RESUMO: O presente trabalho trata-se de uma investigação científica sobre o ato de linchar, suas causas e consequências. O linchamento sempre existiu e faz parte da cultura dos povos; porém, nos últimos anos, o Brasil foi palco de uma epidemia de linchamentos. A partir de ampla pesquisa bibliográfica, vou demonstrar que isso ocorreu já que há uma grave crise de legitimidade da justiça pública que, diante do aumento da criminalidade, não conseguiu punir os infratores de forma lícita, permitindo que parte da população tomasse para si o controle do crime. Por fim, se essa realidade persistir, a justiça popular se tornará ainda mais frequente e mais violenta.
Palavras-Chave: Linchamentos. Crise. Justiça popular. Violência.
ABSTRACT: This work it is a scientific investigation into the act of lynching, its causes and consequences. Lynching has always existed and is part of the culture of the people; however, in recent years, Brazil has been the scene of a lynching epidemic. From extensive literature search, I will show that this occurred because there is a serious crisis of legitimacy of public justice in the face of rising crime, failed to punish offenders in a lawful manner, allowing the population to take to itself control the crime. Finally, if this situation persists, the popular justice will become even more frequent and more violent.
Keywords: Lynching. Crisis. Popular justice. Violence.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa explorar o fenômeno do linchamento. Historicamente falando, o ato de linchar sempre fez parte de todas as épocas, em todos os países, de formas semelhantes, porém por motivos diversos; ele faz parte da cultura de um povo ou de uma comunidade.
Diante do aumento do número de “justiçamentos” no Brasil, ao longo das décadas e principalmente nos últimos anos, em que esse objeto de estudo foi como nunca havia sido evidenciado pela mídia, de forma que o povo decidiu fazer “justiça com as próprias mãos”, procede o estudo de um fato social criticado por muitos, porém tolerado por grande parcela da população brasileira, cansada da sensação de impunidade que desencadeia o cometimento de um crime, seja ele “crime de sangue”, ou ainda crime contra o patrimônio.
Assim, a “justiça popular”, que existiu desde sempre e que hoje faz parte da vida do “cidadão de bem” que, diante do aumento incessante da criminalidade, e do descrédito dos órgãos oficiais, pratica um crime, que em essência é um protesto contra a situação que ora persiste.
Portanto, o propósito desta investigação científica é explicar o que é o linchamento; porque ele é tido como uma opção para parte significativa da sociedade; o que deve ser feito para que não mais o seja; e o que ocorrerá se a situação continuar como está.
Em 2014, o professor de história André Luiz Ribeiro foi confundido com um ladrão em São Paulo, espancado e só conseguiu escapar depois de dar uma aula sobre Revolução Francesa a um dos bombeiros que o resgataram; um adolescente foi espancado e preso nu a um poste na Rua Rui Barbosa, no Flamengo, no Rio de Janeiro. A foto dele foi postada em redes sociais e também capa da revista “Veja”. Já a dona-de-casa Fabiane Maria de Jesus não teve tanta sorte: foi morta no Guarujá, em São Paulo. (DÁGOSTINO, 2014)
Diante desta realidade absurda, urge tratar acerca do justiçamento, que claramente não é uma forma de resolução de conflitos, e sim demonstra ser atualmente mais uma problemática social.
2 O FENÔMENO DO LINCHAMENTO
O linchamento é, de per si, uma forma de execução sumária. O que o torna único é o fato de ser espontâneo e não-organizado; ou seja, um grupo se forma, para “punir” pessoas tidas como criminosas, e logo após é dissolvido. Para muitos, é um ato irracional. Porém, o presente trabalho irá tratá-lo como um sintoma da anomia (ineficácia das leis) e uma resposta popular à crise social que se manifesta.
Portanto, o justiçamento popular é racional para aqueles que, descrentes da justiça oficial, em uma ação coletiva, resgatam a “justiça primitiva”, a “ordem primária”, com o intuito de fazer imperar o que eles vislumbram ser justo. No entendimento de Martins, o linchamento é uma tentativa de “consertar” a sociedade e colocá-la no rumo certo. (2015, p. 65)
A escritora Jacqueline Sinhoretto, em sua obra, demonstra a origem do termo. Segundo Sinhoretto (2002 apud BENEVIDES; FERREIRA, 1982, p. 96): “Atribui-se a origem da palavra a Charles Lynch, fazendeiro da Virgínia, líder de uma organização privada que visava punir criminosos e legalistas, durante a Revolução Americana”.
Nessa esteira, quanto ao conceito, Benevides citada por Sinhoretto et al. (1982, p. 96):
Ação violenta coletiva para a punição sumária de indivíduos suposta ou efetivamente acusados de um crime – do simples furto ao assassinato – ou, em certas regiões, identificados com movimentos ou estigmas de ordem política e racial. Caracteriza o linchamento a natureza de vingança, além da “justiça” punitiva (geralmente acompanhada de métodos de tortura), à margem de julgamentos ou normas legais.
Em suma, o ato de linchar é uma recusa à anomia e uma afirmação da ordem. O que percebemos é que se trata de um fenômeno propriamente urbano, muito embora também ocorra em cidades pequenas e em áreas rurais, e que tanto pode ocorrer motivado por “crimes de sangue”, quanto por outros crimes contra a pessoa e contra o patrimônio.
Assim, na periferia dos grandes centros urbanos e em cidades menores, os linchamentos são praticados por pessoas que se conhecem, e que normalmente são moradores daquela comunidade. Nesses casos, a justiça popular ocorre para devolver a paz à localidade, após esta ser palco de um crime de sangue. Em contrapartida, nas grandes cidades, quem lincha nem sequer se conhece, e são motivados por crimes contra a propriedade.
Segundo Sinhoretto, “o linchamento é uma maneira de punição que se contrapõe às instituições do Estado”. (SINHORETTO, 2002, p. 41) Esse entendimento procede, isso porque um terço dos justiçamentos ocorrem em repartições públicas (delegacias ou Fóruns, por exemplo) ou quando o linchado já está sob a custódia de agentes públicos. (SINHORETTO, 2002, p. 41)
Portanto, a justiça popular advém da percepção da ineficácia das instituições, seja em punir os infratores, seja conter o avanço da criminalidade e, a partir do entendimento de a justiça pública não ser eficiente, deveria haver o retorno à justiça primitiva. A contrario sensu, muitas vezes os próprios agentes públicos apoiam ou não neutralizam o ímpeto dos linchadores.
Dando continuidade, em metade dos linchamentos a vítima é resgatada pela polícia, muito embora a regra é que os participantes destes não sejam presos ou julgados, seja por ser uma ação coletiva (e isso dificulte a identificação de seus sujeitos), seja porque as autoridades públicas, formadas antes de tudo por homens e mulheres, prefiram não prender esses infratores, talvez por ver no justiçamento a sua própria legitimidade. (MARTINS, 2015, p. 52)
Quanto a porque os linchamentos acontecem, segundo Martins, a primeira hipótese é que a população lincha para punir, já que o linchado foi de encontro às concepções do povo (do certo e do justo) e viola seus direitos (como o direito à propriedade). Outra hipótese é que a justiça popular é uma forma de participação democrática, com o intuito de construção (ou desconstrução) da sociedade. (MARTINS, 2015, p. 27)
Assim, é uma forma de afirmação de valores sociais. “O linchamento não é uma manifestação de desordem, mas de questionamento da ordem”. (MARTINS, 2015, p. 27) Nós observamos que, embora no Brasil a aplicação da pena de morte seja exceção (apenas em caso de guerra declarada), o povo a aplica quando lincha, e acredita nela como forma de punição, quando a lógica do Estado Democrático de Direito é garantista.
Nesse interim, o aumento do número de crimes, ao lado da insuficiência das instituições oficiais; a mídia sensacionalista, que explora os crimes bárbaros até o seu total esgotamento, que passam a ter grande repercussão e, com isso, grande clamor social; levam ao aumento da sensação de insegurança e de impotência, e faz surgir na população o sentimento de que, se não tomar para si a execução da “justiça”, quem o fará?
Portanto, o que os linchadores almejam é reestabelecer a ordem. Entretanto, o que atualmente se pode perceber, em especial no Brasil, é que o linchamento como forma de obtenção da justiça é uma tentativa fracassada. Isso porque o linchamento também é uma forma de violência, embora seja uma violência coletiva; é uma forma de execução sumária, que vitimou pessoas inocentes, que nem sequer haviam infringido a lei.
Nessa esteira, o cientista social José de Souza Martins, a partir de sua pesquisa afirma que, “nos últimos 60 anos, cerca de um milhão de brasileiros participou de, pelo menos, um ato de linchamento ou de uma tentativa de linchamento”. (MARTINS, 2015, p. 11)
Além disso, segundo o autor, esse dado alarmante demonstra que, no ato de linchar, há um “efeito multiplicador”, em que nos locais em que ocorreram um linchamento, facilmente ocorrerá outro. Por conseguinte, em vez de um fato anômalo, o justiçamento popular está adquirindo viés de “fato social da vida”, compondo a realidade social brasileira. (MARTINS, 2015, p. 11)
Como também, o que os cidadãos sentem, principalmente os moradores das regiões periféricas dos grandes centros urbanos, é que a justiça pública não opera naquele lugar, embora o medo e a violência façam parte do cotidiano. Sinhoretto levanta essa questão: será que não existe legitimidade na justiça popular, ao passo que a justiça oficial é inacessível e ineficaz? (SINHORETTO, 2002, p. 25)
Por isso, há quem vislumbre legitimidade em iniciativas privadas de resoluções de conflitos, sejam elas linchamentos, crimes por encomenda, justiceiros ou grupos de extermínio.
3 TIPOLOGIA E CARACTERÍSTICAS
As características do linchamento são: a imprevisibilidade, a temporalidade, a impunibilidade e a anomicidade. Proponho essa caracterização, a partir do entendimento dos autores. Segundo Martins, o linchamento é, quase sempre, imprevisível, principalmente os que estão sendo noticiados no Brasil nos últimos anos. Eles advêm da revolta popular diante de um crime contra a pessoa ou um crime patrimonial. O popular, muitas vezes sem ter conhecimento de causa acerca do fato, une-se aos demais, motivado pelo sentimento de punir, da forma mais primitiva, o linchado.
Com isso, o que se consegue perceber é que, diante da ocorrência do crime de furto, roubo, incesto, estupro ou homicídio, mesmo diante da discrepância quanto ao bem jurídico lesado, de acordo como Direito Penal, ao lado da inoperância das instituições e da sensação de impunidade, o julgamento popular determina que a condenação é a mesma: o linchamento. (MARTINS, 2015, p. 29)
Enquanto isso, Sinhoretto atenta para a temporalidade como característica do ato de linchar, pois o cidadão que participa do linchamento acredita que a justiça oficial é lenta, muito morosa, e o ímpeto de “fazer justiça” não permite esperar que o Estado puna o infrator de acordo com a lei. A bem da verdade, esse pensamento é correto. Diante do grande número de recursos que todo aquele que é acusado tem direito, demoram-se anos até que a sentença definitiva e a condenação aconteçam. (SINHORETTO, 2002, p. 136)
Ao passo disso, quem lincha pensa que o Estado não pune de fato o infrator, diante de benefícios como fiança, liberdade provisória, livramento condicional, indulto, graça, anistia, regime semiaberto e aberto. Nesse interim, entra a justiça popular que, para grande parte da população brasileira, em virtude da lentidão do sistema e do sentimento de impunidade para com quem comete o crime, detém a sua própria legitimidade.
Além disso, em cidades pequenas ou localidades periféricas, diante de um crime de sangue, a culpabilidade do indivíduo impossibilita a convivência com o “culpado”. De acordo com Sinhoretto, esse tipo de crime implica em uma reação rápida, que retire o transgressor da intensa convivência local. O povo que reside naquele local, de frente a essa situação, não vislumbra outra instância para executar a punição (SINHORETTO, 2002, p. 186).
Quanto à impunibilidade, segundo Martins, é amplamente conhecido que, quando se trata de um linchamento, raramente há a abertura de um inquérito ou a oitiva de uma testemunha, ou seja, raramente a polícia consegue levar tais inquéritos a termo. Isso porque a própria autoridade reconhece como legítimo o justiçamento, ou ainda tais testemunhas, se existem, preferem não se indispor contra a comunidade responsável pela violência, a que muitas vezes pertencem (MARTINS, 2015, p. 29).
Segundo Sinhoretto, já que a justiça popular é um crime coletivo, é muito difícil a identificação de quem propriamente cometeu o linchamento e de possíveis testemunhas. É um “crime anônimo”. Observamos a anonimidade, pois a tendência é que, diante de um crime, forme-se um grupo que pratica o linchamento, e depois este rapidamente se disperse. (SINHORETTO, 2002, p. 189)
No entendimento de Martins, os linchamentos podem ser classificados como formas de comportamento coletivo, de protesto popular, ao lado dos saques, dos que-quebras e das ocupações rurais e urbanas. Em síntese, são formas de violência coletiva. No Brasil, eles existem desde o século XVI. (MARTINS, 2015, p. 21)
Quanto à tipologia, os linchamentos podem ser urbanos ou rurais, bem como anônimos ou comunitários. Segundo Martins, citado por Sinhoretto et al. (2002), há divergência nos casos que ocorrem nas periferias das capitais e nos que ocorrem no interior. Isso porque, na periferia, os participantes são pobres trabalhadores, motivados por um crime grave, ao passo que nas pequenas cidades quem participa é a classe média, em protesto às instituições judiciárias e policiais, ou seja, com uma motivação conservadora e repressiva.
Benevides, citada por Sinhoretto et al. (1982), distingue os linchamentos em anônimos e comunitários. Os anônimos são formados por pessoas que não foram diretamente afetadas por ele, que muitas nem sabem como se iniciou, mas que se deixam levar pelo sentimento de “pega-ladrão”. Estes ocorrem comumente em bairros de classe média.
No entendimento de Maria Victoria Benevides e Rosa Maria Fischer Ferreira, “o motivo imediato para a maioria das reações violentas é o assalto contra assalto a residência, a estabelecimentos comerciais ou a pessoas na rua” (BENEVIDES; FERREIRA, 1983, p. 231).
Infelizmente, via de regra, foi esse tipo de linchamento de vitimou mais de cinquenta pessoas, só no primeiro semestre do ano de 2014. As redes sociais e a mídia sensacionalista foram coadjuvantes em causar um sentimento de histeria na população brasileira, que passou a acreditar e praticar o seguinte lema: “bandido bom é bandido morto”. Além disso, há vários relatos de vítimas inocentes, que nem sequer haviam cometido o crime, mas que mesmo assim foram consideradas culpadas, julgadas e condenadas pela população (D’AGOSTINO, 2014).
Enquanto isso, não menos importantes, os linchamentos comunitários ocorrem nas periferias das grandes metrópoles e em cidades pequenas, por um grupo facilmente identificável, composto por vítimas diretas do linchado. Esses linchamentos foram objeto de estudo de muitos sociólogos, já que são praticados por pessoas que se conhecem, que detém entre si muitas vezes graus de parentesco e fortes relações de vizinhança.
Portanto, são pessoas que sempre moraram naquele lugar, que sentem que pertencem a ele; que desenvolveram laços de amizade e confiança com seus vizinhos, que muitas vezes também são seus familiares. Segundo Maria Victoria Benevides, “os crimes sexuais são os que mais motivam os linchamentos ‘comunitários’”. (BENEVIDES, 1982, p. 99)
4 VIGILANTISMO
O vigilantismo é um fenômeno diverso do linchamento, mas que muitas vezes é confundido com ele. De acordo com Brown, citado por Little e Sheffield, citado por Sinhoretto et al. (2002), vigilantismo é o envolvimento popular no controle do crime, que o toma em suas mãos, já que não crer na eficiência do sistema de justiça criminal oficial.
Portanto, o vigilantismo é uma resposta popular a um sistema de justiça inoperante. Caracterizando-o, Johnston citado por Sinhoretto et al. (1996), demonstra que a vigília popular envolve planejamento e premeditação; além disso, é composta por cidadãos particulares voluntários, tomando formas de movimento social, que pode vir a usar ou ameaçar usar de violência.
Ademais, esse movimento cresce quando a ordem estabelecida é ameaçada de ser transgredida, e almeja o controle do crime, para oferecer segurança e pacificação a quem dele participa e àquela localidade.
No que tange à América Latina, Martha Huggins estudou e escreveu, dissecando por completo o tema. Segundo Huggins, citado por Sinhoretto et al. (1991), nos países latinos, incluindo o Brasil, os vigias populares agem por meio de esquadrões da morte, justiceiros, linchamentos, forças paramilitares e violência policial.
Já a sua motivação advém da necessidade de segurança da população e transparência nas instituições. O vigilantismo latino tanto pode ser espontâneo, como é o caso dos linchamentos anônimos, como organizado, que são os grupos de extermínio, compostos por agentes públicos, ou seja, com o envolvimento estatal.
Por fim, ao lado dos linchamentos, observamos atualmente no Brasil a crescente ação de justiceiros, que executam tanto inocentes, quanto culpados, por diversos delitos, em especial roubos, muitas vezes em coautoria com comerciantes, vítimas frequentes de assaltos, e até mesmo a conivência da força policial local. Também se trata de uma resposta do povo à sensação de insegurança e ao aumento da criminalidade, em detrimento da insuficiência da justiça pública.
5 A JUSTIÇA POPULAR
Na literatura internacional e nacional, o linchamento é tido como um tipo de justiça popular. Em nosso país, o linchamento é uma manifestação popular, vista como legitima até por autoridades públicas, como delegados e prefeitos, já que seus participantes defendem a honra da localidade na qual residem.
Nas palavras de Sinhoretto, “o linchamento surge como revolta contra o crime, a insegurança e contra o funcionamento do sistema de justiça pública”. (SINHORETTO, 2002, p. 98)
Na visão de quem lincha, a justiça opera diferentemente entre ricos e pobres. Por não ser a justiça oficial igual para todos, por exemplo, os linchamentos comunitários ocorrem nas comunidades mais pobres, que são locais onde a polícia dificilmente soluciona os conflitos, já que estes não são uma prioridade, pois a polícia prefere usar seus recursos para interferir quando há um crime mais grave, ou um crime de grande repercussão na mídia. Diante disso, o que o povo quer é participar da justiça; ele reivindica-a para si, pois há a sensação de que a justiça pública inexiste.
Sobre como acontecem os linchamentos, de acordo com o entendimento de Martins, ainda que presentes as circunstâncias que poderiam desencadear o justiçamento, este poderia levar horas, dias ou semanas para acontecer e, muitas vezes, nem mesmo ocorrer. Embora seja lembrado pela sua espontaneidade, o linchamento advém da combinação de dois impulsos: a fase de julgamento popular do delito e a aplicação da pena.
Nessa vertente, o primeiro é a constatação da violação de uma norma social essencial, ou seja, o reconhecimento popular que um crime grave foi cometido. Tal reconhecimento é popular e nada tem a ver com leis ou códigos oficiais; ele decorre do sentimento popular. Ou seja, a gravidade do crime é aquela que o cidadão de bem, trabalhador, contribuinte, pai ou mãe, pensa que é. O povo tem e segue um código próprio, que é norteado pela sua própria visão de justiça. (MARTINS, 2015, p. 32)
Por isso mesmo, são vítimas de linchamentos aqueles que praticam furto. De acordo com a lógica topográfica do Código Penal Brasileiro, o furto não é um crime de grande gravidade. É um crime contra o patrimônio, não à pessoa. Todavia, o participante do linchamento vislumbra esse crime como um dos piores, passível de linchamento, pois para adquirir um bem, qualquer que seja ele, o indivíduo teve que utilizar de trabalho e vontade, e só quem agiu em prol disso merece gozar desse bem.
Em um país em desenvolvimento, onde a classe média baixa e média passou gozar de um direito de propriedade mais definitivo de uma década até o corrente ano, o crime contra o patrimônio detém grande gravidade, segundo o “código popular”.
De acordo com Martins, a fase de julgamento popular pode ser rápida, medida em minutos, ou lenta, ocorrendo após dias ou semanas, mas em geral é mais lenta que a segunda fase: a aplicação da pena. Essa fase tende a ser muito rápida, de cinco a vinte minutos, a depender de quantos participaram e do quantum de crueldade envolvida. (MARTINS, 2015, p. 32)
Quanto aos motivos que desencadeiam a justiça popular, tanto podem ser vingança ou descrença na justiça, ou ainda uma combinação dos dois, no entendimento de Martins (2015, p. 91 e 92). Esse ceticismo popular para com a justiça oficial tem origem no elitismo do Poder Judiciário; diante dele, o povo prefere fazer sua própria justiça, a recorrer aos órgãos oficiais.
A partir do entendimento de Martins (2015, p. 55):
O típico linchamento começa com a descoberta do autor de crime que o torna potencial vítima de linchamento, sua perseguição, apedrejamento seguido a pauladas e pontapés, às vezes com a vítima amarrada a um poste, mutilação física, castração em caso de crimes sexuais (com a vítima ainda viva) e queima do corpo. Essas são as sequências mais comuns da violência.
De acordo com Michel Foucault, citado por Daniel de Souza Lemos et al. (2014), a punição estava, no passado, vinculada a ideia de vingança. O progresso humano, ao longo da história, foi alterando essa lógica e o que era a vingança pessoal, ou do clã, passou a ser a vingança do corpo social, que pode ser representado por uma comunidade, ou pelo próprio Estado.
A punição passou a ser, então, uma resposta à agressão que agora era sentida por toda a sociedade. O que conseguimos observar, contemporaneamente, é o retrocesso a ideia de punição primitiva ou justiça privada.
Dando continuidade, estudando a vitimologia do justiçamento, de acordo com Martins, o linchado é alguém estranho ou que pratica atos socialmente estranhados pelos demais. A partir de então, ele é repelido e excluído. (MARTINS, 2015, p. 10)
Ainda de acordo com o autor, mais especificamente, 10,2% das vítimas são menores de idade; 43,8% são jovens de até 25 anos; 44,5% são adultos e 1,4% são idosos. (MARTINS, 2015, p. 57)
Assim, é perceptível que o grupo de jovens vítimas de linchamento é um pouco maior que o grupo de adultos e idosos. Segundo Martins, isso acontece já que o jovem está “mais na rua” que em casa, por isso, é mais exposto à violência. (MARTINS, 2015, p. 57)
Aparentemente, esse tipo de jovem foi estigmatizado socialmente como um “jovem desocupado”, sendo essa a vítima de quase todos os casos de linchamentos. O perfil do linchado é de alguém que exerce uma ocupação tida como inferior, tal como estudante, entregador de supermercado, servente de pedreiro, vigia, boia-fria, empregado de fazenda, catador de lixo, lavador de carros, biscateira, ajudante geral, boiadeiro, braçal, capataz de fazenda, caseiro de chácara, empregado de circo, faxineiro, grileiro, juiz de futebol, dona de bordel, etc.
Ao lado disso, algumas vítimas são integrantes da polícia, seja civil ou militar, ou seus familiares. Apenas 37,8% das vítimas são classificadas como delinquentes contumazes, o que demonstra que o linchamento pode ocorrer contra qualquer um. Quanto ao gênero, a predominância é do sexo masculino – apenas 4,3% são do sexo feminino. (MARTINS, 2015, p. 58)
Nos estudos de Martins, foi perceptível que em 7,8% dos casos, a vítima era inocente. Dentre elas, há um grupo de pessoas que não cometeram exatamente aquele delito, mas detém uma vida ou uma fama voltada para o crime, o que desencadeou a ira do grupo linchador. São pessoas conhecidas por ter uma conduta antissocial. Assim, essas pessoas são estigmatizadas por seus maus antecedentes; por isso, não são aceitas pela comunidade. (MARTINS, 2015, p. 10)
6 CRISE NA LEGITIMIDADE DA JUSTIÇA PÚBLICA
Os linchamentos nacionais detêm uma essência ritualística e são claramente punitivos, ou ainda, vingativos (2015, p. 26). No sentir de Martins, “os linchamentos constituem resposta ao que é a transgressão do limite do socialmente tolerável”. (MARTINS, 2015, p. 66) Segundo o autor, o linchamento advém da anomia, ou seja, da ineficácia das leis e das instituições oficiais.
De acordo com Martins, há quem pense que como o linchamento é um ato coletivo, cometido em via pública, aos olhos de todos, e por isso com a cumplicidade, voluntária ou não, dos populares que o presenciam, não é um crime (2015, p. 60). Por isso, seria uma das formas de comportamento coletivo, de protesto popular, ao lado dos saques, dos que-quebras e das ocupações rurais e urbanas (2015, p. 21).
Ainda segundo o autor, ao lado do linchamento sempre está presente o contra-linchamento, sendo este o movimento contrário dos que se opõem ao ato de linchar, por isso mesmo o responsável pelo índice de fracasso na justiça popular, representado pela proporção dos casos de salvamento das vítimas: 43,5% de salvos, em face de 44,7% de mortos e feridos (2015, p. 52).
No sentir de Santos, citado por Sinhoretto et al. (1995), as pessoas preferem solucionar seus conflitos a parte à justiça oficial quando desenvolvem mecanismos mais eficazes de resolução e prevenção de conflitos, já que a justiça estatal é cara, distante da realidade do conflito e muito lenta.
Sinhoretto defende que o ato de linchar é visto por uma parcela da população brasileira como legítimo. Com isso, observamos que não há consenso na nossa sociedade sobre a melhor forma de resolver litígios. Isso permite o surgimento de diversas práticas relativas à justiça, que divergem opiniões. (SINHORETTO, 2002, p. 57)
Ainda segundo a autora, isso permitiu a origem de práticas ilegais de justiça, sejam os justiceiros, sejam os atos de linchamento, contra às quais o Estado ainda não demonstrou métodos eficazes de repressão. Criou-se um ambiente propício para a epidemia de linchamentos, diante da descrença na solução estatal de conflitos. (SINHORETTO 2002, p. 58)
Por fim, Sinhoretto conclui que diante do choque entre a definição do que é justiça para o Estado e do que é justiça para um grupo ou classe, a resistência só pode ser feita por meios ilegais e anti-judiciários. Nesses casos, a quebra da lei pode significar necessariamente a luta por uma lei mais próxima do que seja considerado justo, e os meios privados de justiça resposta ao descontentamento com a forma com a qual operam os meios públicos. (SINHORETTO, 2002, p. 81)
7 LINCHAMENTOS BRASILEIROS EM 2014
O linchamento pode acontecer com qualquer um. Com a grande popularização das redes sociais, uma mídia sensacionalista e irresponsável e a revolta de grande parcela da população brasileira com a crueldade dos criminosos, qualquer pessoa do povo pode ser vítima do justiçamento popular.
No corrente ano, na capital de São Paulo, o professor de história André Luiz Ribeiro, um jovem de vinte e sete anos, praticava corrida a cerca de três quilômetros de onde residia. No dia do linchamento, ele ficou intrigado, porque percebeu que os transeuntes se afastavam dele.
Em momento posterior, dois homens, o dono de um bar que havia sido assaltado, acompanhado de seu filho, chegaram em um carro, desceram e começaram a espancá-lo. Segundo o dono do bar, havia sido ele o autor do assalto. O professor foi imobilizado, acorrentado e agredido. Somaram-se a eles um grupo de quinze pessoas (ou mais).
Por fim, só foi libertado e levado ao hospital quando chegaram os bombeiros, que só acreditaram na sua palavra após ele improvisar uma aula sobre a ascensão da burguesia. André foi detido por dois dias e solto após a decisão da Justiça. Por ora, sua prioridade é provar sua inocência. (D’AGOSTINO, 2014).
Como também, Fabiane Maria de Jesus, uma dona-de-casa de trinta e três anos, faleceu dois dias após sofrer espancamento no Guarujá, litoral de São Paulo. Ela sofreu traumatismo craniano e foi internada em estado grave. Inicialmente, existiu um boato em uma página de uma rede social, que afirmava que uma mulher sequestrava crianças, para utilizá-las em rituais de magia negra.
Segundo testemunhas, ela foi amarrada e agredida, pois foi acusada desse fato. A morte de Fabiane foi registrada no distrito policial da circunscrição, mas ainda não foram determinadas prisões. A polícia vai analisar as imagens da agressão para identificar os autores do crime.
A posteriori, o marido da vítima, o porteiro Jaílson Alves das Neves, relatou que foi postada uma foto parecida com a de sua esposa na internet, e esta foi confundida com a infratora. Bem como, afirmou que a vítima era portadora de transtorno bipolar, mas que passava por tratamento e nunca havia demonstrado agressividade.
Enquanto isso, o advogado de Fabiane, Airton Cinto, quer identificar e responsabilizar o autor do site, denominado Guarujá Alerta. No seu sentir, ele também foi responsável pelo crime, já que divulgou o boato e criou comoção no bairro. (ROSSI, 2014)
Porém, de todos os atos de linchamento noticiados no ano de 2014 no Brasil, o mais perverso foi o do jovem que teve seu o pescoço preso a um poste com uma tranca de bicicleta, no Rio de Janeiro. O adolescente morou nas ruas nos dois anos anteriores ao fato, já que foi expulso de casa, por ter furtado uma furadeira.
Na época do linchamento, ele contou à delegada que tinha mãe e dois irmãos menores. O pai morreu após se envolver com traficantes. Os assistentes sociais conseguiram localizar a sua avó paterna, mas ela não se interessou em recebê-lo. Ele admitiu à autoridade policial ter se envolvido com um furto de uma bicicleta, mas não revelou mais detalhes.
Prosseguindo, afirmou que no dia do justiçamento foi para Copacabana com três amigos, para se banhar no mar. Após passarem por uma academia ao ar livre, os jovens foram perseguidos por cerca de trinta pessoas. Alguns possuíam motocicleta e um estava armado com uma pistola.
Segundo ele, seus três amigos conseguiram fugir, em momentos diferentes. Ele foi agredido e ameaçado, enquanto era acusado de roubar bicicletas e praticar assaltos na região. O jovem foi alvo de agressões com capacetes, pontapés e humilhações. Seus acusadores eram jovens brancos de boa condição financeira. O único “pardo”, pediu desculpas depois.
Após as agressões, ele foi preso ao poste, quando achou que iria morrer. Ele foi socorrido por moradores do bairro do Flamengo, incluindo a artista plástica Yvonne Bezerra de Mello, criadora da ONG Projeto Uerê, referência em educação infantil.
Ao final, passou a morar em um abrigo. A diretora do abrigo o reconheceu e o auxiliou a prestar depoimento. A delegada mostrou fotos ao jovem, mas ele não conseguiu fazer um reconhecimento. (OLIVEIRA, 2014)
8 CONCLUSÃO
Por fim, constata-se que o presente trabalho atingiu seus objetivos: explorou o fenômeno do linchamento. A partir de ampla bibliografia, discutiu-se esse fato social, que urge atenção de estudiosos e autoridades, diante do grande número de linchamentos que ocorreram, principalmente no último ano no Brasil.
Ao final desse estudo, percebesse que o justiçamento popular tanto é um crime coletivo, segundo o Diploma Penal Brasileiro, como uma forma de protesto, segundo a Sociologia.
De fato, uma das maiores preocupações do brasileiro, atualmente, é a violência. O medo é um sentimento compartilhado por todos. A mídia contribui para tanto, utilizando o que pode se chamar de “sensacionalismo sangrento”, que causa histeria e revolta na população.
Então, o povo, temeroso e revoltado com esta realidade, de frente ao crime, une-se e tornasse juiz e executor. Para mudar essa realidade, as instituições oficiais terão que recuperar a credibilidade popular.
Por fim, não se controla o crime cometendo um; não se pune um infrator tornando-se um criminoso; não se faz justiça agindo arbitrariamente; não se muda uma realidade cruel criando mais um problema social; não se condena sem o devido processo legal.
REFERÊNCIAS
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Advogada, pós-graduanda lato sensu em Direito Penal e Processo Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MIRANDA, Ximena Silva Franklin de. Linchamentos: crime ou justiça popular? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 fev 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46060/linchamentos-crime-ou-justica-popular. Acesso em: 22 nov 2024.
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