da informação aos órgãos competentes funda-se no dever funcional dos órgãos previstos nos arts. 6º e 7º da Lei da Ação Civil Pública de informar a sociedade e o Ministério Público sobre o objeto da ação civil pública.
Art. 6º da Lei da Ação Civil Pública. Qualquer pessoa poderá e o servidor público deverá provocar a iniciativa do Ministério Público, ministrando-lhe informações sobre fatos que constituam objeto da ação civil e indicando-lhe os elementos de convicção.
Art. 7º da Lei da Ação Civil Pública. Se, no exercício de suas funções, os juízes e tribunais tiverem conhecimento de fatos que possam ensejar a propositura da ação civil, remeterão peças ao Ministério Público para as providências cabíveis.
O princípio da continuidade da demanda coletiva está previsto no art. 5º, §3º, da Lei da Ação Civil Pública, que diz:
Art. 5º, §3º, da Lei da Ação Civil Pública. Em caso de desistência infundada ou abandono da ação por associação legitimada, o Ministério Público ou outro legitimado assumirá a titularidade ativa.
Donizetti (2010, p. 109) ressalta uma consequência importante sobre o fato de dar continuidade a uma ação coletiva que seja manifestamente infundada, pois esta situação poderia até mesmo gerar sanções por litigância de má-fé ao substituto processual.
O princípio da continuidade da demanda coletiva também é chamado de princípio da indisponibilidade da demanda coletiva por Didier. Segundo ele (2011, p. 122), o Ministério Público poderá fazer um juízo de oportunidade e conveniência, com certo grau de discricionariedade, quando da possibilidade de desistir da demanda coletiva.
O princípio da obrigatoriedade da execução da sentença coletiva está previsto no art. 15 da Lei da Ação Civil Pública:
Art. 15 da Lei da Ação Civil Pública. Decorridos sessenta dias do trânsito em julgado da sentença condenatória sem que a associação autora lhe promova a execução, deverá fazê-lo o Ministério Público, facultada igual iniciativa aos demais legitimados.
É necessária fazer uma ressalva sobre a legitimidade da Defensoria Pública e da Advocacia Pública para execução da sentença condenatória coletiva.
Assim, tendo em vista a obrigatoriedade do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Advocacia Pública de executar a sentença condenatória quando a associação autora não o fizer, é necessário ressaltar a importância dos arts. 97 a 100 do CDC que tratam da execução da sentença coletiva dos direitos individuais homogêneos.
Art. 97. A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82.
Art. 98. A execução poderá ser coletiva, sendo promovida pelos legitimados de que trata o art. 82, abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiveram sido fixadas em sentença de liquidação, sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções.
(...)
Art. 100. Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida.
(...)
Conforme arts. 97 a 100 do Código de Defesa do Consumidor, a execução de sentença relativa a direitos individuais homogêneos ocorrerá individualmente ou por meio de representação propriamente dita. De forma excepcional, a execução se dará por meio de substituição processual, ou seja, em benefício do grupo lesado. Essa ultima hipótese é o da recuperação fluida (art. 100).
Assim, conforme Donizetti (2010, p. 110) conclui, a única hipótese de o Ministério Público, a Defensoria Pública ou a Advocacia Pública serem obrigadas a executar a sentença condenatória quando a associação autora não o fizer é no caso do art. 100 do Código de Defesa do Consumidor.
Quanto ao princípio da extensão subjetiva, o transporte da coisa julgada é secundum eventum litis ou in utilibus, ou seja, conforme o resultado da lide e somente se benéfico. Este princípio está previsto no art. 103 do Código de Defesa do Consumidor.
Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada:
(...)
III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.
(...)
§ 3° Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99.
Tal princípio somente é aplicado aos direitos individuais homogêneos, por serem divisíveis, e prevê que o resultado da sentença coletiva será benéfico a todo o grupo homogêneo e ainda será estendido à esfera individual.
2. ESPÉCIES DE DIREITOS COLETIVOS
Os direitos coletivos compõem um gênero do direito, do qual faz parte as seguintes espécies: direitos difusos, direitos coletivos em sentido estrito e direitos individuais homogêneos.
Tal divisão encontra-se normatizada no artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor e é largamente aceita pela doutrina.
Art. 81 do Código de Defesa do Consumidor. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.
Conforme conceituação dada pelo Código de Defesa do Consumidor, no artigo 81, parágrafo único, interesses e direitos difusos são os “transindividuais, de natureza indivisível, de quem sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”. Já os interesses e direitos coletivos são aqueles “transindividuais de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base”. Por fim, os direitos individuais homogêneos são os “decorrentes de origem comum”. Assim, quanto à origem, os direitos coletivos podem ter três procedências: 1) mesma situação de fato (direitos difusos); 2) relação jurídica de base preexistente (direitos coletivos em sentido estrito); e, 3) situações de fato ou de direito comuns (direitos individuais homogêneos).
O doutrinador José Carlos Barbosa Moreira (1984, p. 195-197) classifica os direitos coletivos lato sensu em direitos ou interesses essencialmente coletivos e direitos acidentalmente coletivos. Os primeiros seriam os direitos difusos e os direitos coletivos strictu sensu. Já os direitos acidentalmente coletivos seriam os direitos individuais homogêneos.
De acordo com a conceituação dada pelo Código de Defesa do Consumidor pode-se concluir que, sob o aspecto subjetivo ou de titularidade, tanto os direitos e interesses difusos quanto os coletivos são transindividuais, o que significa que, há indeterminação dos titulares. Entretanto, tal indeterminação é relativa quanto aos direitos e interesses coletivos, pois os titulares estão relacionados por uma relação jurídica de base. Já os direitos e interesses difusos possuem titulares absolutamente indeterminados, pois a ligação entre os titulares é de natureza fática. Quanto aos direitos individuais homogêneos, estes possuem titulares individuais identificáveis. Pode-se dizer, igualmente, que os direitos difusos pertencem a pessoas indeterminadas e indetermináveis, já os direitos coletivos em sentido estrito e os direitos individuais homogêneos pertencem a pessoas indeterminadas, mas determináveis.
Quanto ao objeto dos direitos coletivos em sentido amplo, pode-se afirmar que os direitos e interesses difusos e coletivos em sentido estrito possuem objetos indivisíveis, ou seja, a satisfação ou lesão dos direitos se dá de maneira geral com afetação de todos os titulares. Já os direitos individuais homogêneos possuem objetos divisíveis, o que significa que alguns titulares podem ter seus direitos satisfeitos ou lesados de maneira a não afetar outros titulares.
Quanto à defesa em juízo, pode-se afirmar que os direitos e interesses difusos e coletivos são sempre defendidos na forma da substituição processual ou legitimação extraordinária, enquanto os direitos individuais homogêneos são, normalmente, apresentados em juízo por seu próprio titular.
Em relação a outras características relativas à natureza dos direitos e interesses coletivos e individuais homogêneos, pode-se afirmar que os direitos coletivos em sentido amplo são insuscetíveis de apropriação individual, são intransmissíveis por ato inter vivos ou mortis causa, são irrenunciáveis e, por fim, insuscetíveis de transação. Já os direitos individuais homogêneos são individuais e divisíveis e compõem o patrimônio individual do titular, são transmissíveis por ato inter vivos ou mortis causa, são renunciáveis e passíveis de transação.
A classificação tripartida dos direitos coletivos, apesar de ser pacífica na doutrina, é questionada pelo jurista Teori Albino Zavascki. Para o renomado ministro do Superior Tribunal de Justiça, os direitos individuais homogêneos não são direitos coletivos, mas direitos individuais coletivamente tratados.
Para ele, há uma grande confusão feita por juristas sobre a nomenclatura e diferentes institutos de direitos coletivos e direitos homogêneos – ou defesa de direitos coletivos – e defesa coletiva de direitos individuais. Segundo o doutrinador, direitos coletivos ou transindividuais é o gênero, do qual são espécies somente os direitos difusos e os direitos coletivos em sentido estrito.
Zavascki ressalta, ainda, a importância de diferenciar a impossibilidade prática de identificar os titulares dos direitos subjetivos homogêneos da inexistência de titular individual ou indivisibilidade do próprio direito. Tendo em vista a característica essencial dos direitos coletivos de serem indivisíveis e de não possuírem titulares individuais determinados, é comum a confusão com a difícil determinação de todos os titulares dos direitos individuais homogêneos.
A visão minoritária de Zavascki, entretanto, reflete-se na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[1] e do Supremo Tribunal Federal[2], uma vez que estes tribunais consideram os direitos individuais homogêneos como subespécies dos direitos coletivos.
O moderno jurista Didier rebate a tese de Zavascki ao ressaltar a exclusão que os direitos individuais homogêneos sofreriam com o seu afastamento dos direitos coletivos, já que aqueles não seriam cobertos pelos princípios gerais da tutela coletiva, tais como o da coisa julgada diferenciada e o da certificação da ação coletiva.
3. CARACTERÍSTICAS DO PROCESSO COLETIVO
Existem alguns elementos do processo coletivo que possibilitam sua diferenciação do processo individual. Em geral, a doutrina ressalta o seu objeto, a legitimidade para agir e a coisa julgada.
Tendo em vista tais elementos, Didier conceitua o processo coletivo como:
Processo coletivo é aquele instaurado por um em face de um legitimado autônomo, em que se postula um direito coletivo lato sensu ou se afirma a existência de uma situação jurídica coletiva passiva, com o fito de obter um provimento jurisdicional que atingirá uma coletividade, um grupo ou um determinado número de pessoas.
Ação coletiva é, pois, a demanda que dá origem a um processo coletivo, pela qual se afirma a existência de uma situação jurídica coletiva ativa ou passiva. Tutela jurisdicional coletiva é a proteção que se confere a uma situação jurídica coletiva ativa (direitos coletivos lato sensu) ou a efetivação de situações jurídicas (individuais ou coletivas) em face de uma coletividade, que seja titular de uma situação jurídica coletiva passiva (deveres ou estados de sujeição coletivos). (DIDIER, 2010, p. 44)
Assim, o processo coletivo se diferencia do processo individual quanto ao seu objeto, legitimidade para agir e coisa julgada. Donizetti ressalta tais peculiaridades do processo coletivo, tendo em vista inúmeras outras (DONIZETTI, p. 14).
No caso de processo instaurado para a defesa de direitos coletivos em sentido amplo, são tamanhas as diferenças em relação ao processo tradicional-individualista que se convencionou identificá-lo como processo coletivo. A par de inúmeras peculiaridades, pode-se elencar três características principais do processo coletivo: a) objeto; b) legitimidade para agir; c) coisa julgada.
Quanto ao objeto, o processo coletivo pode ser identificado como aquele que possui como objeto os direitos difusos, direitos coletivos em sentido estrito ou direitos individuais homogêneos. O processo coletivo existirá tanto quando a parte autora alega ser titular desses direitos, quanto quando a parte autora alega algum direito em face de uma coletividade. No primeiro caso, será o processo coletivo mais comum, já na segunda hipótese, será o caso de ação coletiva passiva. Assim, o direito coletivo lato sensu no polo ativo caracteriza a ação coletiva ativa e o estado de sujeição dos direitos coletivos lato sensu no polo passivo caracteriza a ação coletiva passiva.
Deve-se destacar aqui, uma grande diferença entre o processo coletivo e o processo individual em que estão presentes os institutos do litisconsórcio, da conexão e da continência visto que o direito coletivo não é mera cumulação de pedidos individuais, como veremos mais a frente.
Quanto à legitimidade para agir, o processo coletivo possui como entes legitimados para agir as entidades não titulares do direito objeto de litígio. Assim, a característica marcante do processo coletivo quando a sua legitimidade é o instituto da legitimação extraordinária, ou legitimação autônoma para a condução do processo[3], como defende alguns doutrinadores.
Quanto à coisa julgada, o processo coletivo tem efeitos erga omnes no caso de direitos difusos e direitos individuais homogêneos e efeitos ultra partes no caso de direitos coletivos em sentido estrito, conforme artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor.
Tendo em vista as peculiaridades do processo coletivo, foram criados procedimentos específicos para a tutela dos direitos coletivos. Entre eles se destacam a ação popular (Lei nº 4.717/65), a ação civil pública (Lei nº 7.347/85), o mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX, da Constituição Federal e Lei nº 12.016/09), as ações coletivas para a defesa de direitos individuais homogêneos (arts. 91 a 100 do Código de Defesa do Consumidor) e a ação de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92).
4. LEGITIMIDADE NAS AÇÕES COLETIVAS
Como mencionado, o processo coletivo transformou os entes legitimados a propor ações, tendo como referência o processo individual.
No processo individual, é vedada a defesa em nome próprio de direito alheio. Assim, conforme art. 6º do Código de Processo Civil, apenas o titular do direito ou lesão a direito pode demandar em juízo, com exceção dos casos expressos de possibilidade de substituição processual.
Já no processo coletivo, os legitimados para propor as ações coletivas são, em regra, todos os indivíduos da sociedade ou uma grande maioria dela, o que impossibilita a colocação de um incontável número de pessoas no polo ativo da demanda. Assim, o ordenamento jurídico legitima diversos entes que serão considerados tutores destes interesses e direitos da coletividade.
Em tese, os sistemas jurídicos adotam diversos entes como legitimados no processo coletivo. Em geral são legitimados: determinados entes públicos, tais como pessoas jurídicas de direito público interno, Ministério Público e Defensoria Pública; entidades da administração pública indireta, tais como autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações; entidades privadas, tais como associações e sindicatos; e, pessoas físicas. Os doutrinadores, em geral, como José Carlos Barbosa Moreira, Ada Pellegrini Grinover, Rodolfo de Camargo Mancuso, Nelson Nery Junior e Kazuo Watanabe, defendem que exista uma variedade de entes legitimados para agir no processo coletivo, para que se evite o monopólio do exercício de ação.
As ações coletivas admitem como legitimados para propô-las aqueles explicitamente indicados na Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), Lei de Ação Popular (Lei nº 4.717/65) e Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). São eles: o Ministério Público, a União, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal, as entidades e órgãos da administração pública direta e indireta e as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que tenham pertinência temática com os interesses defendidos na ação coletiva.
Entretanto, o ponto em conflito surge quando o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos admite a possibilidade de uma pessoa física propor ação coletiva.
Conforme art. 20, inciso I, do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, é legitimado para propor ação coletiva em defesa dos interesses ou direitos difusos, entre outros, qualquer pessoa física, desde que o juiz reconheça sua representatividade adequada demonstrada por dados como a credibilidade, capacidade e experiência do legitimado, seu histórico na proteção individual e extrajudicial dos interesses ou direitos difusos e coletivos e sua conduta em eventuais processos coletivos em que tenha atuado.
O inciso II do artigo 20 do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos traz, ainda, a possibilidade de que membro de grupo, categoria ou classe proponha ação coletiva em defesa de interesses ou direitos coletivos e direitos individuais homogêneos, desde que o juiz reconheça sua representatividade adequada.
A possibilidade da legitimação de pessoa física para a propositura de ação coletiva trouxe argumentos contrários na doutrina brasileira. Dentre os argumentos defendidos pelos doutrinadores contrários à legitimidade individual, está a banalização da ação coletiva, pois já está expresso no ordenamento jurídico brasileiro que o indivíduo comum ou qualquer pessoa física já pode propor ação popular. Assim, como já existe a ação popular, não haveria necessidade de se estender o instrumento das ações coletivas às pessoas físicas.
Além disso, os doutrinadores contrários à legitimidade individual argumentam que a abertura da proposição de ações coletivas aos cidadãos comuns geraria uma multiplicação de ações coletivas sem importância ou qualquer relevância, tendo em vista a o despreparo e falta de esclarecimento da população.
Os defensores da legitimação individual, por sua vez, entendem que existente um fato ilegal ou lesivo ao interesse público, é possível o reconhecimento da legitimidade individual na propositura de ações coletivas.
Em primeiro lugar, não importa a motivação que leva alguém à propositura de uma demanda judicial. Todo e qualquer ato humano pressupõe uma atitude política, uma escolha entre as várias condutas possíveis. Mesmo que o motivo que conduza o cidadão a propor uma demanda popular não seja nobre, tal fator é absolutamente irrelevante. Não se pode ser ingênuo e imaginar que apenas iniciativas altruístas legitimariam as ações coletivas. (FERRARESI, 2007, p.137)
Os defensores da legitimação individual criticam a quase monopolização da tutela coletiva pelo Ministério Público até porque tal instituição não está presente em todos os locais e a legitimação popular tornaria o cidadão mais responsável pela defesa dos interesses e direitos coletivos[4].
Sobre o argumento da já existência da ação popular, os defensores da legitimação individual rebatem as críticas com o argumento de que a jurisprudência vem restringindo o campo de atuação da ação popular e tornando cada vez maior o da ação civil pública, o que acaba por extinguir sem pronunciamento de mérito diversas ações populares propostas por pessoas físicas.
Os julgados orientam-se principalmente no sentido de tolher a demanda supraindividual. Proposta a ação popular, dizem que o caso seria de ação civil pública. Ajuizada ação civil pública, exige-se a ação popular. Essa diversidade de interpretação sem dúvida prejudica a defesa dos interesses e direitos supraindividuais. Uma vez legitimado o indivíduo, estar-se-ia de uma certa forma reconhecendo de uma vez por todas a analogia entre a ação civil pública e a ação popular para que num futuro não muito distante tenhamos um procedimento único para a tutela jurisdicional coletiva. (FERRARESI, 2007, p.138)
O promotor de justiça Eurico Ferraresi, defensor da legitimidade individual, entende, ainda, que a exigência de associação pela pessoa física para que este proponha ação civil pública ofende o princípio constitucional de ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado.
Exigir de pessoa física que se associe para propor uma demanda coletiva ofende, sobretudo, princípios constitucionais, uma vez que nosso Texto Maior afirma que ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado (art. 5º, XX, da CF/88). Se a pessoa física, o membro do grupo, categoria ou classe, pertence ao grupo social, obriga-los a depender de corpos intermediários ou estatais para fazer valer um direito que também é seu, afigura-se, antes de tudo, arbitrário e inconstitucional. A defesa dos direitos supraindividuais, nos moldes como vem sendo feita no Brasil, traz um desserviço à cidadania. (FERRARESI, 2007, p.143)
Dentre os doutrinadores que se posicionam a favor da legitimidade individual para a propositura de ações coletivas estão Rodolfo de Camargo Mancuso, José Carlos Barbosa Moreira, Márcio Flávio Mafra Leal, Carlos Alberto Bittar Filho e Eurico Ferraresi.
Assim, entende-se que a admissão da legitimação individual para a propositura de ações coletivas seria um grande avanço no ordenamento jurídico brasileiro, pois abriria o leque de legitimados e firmaria o processo coletivo como instrumento eficaz de solução de problemas abrangentes.
Outro conflito existente na doutrina e legislação sobre a legitimidade dos entes na atuação no processo coletivo diz respeito às associações civil. Como mencionado, a Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) preveem como entes legitimados para propor ações coletivas as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que tenham pertinência temática com os interesses defendidos na ação coletiva, que também são chamadas de associações civis.
O problema está na falta de critérios seguros e mecanismos de controle que aufiram se a coletividade está sendo adequadamente representada na ação coletiva proposta pela associação civil.
Conforme Mirra:
A principal dificuldade cerificada no tocante à legitimidade ativa das associações civis para a defesa em juízo dos direitos e interesses transindividuais reside, em verdade, na ausência de critérios seguros e de mecanismos de controle da adequação de sua representatividade perante a coletividade, a fim de assegurar sua atuação efetiva e séria no processo, em benefício de todo o corpo social. (MIRRA, 2007, p. 119)
A solução encontrada pelo ordenamento jurídico brasileiro quando a auferia o da correta representatividade das associações no processo coletivo foi o estabelecimento de diversos critérios na Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85) e no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90).
Conforme art. 5º, I e II, da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85) e art. 82, IV, do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), as associações civis devem preencher três requisitos para serem consideradas representativas dos interesses da coletividade na proteção de direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.
O primeiro requisito se refere ao modo de constituição da associação: a associação deve ter personalidade jurídica, formalizada na inscrição do seu estatuto no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, conforme art. 45 do Código Civil e arts. 114 a 121 da Lei de Registros Públicos.
O segundo requisito se refere ao tempo de constituição da associação: a associação deve estar constituída a pelo menos um ano, contados até a propositura da ação coletiva.
O terceiro requisito se refere à finalidade da associação: a associação deve ter sua finalidade institucional definida no estatuto, bem com seus objetivos de tutelas de direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos definidos no mesmo estatuto.
Ressalte-se que os requisitos expostos acima são necessários e suficientes para a adequada e correta representação da sociedade pelas associações civis no processo coletivo.
Mirra (MIRRA, 2001, p. 121) destaca que outros requisitos normalmente estabelecidos em ordenamentos jurídicos diversos do brasileiro são a vinculação geográfica da entidade de associação civil ao território abrangido pela lesão ou ameaça de lesão combatida, a natureza e a importância das atividades práticas efetivamente promovidas pelas associações civis, bem como o reconhecimento ou declaração prévia pelo Poder Público.
No ordenamento jurídico brasileiro, entretanto, não há necessidade de vinculação geográfica da associação civil com o direito lesionado. Assim, uma associação civil de proteção ao direito do consumidor de Brasília pode propor ação coletiva para proteção de direitos de consumidores lesados em outros estados brasileiros.
O artigo 5º, §4º, da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85) e o art. 82, §1º, do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) dispõem que o requisito da pré-constituição da associação civil pelo prazo de um ano antes da proposição da ação coletiva pode ser dispensado quando houver manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido. Assim, as leis mencionadas flexibilizam o segundo requisito disposto nos parágrafos acima para que haja maior defesa dos interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Diversos doutrinadores concluem que a Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) não são exigentes quanto aos requisitos que definem a correta representatividade. Tal entendimento também é definido nos tribunais e na jurisprudência.
Conforme julgado do Superior Tribunal de Justiça, a dispensa do art. 5º, §4º, da Lei da Ação Civil Pública é aplicável à associação de moradores que postulou ação coletiva com objetivo de obter proteção do meio ambiente e prestação de assistência médico-hospitalar.
AÇÃO COLETIVA. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. REQUISITOS TEMPORAIS. DISPENSA. POSSIBILIDADE. DIREITO INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. INTERESSE DE AGIR. EXISTÊNCIA.
1 - É dispensável o requisito temporal da associação (pré-constituição há mais de um ano) quando presente o interesse social evidenciado pela dimensão do dano e pela relevância do bem jurídico a ser protegido.
2 - O §3º do art. 103 do CDC é norma de direito material, no sentido de que a indenização decorrente da violação de direitos difusos, destinada ao fundo especial previsto no art. 13 c/c o art. 16 da Lei nº 7.347/85 não impede eventual postulação ao ressarcimento individual (homogêneo) devido às vítimas e seus sucessores atingidos. Esse dispositivo não retira da associação o interesse (necessidade/utilidade) de ajuizar a ação coletiva própria, em face de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público, buscando a proteção do meio ambiente e a prestação de assistência médico-hospitalar.
3 - Recurso especial não conhecido.
(STJ – Resp. 31.150/SP)
Apesar de a intenção da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85) e do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) ser a flexibilização para maior defesa dos interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, há a necessidade de requisitos mais concretos e rigorosos para que a representatividade das coletividades e da própria sociedade ser correta e efetiva.
O Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, elaborado com a supervisão da processualista Ada Pellegrini Grinover, propõe que outros requisitos de representatividade adequada sejam inseridos, tais como um determinado número de associados que represente a coletividade e a efetiva realização de atividades concretas voltadas para a defesa dos interesses e direitos incluídos entre os fins institucionais da associação.
Mirra (2007, p. 125) defende que a inclusão de outros requisitos não ofenderia o acesso à justiça. Confira-se:
Ressalte-se que a inclusão de outros requisitos de representatividade adequada em nada restringiria o acesso à justiça das associações civis destinadas à defesa de direitos e interesses difusos. Ao contrário, apenas afastaria a legitimidade de entes não governamentais destituídos de qualquer estrutura organizacional e seriedade de propósitos na tutela de bens e valores a todos pertencentes em caráter indivisível.
Assim, entende-se que é necessário que o ordenamento jurídico brasileiro seja reformulado neste aspecto para que se insiram novos critérios para a efetiva e correta representatividade das associações civil na defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.
5. Ações PSEUDOINDIVIDUAIS E Pseudocoletivas
As ações pseudoindividuais são assim denominadas por Kazuo Watanabe como as que, apesar de serem demandas individuais, geram efeitos sobre uma coletividade.
Watanabe (2006, p. 32) ressalta a confusão cometida por doutrinadores no momento de definir quais são as situações cabíveis de serem tuteladas pelo processo coletivo. Com essa confusão, são geradas as ações pseudoindividuais.
Muitos erros têm sido cometidos na práxis forense pela desatenção dos operadores do direito às peculiaridades da relação jurídica material em face da qual é deduzido o pedido de tutela jurisdicional, como a inadmissível fragmentação de um conflito coletivo em múltiplas demandas coletivas, quando seria admissível uma só, ou senão a propositura de demandas pseudoindividuais fundadas em relação jurídica substancial de natureza incindível. (WATANABE, 2006, p. 32)
Para solucionar tal problema, Watanabe propõe a proibição de demandas individuais referentes a uma relação jurídica que afete uma coletividade. Para o autor, as ações individuais que têm como litígio o mesmo objeto de ações coletivas ou outra ação individual significam bis in idem, e, por isso, são inadmissíveis.
A solução que seria mais apropriada, em nosso sentir, na conformidade das ponderações acima desenvolvidas, seria a proibição de demandas individuais referidas a uma relação jurídica global incindível. Porém, a suspensão dos processos individuais poderá, em termos práticos, produzir efeitos bem próximos da proibição, se efetivamente for aplicada pelo juiz da causa. (WATANABE, 2006, p. 35)
Por outro lado, o doutrinador Luiz Paulo da Silva Araújo Filho defende a existência das ações pseudocoletivas. Segundo ele, as ações coletivas não são a mera soma das ações individuais:
Uma ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos não significa a simples soma das ações individuais. Às avessas, caracteriza-se a ação coletiva por interesses individuais homogêneos exatamente porque a pretensão do legitimado concentra-se no acolhimento de uma tese jurídica geral, referente a determinados fatos, que pode aproveitar a muitas pessoas. O que é completamente diferente de apresentarem-se inúmeras pretensões singularizadas, especificamente cerificadas em relação a cada um dos respectivos titulares do direito. (ARAUJO, 2000, p. 114)
Assim, as ações pseudocoletivas são conhecidas por apresentam várias pretensões individuais em uma só ação coletiva. Há, entretanto, a visão majoritária da doutrina, de que deve se verificar nas ações coletivas o interesse comum e não inúmeros interesses individuais.
Segundo Donizetti (2010, p. 66), as ações pseudocoletivas devem ser extintas por falta de interesse de agir, já que é inadequada a via eleita para a resolução da lide. O autor ressalta, ainda, que a ação coletiva não é o caminho adequado para a defesa de uma soma de pretensões individuais em uma única ação.
É importante deixar claro que a configuração ou não de uma ação pseudocoletiva dependerá do pedido formulado pelo substituto processual, e não da prevalência das questões individuais sobre as comuns (DONIZETTI, 2010, p. 67).
No Superior Tribunal de Justiça, há uma única decisão a respeito das ações pseudocoletivas que, em decisão monocrática, não foi reconhecida a legitimidade ativa da associação que, como legitimada extraordinária, propôs ação coletiva para a defesa de interesses e direitos específicos e concretos de diversos titulares de direitos individuais substituídos. Segue extrato da decisão monocrática proferida pelo Ministro Herman Benjamin, no recurso especial 1216600, de 17/12/2010:
1. A questão envolve a possível condenação da CEF ao pagamento da correção monetária residual relativa aos saldos das contas vinculadas de FGTS que foram levantados em razão de determinação judicial oriunda do juízo da 20ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Não houve aplicação de qualquer índice de correção monetária entre a data em que houve o início do novo período de contagem e a data do efetivo levantamento do saldo em razão de cumprimento de ordem judicial.
2. Os interesses individuais homogêneos se relacionam a uma mesma relação jurídica-base, têm uma mesma origem comum, em que o substituto processual (Associação, Ministério Público ou outra entidade legitimada) defende não o indivíduo como tal, e sim a pessoa enquanto integrante do grupo. Não há que se cogitar de prejuízo à pessoa que, eventualmente, não pretenda ser beneficiada com a tutela coletiva concedida: basta não promover as medidas indispensáveis à execução da tutela jurisdicional na situação jurídico-individual.
3. Não se reconhece legitimidade ativa extraordinária da Associação-Apelada para figurar no polo ativo da demanda. Nas ações pseudocoletivas, conquanto tenha sido proposta a ação por um único legitimado extraordinário, na verdade, estão sendo pleiteados, específica e concretamente, os direitos individuais de inúmeros substituídos, caracterizando-se uma pluralidade de pretensões que é equiparável à do litisconsórcio multitudinário, devendo sua admissibilidade, portanto, submeter-se, em princípio, às mesmas condições, ou seja, somente poderiam ser consideradas admissíveis quando não prejudicassem o pleno desenvolvimento do contraditório ou o próprio exercício da função jurisdicional.
Assim, o problema das ações pseudoindividuais bem como das ações pseudocoletivas necessitam solução normativa para que não haja maior confusão de institutos no ordenamento jurídico. Dentre as soluções propostas pelos anteprojetos de código de processo coletivo, destaca-se o Código de Processo Coletivo formulado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual, que prevê a suspensão das ações individuais no prazo de 30 dias quando houver ação coletiva em curso. Assim, os efeitos da coisa julgada coletiva beneficiarão os autores das ações individuais.
6. A Regulamentação do Processo Coletivo no Brasil
Como mencionado no capítulo anterior, a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor são marcos na regulamentação do processo coletivo no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, há forte tendência de se criar um Código de Processo Coletivo no Brasil.
O Código de Defesa do Consumidor passou a ser conhecido como microssistema processual coletivo porque criou conceitos para os institutos dos direitos coletivos e criou regras gerais para execução das ações coletivas, independentemente do procedimento adotado (mandado de segurança coletivo, ação civil pública e outras).
Donizetti organizou em quatro passos a maneira de se utilizar as normas quando se tratar de direitos coletivos (Donizetti, 2010, p. 29-30). Inicialmente, caso existente lei específica para o procedimento adotado, deve-se utilizá-la, de acordo com o princípio da especialidade. O segundo passo é a aplicação do Código de Defesa do Consumidor no caso de não haver lei específica para o procedimento ou, no caso de existência, se ela não for suficiente. O terceiro passo é a utilização de outras normas relativas a processos coletivos, como, por exemplo, a lei da ação civil pública ou lei do mandado de segurança coletiva, no caso de o Código de Defesa do Consumidor ainda ser insuficiente. Por último, aplica-se, residualmente, o Código de Processo Civil, desde que não haja incompatibilidade formal e material.
Em virtude da falta de organização e estruturação das normas de direito coletivo em um diploma único, os juristas exaltam a criação de um Código de Processo Coletivo. Assim, quatro anteprojetos já foram redigidos com o objetivo de codificar e uniformizar as normas de direito processual coletivo.
Donizetti ressalta que, apesar da qualidade das normas existentes, elas não são práticas para utilização. Destaca, ainda, os inúmeros equívocos e confusões doutrinárias em virtude da fragmentação das normas de processo coletivo.
Conquanto seja bela a construção legislativa que enseja a interpretação de que há um microssistema processual coletivo, não há dúvida de que o manejo dessa estrutura legal não é nem um pouco simples ou prático. (DONIZETTI, 2010, p. 29).
De 2002 a 2008, dois códigos modelos e dois anteprojetos foram criados no ímpeto de criação do Código Brasileiro de Processo Coletivo. O primeiro é o Código Modelo de Processo Civil Coletivo para Países de Direito Escrito, elaborado por Antonio Gidi. O segundo é o Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América elaborado por Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe e Antonio Gidi. Há ainda o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos do Instituto Brasileiro de Direito Processual elaborado sob a coordenação de Ada Pellegrini Grinover e o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos dos programas de pós-graduação da UERJ e UNESA, elaborado por Aluísio Gonçalves de Castro Mendes.
Entretanto, apesar de tantos esforços, os projetos de codificação do processo coletivo encontraram resistências políticas e a possibilidade de codificação veio a falir quando o Ministério da Justiça institui comissão para elaborar nova lei da ação civil pública, com o consequente abandono da ideia da codificação do processo coletivo.
No capítulo seguinte serão analisadas as relações entre o processo coletivo e o processo individual quanto aos institutos da litispendência, da conexão, da continência e da intervenção de terceiros.
CONCLUSÃO
A partir de todo o exposto, fica fácil observar que o processo coletivo apresenta um microssistema processual particular, com institutos jurídicos específicos e princípios informadores próprios, o que demanda um grande esforço de atualização e pesquisa àqueles ainda não familiarizados com a disciplina.
Os institutos dessa tutela coletiva são inéditos, não se tratando de mera importação dos institutos processuais clássicos de tutela de direitos individuais. Embora ainda recente esse sistema, observa-se que a técnica processual encontra-se bastante avançada do ponto de vista dogmático.
Contudo, esse instrumentário processual desenvolvido apenas poderá ser colocado em prática se juízes, promotores, defensores e advogados estejam preparados a dar a eles a aplicação adequada.
Vem em boa hora a tramitação de projetos de lei com vistas à edição de um Código de Processo Coletivo, com vistas a tornar o sistema ainda mais coeso e de fácil assimilação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVIM, Eduardo Arruda. Coisa Julgada e Litispendência no Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. In: Direito Processo Coletivo e o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007.
ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000.
DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo. 6. Ed. Bahia: Editora Podivm, 2011. 514 p.
DINAMARCO, Pedro. Ação Civil Pública. São Paulo, Saraiva, 2001.
DONIZETTI, Elpídio; CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. Curso de Processo Coletivo. 1. Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2010. 557 p.
MATTOS, Luiz Norton Baptista de. A litispendência e a coisa julgada nas ações coletivas segundo o Código de Defesa do Consumidor e os Anteprojetos do Código Brasileiro de Processos Coletivos. In: Direito Processo Coletivo e o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual. São Paulo: Editora Saraiva, 1984.
WATANABE, Kazuo. Relação entre demanda coletiva e demandas individuais. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 31, n. 139, p. 28-35, set. 2006.
ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo. 3. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 319 p.
[1] Recurso Especial 1142630/PR (STJ): “Para fins de tutela jurisdicional coletiva, os interesses individuais homogêneos classificam-se como subespécies dos interesses coletivos, previstos no art. 129, inciso III, da Constituição Federal.”
[2] Recurso Extraordinário 163231/SP (STF): “Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas.”
[3] Nelson Nery Junior defende a ideia da legitimidade autônoma para a condução do processo quanto a direitos transindividuais e extraordinária para a proteção dos direitos individuais homogêneos. Já Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier defendem a corrente de que há legitimidade autônoma para a condução do processo na defesa de qualquer espécie de direito coletivo.
[4] “Legitimar a pessoa física estimularia a propositura de ações coletivas, tornando o cidadão mais responsável pela defesa dos interesses supra-individuais.” (BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Tutela do meio ambiente: a legitimação ativa do cidadão brasileiro. RT 698/14, São Paulo: RT.)
Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Especialista em Processo Civil pelo Instituto Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro. Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINTO, Esdras Silva. Processo coletivo: princípios específicos, espécies de direito coletivo e características principais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45679/processo-coletivo-principios-especificos-especies-de-direito-coletivo-e-caracteristicas-principais. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
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