1. INTRODUÇÃO
A terceirização revela-se como um tema de extrema relevância no Direito do Trabalho. Pode ser entendida como a transferência de certas atividades periféricas do tomador de serviços, passando a ser exercidas por empresas distintas e especializadas.
Tratando-se de terceirização de atividade ou serviço pela Administração Pública, tem-se a figura do contrato administrativo, firmado com a empresa prestadora e precedido de licitação. Diante das peculiaridades que se insere a Administração Pública, a regra do concurso público e a responsabilidade administrativa, o fenômeno da terceirização é analisado de modo distinto. Nesse contexto, o presente artigo tem por escopo analisar a evolução no entendimento do Tribunal Superior do Trabalho sobre a responsabilidade da Administração Pública, na qualidade de tomadora do serviço, quando o prestador de serviço for inadimplente nas verbas trabalhistas, à luz do que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal na ADC nº 04.
2.TERCEIRIZAÇÃO: CONCEITO E REQUISITOS
Antes de adentrar ao aspecto da terceirização na Administração Pública, cumpre estabelecer as balizas inicias sobre o fenômeno da terceirização e os seus requisitos. A terceirização surge com escopo de dinamizar os serviços das empresas, uma vez que há a contratação de força de trabalho sem o estabelecimento de relação jurídico-empregatícia com o trabalhador, ou seja, a empresa não executa o serviço diretamente por meio de seus empregados, mas contrata outra que realize juntamente com o seu corpo de trabalhadores o serviço sob a sua responsabilidade. Consoante Glaucia Barreto, a terceirização consiste:
na possibilidade de contratar terceiro para a realização de atividades que não constituem, em regra, o objeto principal da empresa. Em princípio, a vantagem da terceirização está na possibilidade da empresa contratante centralizar seus esforços na atividade-fim ou principal, deixando as atividades secundárias ou meio para um terceiro realizar. [1]
Conforme ensina Rogério Neiva[2], existe um triangulo jurídico no qual dois vínculos de natureza jurídica e um de natureza econômica são estabelecidos. Com efeito, entre o trabalhador e o prestador existe uma relação empregatícia, já entre o prestador e o tomador pode ocorrer uma relação contratual-civil ou um contrato administrativo. Por sua vez, a relação entre o tomador e o trabalhador é estritamente econômica. Segundo os ensinamentos de Maurício Godinho Delgado:
Para o Direito do Trabalho terceirização é o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente. Por tal fenômeno insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a este os laços justrabalhistas, que se preservam fixados com a entidade interveniente. [3]
Nesse contexto, três pessoas são envolvidas na relação jurídica firmada por meio da terceirização: o trabalhador, a empresa prestadora e a empresa tomadora de serviços.
Os requisitos da terceirização não são estabelecidos pela legislação. Deste modo, o Tribunal Superior do Trabalho, por meio da Súmula 331, estabeleceu os requisitos para a terceirização ser considerada lícita.
Inicialmente, o serviço prestado pelos terceirizados devem estar inseridos dentro da atividade meio ou secundárias da empresa, como ocorre com o serviço de limpeza e vigilância, desde que não haja pessoalidade e subordinação direta. Essa compreensão foi inserida nos incisos I e III da Súmula 331 do TST[4]. Destarte, o poder diretivo do empregador-prestador não pode ser transferido ao tomador do serviço, sob pena de configuração de terceirização ilícita. O empregado apenas encontra-se subordinado à empresa intermediadora e não à tomadora. Entre o trabalhador e a empresa tomadora não pode haver pessoalidade, ou seja, não pode existir uma condição pessoal daquele que presta o serviço.
3. TERCEIRIZAÇÃO ILÍCITA
A terceirização será considerada ilícita quando não forem observados os requisitos acima explicados, ou seja, quando não ocorrer serviço terceirizado através da atividade-meio ou secundária da empresa, bem como quando não estiver ausente a pessoalidade e a subordinação. Nesse ínterim, a consequência natural será a formação do vínculo direto entre o empregado e o tomador dos serviços, com base no princípio da primazia da realidade aplicado na seara trabalhista.
Cumpre salientar que, como regra geral, não é possível que um terceirizado requeira a equiparação salarial com um empregado da tomadora de serviços, haja vista a presença de prestadores diferentes. Ocorre que, uma vez constatada a terceirização ilícita, será possível o pleito de equiparação salarial com o paradigma da tomadora, desde que haja igualdade de funções.
4. TERCEIRIZAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: ANÁLISE DA ADC Nº 4º E DA SÚMULA 331 DO TST.
Existe a possibilidade de a Administração terceirizar serviços secundários. Há transferência integral de um serviço que está necessariamente inserto na atividade-meio do tomador.
Diante das peculiaridades que a Fazenda Pública encontra-se inserida dentro do ordenamento jurídico, os efeitos da terceirização serão diferenciados. O primeiro obstáculo encontrado encontra-se na situação na qual existe a ilicitude na terceirização com a consequência natural de formação do vínculo direto do empregado e o tomador de serviços, uma vez que, sendo o tomador a Administração Pública, existe a necessidade constitucional de concurso público, consoante artigo 37, II, da Constituição Federal, não sendo possível, deste modo, a formação de vínculo direto com a Administração Pública. Esse entendimento foi contemplado no inciso II da Súmula 331 do TST que assim dispõe:
SÚMULA 331 TST. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE. II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).
Conforme ensinamentos do doutrinador Maurício Godinho:
A Constituição de 1988 lançou uma especificidade no tocante aos efeitos jurídicos da terceirização efetuada por entidades da administração públicas direta, indireta e fundacional. É que a Constituição colocou a aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos como requisito insuplantável para a investidura em cargo ou emprego público, considerando nulo o ato de admissão efetuado sem a observância de tal requisito (art. 37, II e §2º, CF/88). [5]
O Tribunal Superior do Trabalho, diante da situação ora apresentada, tendo em vista a prejudicial situação do empregado, com base no princípio da isonomia, por meio da OJ 383[6], assegurou o direito dos empregados terceirizados às mesmas verbas trabalhistas legais e normativas asseguradas àqueles contratados pelo tomador dos serviços, desde que presente a igualdade de funções.
Aspecto de grande relevância e tema principal do presente artigo refere-se à responsabilidade da administração pública na qualidade de tomadora de serviços. Cumpre salientar que para existir a responsabilidade do tomador, será indispensável sua participação no polo passivo da fase de conhecimento e a presença no titulo executivo judicial, conforme redação do inciso IV da Súmula 331 do TST. Com efeito, o TST já entendeu que, caso o tomador não seja incluído no polo passivo da reclamação, haverá preclusão, sendo impossível futura reclamação trabalhista ajuizada em desfavor do tomador de serviços terceirizados. [7]
No que tange à responsabilidade da Administração Pública, na qualidade de tomadora de serviços, houve evolução da jurisprudência, até a chegada do entendimento atual.
O Tribunal Superior do Trabalho possuía entendimento inicial de que a responsabilidade subsidiária do tomador alcançaria a Administração Pública de forma irrestrita, justificando seu entendimento no artigo 37, §6º, da Constituição Federal que consagra a responsabilidade civil do Estado. Esse entendimento havia sido positivado no inciso V da Súmula 331 do TST.
Ocorre que, o artigo 71, §1º, da Lei 8.666/93 aduz que a Administração Pública não responde pelos encargos trabalhistas do contratado, ou seja, a inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento. Ademais, o artigo 37, §6º, da Constituição Federal trata sobre a responsabilidade civil extracontratual do Estado, nada tendo a ver com a responsabilidade contratual estabelecida pelo artigo 71, §1º, da Lei 8.666/93.
Diante do conflito estabelecido, qual seja, o entendimento do TST da aplicação irrestrita da responsabilidade subsidiária da Administração Pública e o artigo 71, §6º, da Lei 8.666/93, governador do DF à época, diante da controvérsia judicial, ajuizou uma ADC, tendo por objeto o art. 71 da Lei 8.666/93. Importante também destacar que fora questionado que o TST estava afastando a aplicação do artigo 71, §1º, da Lei 8.666/93 e, consequentemente, violando a cláusula de reserva de plenário (artigo 97 da Constituição Federal) e a Súmula Vinculante nº 10 do STF.
O STF, nessa ADC nº 16, entendeu que o artigo 71 seria constitucional, não tendo a Administração responsabilidade, a princípio.
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. Subsidiária. Contrato com a administração pública. Inadimplência negocial do outro contraente. Transferência consequente e automática dos seus encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes da execução do contrato, à administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art., 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666/93. Constitucionalidade reconhecida dessa norma. Ação direta de constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto vencido. É constitucional a norma inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995.[8]
De acordo com esse novo entendimento do TST, o simples fato da entidade dever algo a seus empregados não atrai, por si só, a responsabilidade da Administração. Deve, outrossim, ser demonstrada a sua culpa “in vigilando” ou “in elegendo” (Ex: não licitou quando era pra licitar; não fiscalizou uma execução que era precária etc.), casos em que haveria responsabilidade subsidiária da Administração tomadora (principal ou solidária, jamais).
Com isso, o TST modificou o seu entendimento e acrescentou o inciso V à Súmula 331, compatibilizando o seu entendimento com o que fora decidido em sede de controle concentrado de constitucionalidade.
Sumula 331, V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
No que tange aos convênios celebrados com a Administração Pública, o debate acerca da aplicação ou não da Súmula 331 do TST também foi travado no Tribunal Superior do Trabalho. Com efeito, o TST adotou a tese de aplicação da referida súmula aos convênios, no tocante à responsabilidade subsidiária.[9]
Não se pode deixar de diferenciar a terceirização do contrato de empreitada. Nesse contexto, o contrato de empreitada ocorre quando uma das partes se obriga a realizar uma obra específica, recebendo um valor contraprestacional do dono da obra para assumir os riscos respectivos, executando os trabalhos pessoalmente ou por intermédio de terceiros.
O entendimento do TST em relação aos contratos de empreitada, consubstanciado na OJ nº. 191 do TST[10], é no sentido de excluir a responsabilidade do dono na obra, por ausência de previsão legal, excepcionando apenas a hipótese de o dono da obra ser empresa construtora ou incorporadora, que certamente não é o caso do ente público.
Portanto, o Poder Público, na condição de dono da obra, não se confunde com o fenômeno da terceirização, e, por conseguinte, não possui qualquer responsabilidade sobre os débitos trabalhistas do contratado.
5. CONCLUSÃO
A terceirização no âmbito da Administração Pública recebe um tratamento diverso do que ocorre com as empresas privadas. Primeiramente, porque é impossível o reconhecimento do vínculo empregatício em face do ente público, diante de um óbice instransponível: prévia aprovação em concurso público. Ademais, enquanto as empresas privadas tomadoras de serviços respondem subsidiariamente pelas dividas trabalhistas inadimplidas do empregador, os entes públicos possuem regra especifica no artigo 71, §1º, da Lei 8.666/93, pelo qual a inadimplência do contratado, com referencias aos encargos trabalhistas, não transfere à Administração a responsabilidade pelo seu pagamento.
Não obstante previsão em lei federal, o TST ignorava essa regra e aplicava o mesmo regime de responsabilidade subsidiária das empresas privadas ao Poder Público. Assim, foi ajuizada ADC nº 16 no STF, em cujo julgamento entendeu-se que a mera inadimplência do empregador não enseja a responsabilidade subsidiária da Administração, reconhecendo-se, portanto, a constitucionalidade do §1º do artigo 71 da Lei 8.666/93.
Tal artigo afasta a responsabilidade do Poder Público, estando dentro da liberdade de conformação do legislador. O TST, após o entendimento do STF, modificou o inciso V da Súmula 331 afirmando que a responsabilidade não decorre do mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regulamente contratada, podendo, entretanto, o Estado ser condenado a pagar as dívidas trabalhistas do empregador, desde que haja a culpa “in vigilando”, ou seja, desde que seja provada a conduta culposa da Administração Pública notadamente diante da má fiscalização. Ademais, necessário que haja a participação da Administração na relação processual e que conste também do título executivo judicial.
REFERÊNCIAS:
BARRETO, Glaucia. Curso de Direito do Trabalho. Niterói: Impetus, 2008.
DELGADO, Maurício Godinho. Curdo de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 14ª ed, 2015.
NEIVA, Rogério. Direito e Processo do Trabalho aplicado à Administração Pública e Fazenda Pública. São Paulo: Método, 2ª ed, 2015.
STF - ADC: 16 DF, Relator: Min. CEZAR PELUSO, Data de Julgamento: 24/11/2010, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-173 DIVULG 08-09-2011 PUBLIC 09-09-2011.
TST - AIRR: 360620105030027 36-06.2010.5.03.0027, Relator: José Roberto Freire Pimenta, Data de Julgamento: 28/09/2011, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 07/10/2011.
TST - RR: 5123220115030149, Relator: João Oreste Dalazen, Data de Julgamento: 15/04/2015, 4ª Turma, Data de Publicação: DEJT 24/04/2015.
[1] BARRETO, Glaucia. Curso de Direito do Trabalho. Niterói: Impetus, 2008, p.94.
[2] NEIVA, Rogério. Direito e Processo do Trabalho aplicado à Administração Pública e Fazenda Pública. São Paulo: Método, 2ª ed, 2015, p. 67.
[3] DELGADO, Maurício Godinho. Curdo de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 14ª ed, 2015, p. 473.
[4] Súmula 331. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE. I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974). (...).III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
[5] DELGADO, Maurício Godinho. Curdo de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 14ª ed, 2015, p. 494.
[6] OJ Nº 383 DA SDI-I DO TST: A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com ente da Administração Pública, não afastando, contudo, pelo princípio da isonomia, o direito dos empregados terceirizados às mesmas verbas trabalhistas legais e normativas asseguradas àqueles contratados pelo tomador dos serviços, desde que presente a igualdade de funções.
[7] TST - RR: 5123220115030149, Relator: João Oreste Dalazen, Data de Julgamento: 15/04/2015, 4ª Turma, Data de Publicação: DEJT 24/04/2015.
[8] STF - ADC: 16 DF, Relator: Min. CEZAR PELUSO, Data de Julgamento: 24/11/2010, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-173 DIVULG 08-09-2011 PUBLIC 09-09-2011.
[9] TST - AIRR: 360620105030027 36-06.2010.5.03.0027, Relator: José Roberto Freire Pimenta, Data de Julgamento: 28/09/2011, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 07/10/2011.
[10] OJ 191. CONTRATO DE EMPREITADA. DONO DA OBRA DE CONSTRUÇÃO CIVIL. RESPONSABILIDADE. Diante da inexistência de previsão legal específica, o contrato de empreitada de construção civil entre o dono da obra e o empreiteiro não enseja responsabilidade solidária ou subsidiária nas obrigações trabalhistas contraídas pelo empreiteiro, salvo sendo o dono da obra uma empresa construtora ou incorporadora.
Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco em 2013.2; Pós Graduada em Direito Público pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus; Pós Graduada em Direito Administrativo pelo Instituto Elpídio Donizetti.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BORGES, Clarissa Pereira. Terceirização na Administração Pública: interpretação da Súmula 331 do TST e ADC nº 4 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jan 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45774/terceirizacao-na-administracao-publica-interpretacao-da-sumula-331-do-tst-e-adc-no-4. Acesso em: 22 nov 2024.
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