RESUMO: Uma das grandes novidades implementadas pelas reformas do Código de Processo Civil está contida no art.475-L, §1º, do CPC, que prevê como forma de defesa do executado a arguição de inexigibilidade do título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo STF. A aplicação deste artigo tem levado a acaloradas discussões na doutrina e na jurisprudência acerca da relativização da coisa julgada, bem como sobre a ponderação de princípios constituicionais. O presente trabalho propõe uma reflexão sobre a relativização da coisa julgada em homenagem à supremacia da Constituição, em contraponto à tão prestigiada segurança jurídica.
Palavras-chave: Processo Civil – Reformas – Cumprimento de Sentença – Defesa – Executado – Supremacia – Constituição Federal - Coisa Julgada – Relativização.
Sumário: 1 Introdução; 2 A coisa julgada; 2.1 A relativização da coisa julgada; 2.2 A relativização da coisa julgada como decorrência lógica da ponderação de princípios; 3 A coisa julgada inconstitucional; 4 A relativização por meio da impugnação ao cumprimento de sentença prevista no art.475-L, §1º, do CPC; 5 Conclusão. 6 Referências.
1 Introdução
A Lei n.11.232, de 22 de dezembro de 2005, uma das várias leis que alteraram o Código de Processo Civil nos últimos anos, transformou a execução da sentença, que condena ao pagamento de quantia certa, em fase complementar do mesmo processo em que a decisão foi proferida. Tal como já havia ocorrido em relação às condenações de fazer, não fazer e entregar coisa (Lei n.10.444/02).
Com o advento da referida lei abandonou-se por completo o modelo defendido por Liebman, para quem a execução de sentença devia ser considerada um processo autônomo perante o processo de conhecimento em que a sentença tivesse sido proferida[1].O que há, atualmente, é um processo misto, sincrético, composto por duas fases: fase de conhecimento e fase de execução, denominada “cumprimento de sentença”.
Com a extinção do processo de execução aboliram-se, também, os embargos do devedor, substituídos pela impugnação ao cumprimento de sentença.
A impugnação, incidente processual que, via de regra, não terá efeito suspensivo, poderá versar somente sobre as hipóteses previstas no art.475-L, do CPC, isto é, o rol é taxativo.
Dentre as possibilidades de defesa, o devedor poderá, nos termos do §1º do citado artigo, arguir a inexigibilidade do título executivo judicial, porque
fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.
Esse artigo vem sendo objeto de discussão na doutrina e na jurisprudência, principalmente porque traz a lume a questão da “relativização da coisa julgada”.
Leva, outrossim, à reflexão sobre os princípios, incluindo a análise da chamada “ponderação dos princípios” de Robert Alexy, pois questiona-se se haveria preponderância do Princípio da Supremacia da Constituição sobre os demais princípios constitucionais, dentre eles o da Intangibilidade da Coisa Julgada[2].
Alguns autores consideram o referido artigo inconstitucional, por ofensa ao Princípio da Coisa Julgada[3]. Por outro lado, há quem defenda a sua constitucionalidade, diante da relevância extrema do Princípio da Supremacia da Constituição.
O presente trabalho será focado no estudo do sentido e do alcance do art.475-L, §1º, do CPC, o que leva, inexoravelmente, à análise dos efeitos e limites da coisa julgada, além da reflexão sobre a importância e aplicação dos princípios constitucionais.
1 A Coisa Julgada
Coisa julgada é a imutabilidade decorrente da sentença de mérito, que impede sua discussão posterior. Fala-se em coisa julgada formal, quando não for mais possível rediscutir a decisão dentro do processo em que ela foi proferida, e em coisa julgada material, quando a indiscutibilidade da sentença se der fora da relação processual, ou seja, em relação a outros feitos. Para o nosso estudo, tomaremos em consideração a coisa julgada material.
Exercendo a sua função positiva, a coisa julgada estabiliza os efeitos da sentença, projetando-os indefinidamente para o futuro; na sua função negativa, a coisa julgada impede o Poder Judiciário de se manifestar sobre o que já foi decidido.
A coisa julgada é um elemento intrinsecamente ligado ao princípio da segurança jurídica, corolário do Estado Democrático de Direito. A estabilidade das decisões dos órgãos estatais encarregados de exercer a jurisdição é um dever do Estado e um direito fundamental do cidadão. O nosso ordenamento jurídico não admite, em regra, a livre revogação ou alteração do que restou decidido, com força de coisa julgada, a pretexto de garantir a segurança e a certeza jurídicas.
Na época em que imperava o positivismo havia um apego enorme à coisa julgada, falava-se, inclusive, que ultrapassado o prazo para a ação rescisória formada estaria a chamada coisa julgada soberana, cuja imutabilidade tinha caráter absoluto.
Entretanto, com a mudança de paradigma e o consequente levante de ideais juspositivistas, dentre eles, a clara preocupação com a justiça, nota-se que o valor segurança jurídica, antes tido como soberano, hoje concorre com outros valores como a justiça e a efetividade.E essa concorrência levou a doutrina a debater, cada vez com mais frequência, sobre a possibilidade de relativizar a coisa julgada.
2.1 A relativização da coisa julgada
Toda a discussão acerca da possibilidade de relativização da coisa julgada envolve, necessariamente, a análise do conflito segurança versus justiça. Remete, ainda, à imprescindível ponderação de princípios constitucionais, como o próprio princípio da segurança jurídica e o princípio da supremacia da Constituição.
A pergunta a ser respondida é a seguinte: a coisa julgada, como instituto realizador da segurança jurídica, deve imunizar os efeitos de todas as decisões transitadas em julgado, mesmo que elas não sejam “justas”? A doutrina se divide ao responder esse questionamento. Alguns juristas permanecem na defesa da supremacia da intangibilidade da coisa julgada.
Já para Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria[4], uns dos pioneiros no debate sobre o tema, o princípio da intangibilidade da coisa julgada não é absoluto, e nem a segurança jurídica que o justifica.
As propostas de relativização da coisa julgada consistem, basicamente, na defesa da possibilidade de sua rescisão mesmo depois de esgotado o prazo decadencial da ação rescisória.Destaca-se a necessidade de se afastar a coisa julgada principalmente nas hipóteses de decisões que contêm injustiças intoleráveis ou que possuem vício de inconstitucionalidade.
Sobre a última hipótese, Gilmar Mendes[5] esclarece que, no sistema difuso de controle de constitucionalidade, em razão da multiplicidade de instâncias e de entendimentos, a definição de um juízo definitivo sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de uma lei ou de uma interpretação consome tempo significativo. Isso permite que as decisões transitem em julgado antes da consolidação de uma posição definitiva por parte do STF, formando o que se consolidou chamar de “coisa julgada inconstitucional”.
Os autores já citados, Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria[6], argumentam que a decisão eivada de inconstitucionalidade é nula e pode ser desconstituída a qualquer momento.
1.O vício de inconstitucionalidade gera a invalidade do ato público, seja legislativo, executivo ou judiciário; 2. A coisa julgada não pode ser empecilho ao reconhecimento da invalidade da sentença proferida em contrariedade à Constituição Federal; 3. Em se tratando de sentença nula de pleno direito, o reconhecimento do vício de inconstitucionalidade pode se dar a qualquer tempo e em qualquer procedimento, por ser insanável.
Por outro lado, há os que afirmam, por exemplo, os renomados processualistas Nelson Nery Júnior e Luiz Guilherme Marinoni, que a declaração de inconstitucionalidade, ainda que tenha efeitos retroativos (ex-tunc), não afeta a norma concreta contida na sentença ou acórdão. Marinoni ressalva que a sentença não se confunde com “uma simples lei”, porque, ao ser proferida, se depreende do texto legal, dando origem à norma jurídica do caso concreto.
O referenciado autor afirma ainda o seguinte:
Em sede do Estado de Direito, o princípio da intangibilidade do caso julgado é ele próprio um princípio densificador dos princípios da garantia da confiança e da segurança inerentes ao Estado de Direito[7].
Para Nelson Nery Júnior[8], o que se pretende, na verdade, é a desconsideração da coisa julgada em casos excepcionais.
Os defensores da mutabilidade da coisa julgada rebatem, sustentando ser bastante estranho atribuir à lei menor relevância que à sentença quando o que se tem a coibir é a inconstitucionalidade.
A coisa julgada inconstitucional autoriza a relativização do princípio da intangibilidade, como instrumento hábil a garantir a integridade e supremacia da Constituição Federal e a própria segurança jurídica[9].
2.2 A relativização da coisa julgada como decorrência lógica da ponderação de princípios
A relatividade da coisa julgada é algo inerente à ordem constitucional-processual, dada a imprescindibilidade de convivência com os demais valores e princípios de igual ou maior grandeza que norteiam o ordenamento.
Certamente, não é possível afirmar qual valor deve prevalecer e, tratando-se de um conflito jusprincipiológico, tal solução deve ser buscada caso a caso, lançando-se mão do princípio da proporcionalidade.
Portanto, sendo a garantia da coisa julgada um princípio que por natureza não é um norma de validade absoluta como as regras, ela admitiria exceções, justificadas, sobretudo, pela aplicação do princípio da proporcionalidade, o qual, como é cediço, assume papel fundamental na solução de conflitos principiológicos, sendo, por isso, conceituado por alguns como “o princípio dos princípios”[10].
Com efeito, o princípio da intangibilidade da coisa julgada não é absoluto, cedendo diante de outros igualmente consagrados como o da Supremacia da Constituição[11].
3 A Coisa Julgada Inconstitucional
Na verdade, a doutrina critica a expressão “coisa julgada inconstitucional”, asseverando que a coisa julgada é apenas a qualidade de imutabilidade que recai sobre o comando contido na sentença, e não se confunde com o conteúdo da decisão. Assim, a rigor, trata-se de sentença inconstitucional revestida de coisa julgada. A par disso, a expressão é recorrente.
A propósito, vale citar as observações de Eduardo Talamini[12]:
Compreende-se também a alusão à “coisa julgada inconstitucional”, em vez de “sentença inconstitucional”, pois é nesses casos que se impõe o impasse de maior gravidade: a coisa julgada proíbe a revisão ou cassação da sentença, assim como, nos limites objetivos e subjetivos em que vigora, desautoriza qualquer comando que se lhe contraponha.
Daí que a primeira utilidade da expressão “coisa julgada inconstitucional” está em enfatizar o cerne da questão: em que medida a garantia constitucional da coisa julgada deve prevalecer quando está conferindo estabilidade, “imunidade”, a um pronunciamento incompatível com outros valores e normas constitucionais?
A expressão reveste-se ainda de uma segunda relevância sistemática. Presta-se a deixar claro que toda e qualquer situação sobre quebra da coisa julgada só é legítima se norteada por parâmetros constitucionais.
Pois bem. Consideram-se hipóteses de sentenças inconstitucionais: i) sentença amparada na aplicação de norma inconstitucional; ii) sentença amparada em interpretação incompatível com a Constituição; iii) sentença amparada na indevida afirmação de inconstitucionalidade de uma norma; iv) sentença amparada na violação direta de normas constitucionais ou cujo dispositivo viola diretamente normas constitucionais; v) sentença que estabelece ou declara uma situação diretamente incompatível com os valores fundamentais da ordem constitucional.
Além disso, a aplicação da norma inconstitucional não precisa ocorrer na sentença, mas antes, no curso do processo, e repercutir diretamente sobre ela. Tampouco tem que estar atrelada ao direito material; pode, no entanto, atingir norma processual. Outrossim, a violação inconstitucional pode advir da adoção de uma interpretação incompatível com a Constituição.
4 A Relativização por Meio da Impugnação ao Cumprimento de Sentença prevista no art.475-L, §1º, do CPC
A sentença que se vale de norma inconstitucional é um ato existente, de modo que nem mesmo a declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal é capaz de afetar automaticamente os efeitos da decisão acobertada pela coisa julgada material. Esta deverá, então, ser objeto de instrumentos rescisórios, v.g. a ação rescisória, os embargos rescisórios (art.741, parágrafo único do CPC) e a impugnação ao cumprimento de sentença, com fulcro no art.475-L, §1º, do CPC.
Os limites deste trabalho não permitem um estudo aprofundado sobre todas as referenciadas formas de relativização. Sendo assim, nos ateremos à análise da impugnação ao cumprimento da sentença fundada em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais, prevista no art.475-L, §1º, do CPC. Alguns autores afirmam a inconstitucionalidade desse dispositivo; consideram-no ofensivo ao Princípio da Coisa Julgada[13]. Por outro lado, há os que defendem a sua constitucionalidade, diante da relevância extrema do Princípio da Supremacia da Constituição.
Com efeito, questionar o artigo, sob alegação de ofensa à coisa julgada, seria negar a constitucionalidade da própria ação rescisória, instituto que evidencia claramente que a coisa julgada não tem caráter absoluto, comportando limitações[14].
O dispositivo em foco será aplicável tanto quando o pronunciamento do Tribunal Federal (ou a “suspensão” do Senado)[15] for posterior à sentença que serve de título executivo, quanto quando for anterior – sempre observados os limites temporais fixados na decisão do Supremo ou na resolução do Senado. Isso ocorre porque a decisão proferida pelo STF apenas terá o cunho de desconstituir o título se a ela tiver sido conferida eficácia retroativa, o que é a regra, como cediço.
Tereza Arruda Alvim Wambier e Miguel Garcia Medina[16] destacam que:
Só será possível ao executado fazer esta alegação na impugnação se à decisão que julgou a ação declaratória de inconstitucionalidade se tiverem imprimido efeitos extunc, em conformidade com a regra geral, não tendo havido decisão com base nas circunstâncias constantes do art.27 da Lei n.9.868/1999, ´segurança jurídica´ ou ´excepcional interesse social´, que autorizam se dê à decisão da ação declaratória de inconstitucionalidade efeito ex nunc.
Destarte, conclui-se que a inconstitucionalidade que dá ensejo à aplicação da regra em comento é aquela reconhecida pelo STF. Não se pode concordar com o posicionamento adotado pelo respeitado Humberto Theodoro Júnior, segundo o qual todo juiz, ao decidir qualquer processo, se vê investido no poder de controlar a constitucionalidade da norma ou ato cujo cumprimento se postula em juízo, independentemente da existência de pronunciamento pelo Supremo Tribunal Federal.
Ora, tal permissão ensejaria que qualquer juiz, simplesmente invocando a inconstitucionalidade da norma, negasse execução a qualquer sentença, oportunizando a permanente renovação do questionamento judicial de lides já decididas, o que provocaria inegável instabilidade.
De uma primeira leitura do §1º do art.475-L do CPC pode-se entender que o reconhecimento da inconstitucionalidade gerará sempre a desconstituição do título, o que implica, por óbvio, dar prevalência, sempre, ao princípio da supremacia da Constituição em detrimento dos demais princípios, também de índole constitucional. Aliás, doutrinadores de peso têm posicionamento firmado nesse sentido[17].
Entretanto, como exposto alhures, verifica-se a imperiosa necessidade de, no caso concreto, realizar uma ponderação de valores, através do sopesamento dos interesses e bem jurídicos em jogo.
A esse respeito salienta André Luiz Santa Cruz Ramos[18]:
O mais importante: em todos os casos nos quais seja aplicável a regra em foco, o julgador poderá manter a eficácia e exigibilidade do título executivo embargado, em respeito à coisa julgada e à sua função “sanatória geral” do processo. Para tanto, será fundamental a utilização do princípio da proporcionalidade para realizar a devida ponderação entre valores e princípios em jogo. Afinal, como ensina Humberto Ávila, “é exatamente no modo de solução da colisão de princípios que se induz o dever da proporcionalidade.”
E prossegue o referido autor:
Ora, ao examinar o caso concreto, caberá ao julgador analisar, considerando-se a tríplice dimensão do princípio da proporcionalidade, bem com as circunstâncias fáticas que permeiam o caso sub judice, se a rescisão da coisa julgada é realmente adequada, necessária e razoável (proporcional em sentido estrito), enfim, se o custo benefício da medida é o melhor possível.
Destarte, a despeito de a proteção da coisa julgada ser uma garantia constitucional, nenhum princípio no Estado Democrático de Direito pode ser considerado absoluto, o que impõe ao julgador o dever de ponderação no caso concreto.
O Código de Processo Civil não determina um prazo para a arguição de nulidade do título exequendo fundado em ato normativo inconstitucional. Grande parte dos doutrinadores afirma que, verificada a inconstitucionalidade, poderá o executado impugnar o cumprimento da sentença, ainda que vencido o prazo de dois anos da ação rescisória.
Fredie Didier Jr.[19], entretanto, faz ponderações, e destaca, sobretudo, a relevância da garantia da estabilidade e da segurança jurídica:
(...) para não deixar a coisa julgada eternamente instável, parece que é o caso de aplicar por analogia o prazo da ação rescisória e não permitir a rescisão da sentença se essa decisão do STF ocorrer após o prazo de dois anos contados do trânsito em julgado da decisão exequenda, mesmo se a ela for atribuída eficácia retroativa. O CPC nada diz sobre o assunto, mas permitir que uma decisão judicial fique eternamente instável parece solução que aniquila, completamente, a garantia da coisa julgada.
Impende acrescentar que o dispositivo será aplicável tanto às execuções definitivas, quanto às provisórias.
No tocante à competência, assunto pouco tratado nas discussões sobre o artigo em análise, observa Fredie Didier Jr.[20]:
Exatamente no que diz respeito à competência é que aparece uma forte objeção à constitucionalidade dessa inovação. É que se se trata realmente de uma hipótese de rescisão da coisa julgada, como permitir que juízo da execução, que normalmente é o juízo de primeira instância, aquele que não proferiu o acórdão executado, possa rescindir um acórdão do Tribunal? Se fosse proposta uma rescisória, com base no inciso V do art.485, seria o tribunal que proferiu a decisão rescindenda o competente para rescindi-la. Por que, nesse caso, quem a rescindiria seria o juízo de primeira instância? O direito ao juiz natural deve ser observado, embora esse aspecto tenha passado ao largo das discussões sobre a aplicação do §1º do art.475-L. É preciso, portanto, dar coerência ao sistema, reconhecendo a competência para rescisão, nestes casos, ao tribunal que proferiu o acórdão rescindendo, ou, ao próprio juízo de primeira instância, no caso de pretender-se rescindir, com base nesse parágrafo, a sua própria sentença, aplicando-se, por analogia, a competência para a querela nullitatis.
Outro aspecto que merece destaque diz respeito à aplicabilidade do art.475-L, §1º, do CPC, às sentenças transitadas em julgado antes de sua entrada em vigor.
No julgamento do REsp 1.076.080 - PR,a Ministra Nancy Andrighi destacou que o direito brasileiro não reconhece a existência de direito adquirido ao rito processual, de maneira que a lei nova aplica-se imediatamente ao processo em curso, no que se refere aos atos presentes e futuros.
Não se admite, todavia, a aplicação retroativa, ou seja, às sentenças cujo trânsito em julgado tenha ocorrido em data anterior à vigência da norma.
Evidentemente, a procedência da impugnação pressupõe a motivação do título executivo, exclusivamente, no preceito constitucional. Isso significa que a inconstitucionalidade precisa repercutir na sentença de mérito e ser suficiente para provocar a mudança ou supressão da decisão. Isto é, a sentença ou acórdão devem ser considerados absolutamente incompatíveis com a manifestação do Supremo Tribunal Federal.
Como afirma Araken de Assis[21]:
Revela-se indispensável que o julgado se baseie, exclusivamente, no preceito inconstitucional. Se a condenação se funda em outras disposições legais, ou o vencedor alegou várias causas de pedir e qualquer delas se mostrava bastante ao acolhimento do pedido, o pronunciamento resistirá à inconstitucionalidade originária ou superveniente de apenas um dos seus fundamentos.
Por fim, cumpre destacar a existência de questionamento acerca da possibilidade de, em caso de acolhimento da impugnação fundada no art.475-L, §1º, do CPC, ser proferido um novo julgamento, ou se seria hipótese de somente tornar inadmissível a execução do título.
Araken de Assis afirma que a procedência dos embargos não desconstituirá o título e, muito menos, reabrirá o processo já encerrado. EduardoTalamini, entretanto, ressalva que a resposta dependerá do caso concreto. Para o autor, em algumas hipóteses não haverá problema, pois a solução da questão constitucional implicará mera inversão do resultado anterior, sem demandar nenhuma providência adicional.
Porém, em outras situações, em que a ação ou a defesa tiverem suporte em fundamentos ou causas de pedir diversos, a rescisão do comando poderá exigir o pronunciamento de outro, que trate, especificamente, das questões não abordadas anteriormente, porque prejudicadas pelo resultado anterior. Assim, o renomado processualista sugere que o processo deve ser retomado a partir da sentença, para que o julgador aprecie as demais questões.
5 Conclusão
A coisa julgada se reveste, via de regra, do caráter de imutabilidade e indiscutibilidade por razões de segurança jurídica e estabilidade das relações, impedindo a eternização dos conflitos. Porém, o instituto não pode servir de empecilho ao reconhecimento do vício grave que contamina a sentença proferida em contrariedade à Constituição Federal.
Assim, justifica-se a sua relativização, quando, no caso concreto – depois de ponderados os princípios e valores em jogo - se chegar à conclusão de que a decisão não pode ser mantida, em que pese acobertada pela coisa julgada material.
O valor segurança jurídica, a despeito de posicionamentos doutrinários em contrário, não pode ser visto como absoluto no cotejo com outros valores de igual ou maior significado em uma sociedade regida pela ordem constitucional democrática de direito.
Firma-se, por essa razão, a noção de que a revisibilidade dos julgados inconstitucionais, para além dos condicionantes da ação rescisória, é uma necessidade do sistema, com vistas a assegurar a supremacia da Constituição.
Nesse contexto é que surge o art.475-L, §1º, do CPC, introduzido pela Lei n.11.232, de 22 de dezembro de 2005, cujo comando contém uma eficácia rescisória, pois permite que o executado, em fase de cumprimento de sentença, suscite a inexigibilidade do título executivo, decorrente de decisão acobertada pela coisa julgada material, porque fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas como incompatíveis com a Constituição Federal.
Com efeito, a existência de precedente do STF representa o diferencial indispensável a essa forma peculiar de rescisão do julgado.Admitir que qualquer julgador negue cumprimento a uma decisão, simplesmente invocando-a inconstitucional, significa eliminar por completo a coisa julgada e comprometer a segurança jurídica, pois o julgado restaria em perene instabilidade.
Para a maioria da doutrina o executado poderá se valer do dispositivo em comento, mesmo após o decurso do prazo decadencial da ação rescisória. A declaração de inconstitucionalidade implica a nulidade da lei ou ato normativo, a menos que, excepcionalmente, à decisão do STF não seja conferido efeito retroativo. A criação de um sistema de controle da coisa julgada inconstitucional implica um reforço ao princípio da segurança jurídica, visto não haver insegurança maior do que a instabilidade da ordem constitucional.
Referências
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[1]CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 16. ed. atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.144
[2]Art.5º, XXXVI, da CF: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”
[3]Nesse sentido: Luiz Guilherme Marinoni, Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Júnior.
[4]THEODORO JÚNIOR, Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro de. Reflexões sobre o princípio da intangibilidade da coisa julgada e sua relativização. In: NASCIMENTO, Valder do. DELGADO, José Augusto (Org.). Coisa Julgada Inconstitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2006. p.161-194.
[5]MENDES, Gilmar Ferreira. Coisa Julgada Inconstitucional: considerações sobre a declaração de nulidade da lei e as mudanças introduzidas pela nº 11.232/2005. In: NASCIMENTO, Valder do. DELGADO, José Augusto (Org.). Coisa Julgada Inconstitucional.Belo Horizonte: Fórum, 2006. p.87-103.
[6] Op.cit.p.42
[7]MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de conhecimento. 7.ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p.682/683
[8]NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6.ed. atual., ampl. e reform. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004., p.505
[9]Op.cit. p. 178
[10]RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Coisa Julgada Inconstitucional. Salvador: JusPODIVM, 2007, p.79
[11] Humberto Theodoro Júnior discorda da tese de que a relativização da coisa julgada dependerá de ponderação de valores constitucionais. Para ele, o princípio da Supremacia da Constituição sempre se sobrepõe sobre os demais. (op.cit, 2006, p.182).
[12]TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.p.93
[13] Nesse sentido: Luiz Guilherme Marinoni, Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Júnior.
[14]ZAVARSCKI, Teori Albino. Embargos à execução como eficácia rescisória: sentido e alcance do art.741, parágrafo único do CPC. In: NASCIMENTO, Valder do. DELGADO, José Augusto (Org.).Coisa Julgada Inconstitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2006. p.331-344.
[15] Para Fredie Didier Júnior é dispensável a resolução do Senado suspendendo a eficácia do ato normativo no controle difuso de constitucionalidade para a aplicação do art.475-L, §1º, do CPC, tendo em vista a eficácia ultra partes que o STF tem conferido às decisões proferidas nessa espécie de controle. (DIDIER JÚNIOR, Fredie. Impugnação do Executado (Lei Federal n.11.232/2005), p.63-94. Posicionamento minoritário, todavia.
[16]WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA, Miguel Garcia. Meios de impugnação das decisões transitadas em julgado. In: NASCIMENTO, Valder do. DELGADO, José Augusto (Org.).Coisa Julgada Inconstitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p.325
[17] Essa afirmativa é defendida por Humberto Theodoro Júnior, Juliana Cordeiro de Faria e Donaldo Armelin.
[18]Op.cit. p.126 128 .
[19]Op.cit. p.79
[20] Idem p. 372/373.
[21]ASSIS, Araken de. Eficácia da Coisa Julgada Inconstitucional. In: NASCIMENTO, Valder do. DELGADO, José Augusto (Org.).Coisa Julgada Inconstitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2006. P.330
Advogada da União, especialista em direito processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Gabriela Baracho. Da impugnação ao cumprimento de sentença - inexigibilidade do título executivo fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo STF: reflexões sobre a relativização da coisa julgada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jan 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45768/da-impugnacao-ao-cumprimento-de-sentenca-inexigibilidade-do-titulo-executivo-fundado-em-lei-ou-ato-normativo-declarados-inconstitucionais-pelo-stf-reflexoes-sobre-a-relativizacao-da-coisa-julgada. Acesso em: 22 nov 2024.
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