“(...) a diversidade das nossas opiniões não provém do fato de uns serem mais racionais que outros, mas tão somente em razão de conduzirmos o nosso pensamento por diferentes caminhos e não considerarmos as mesmas coisas”. (DESCARTES, 2008, p.21).
RESUMO: O presente trabalho realiza, através de uma revisão bibliográfica, a análise de alguns aspectos relacionados ao exercício do direito de autodeterminação corporal, enquanto manifestação da liberdade individual, consagrada na constituição federal sob o postulado da dignidade da pessoa humana, discutindo, ainda, a possibilidade da intervenção estatal em atos de disposição que não afetem o direito de terceiros ou mesmo abalem o contrato social ou a ordem institucionalizada.
Palavras-Chave: Autonomia; Autodeterminação corporal; Supremacia do Interesse Público.
INTRODUÇÃO
Como decorrência direta da busca pela liberdade, têm-se defendido o direito de cada indivíduo de se determinar de acordo com suas próprias convicções morais, o que no plano político compreende o direito do indivíduo de escolher as normas pelas quais deseja se submeter. Estariam incluídos, nesse pensamento, o direito de determinar os rumos do próprio corpo, deixando nas mãos de cada um a decisão de viver, morrer, mudar, adquirir cicatrizes ou perder membros, conforme a conveniência dos titulares do direito. Consideram-se, nestes casos, afastadas as possíveis proibições pela aceitação das condutas em meio social e pelo bem-estar que elas produzem no indivíduo.
Existe, contudo, a compreensão de alguns de que a vida seria bem inviolável e indisponível para o indivíduo, independentemente de sua vontade o que impossibilitaria o exercício pleno da autonomia individual. Será, contudo, que um bem privado, que não afeta diretamente a terceiros ou ao pacto social pode ser objeto de ações estatais para sua proteção contra a vontade de seu titular? O sujeito não possui o direito a escolher as regras que vão reger seu próprio corpo?
Tal indagação é objeto do presente artigo e, para tanto, através do método bibliográfico, no primeiro capítulo será realizada uma breve análise de algumas concepções filosóficas acerca da liberdade enquanto autonomia, a fim de se encontrar a essência do instituto. No segundo capítulo, será analisada a possibilidade jurídica de disposição corporal, ao tempo em que no terceiro capítulo, será feita uma crítica às teorias do bem jurídico e da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, a fim de compreender quais são os aspectos fundamentais que têm autorizado a intervenção jurídico estatal na liberdade individual dos componentes de uma sociedade.
II. AUTONOMIA INDIVIDUAL
Não há como tratar o direito à autodeterminação corporal sem fazer uma breve retrospectiva da questão da autonomia no ocidente. Afinal, determinar-se significa, simplificadamente, escolher, exercer o livre arbítrio, significa agir de acordo com sua própria razão.
Este sempre foi, e provavelmente jamais deixará de ser, um dos assuntos mais fervorosos entre a maioria das sociedades ocidentais. Por óbvio, dizer-se livre é atrelar-se a ideia de poder fazer escolhas, inclusive contrariando as necessidades do ser. Apontar um indivíduo como livre é deixa-lo mais próximo de se tornar senhor de si mesmo, num arcabouço de sociedade que viveu atrocidades ligadas à escravidão e a agressividade da destituição das rédeas do próprio destino mediante a implementação da ditadura e de outros métodos de dominação.
Exemplos destas situações são diversas e não pararam nos escritos relacionados a momentos pretéritos a Lei Aurea. Ainda depois de sua vigência, os métodos de dominação do indivíduo pelo indivíduo se aperfeiçoaram, passou-se à “categoria” do trabalho escravo, instituiu-se a ditadura, aprisionam-se, até hoje, cidadãos hipossuficientes com a promessa de que a vida vai melhorar ou que algum benefício será instituído ou extinto.
Ser livre, na sociedade ocidental é muito caro, pois ainda é uma ideologia distante, ao menos para boa parte da população, e ser autônomo é muito mais que agir conforme a ordem imposta. Não fosse isso, a culpabilidade, no direito penal, não teria como pressuposto a autonomia do sujeito e o poder individual de atuar de outro modo. Isso nos compele a analisar brevemente o histórico da liberdade da sociedade ocidental, para que, após, seja possível a discussão sobre a autodeterminação corporal do sujeito.
II.I A concepção de autonomia no ocidente
Sem dúvida nenhuma, a liberdade individual corresponde a um dos temas mais refletidos e abordados da história da filosofia. A lista de pensadores renomados que se dignaram a discutir direta ou indiretamente sobre a liberdade é extensa. Alguns, inclusive, em mais de uma obra ou pensamento, outros aparentemente detiveram-se ao tema durante toda a vida. Podem ser citados como exemplo, sem maiores dificuldades, Immanuel Kant, Sartre, Heidegger, Hegel, Schopenhauer, Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Stuart Mill, Sócrates e Aristóteles.
Justamente pela variedade e quantidade de seus pensadores, não é possível dar à liberdade um único conceito. A partir do estudo da história e filosofia da humanidade, é perceptível que a compreensão de liberdade sofreu modificações diversas, adequadas a cada momento e a necessidade vividos pelas sociedades, mas sempre resguardando parte de sua compreensão originária.
Essa constante mudança, de acordo com Laura Souza Lima e Brito, consiste um óbice para que se construa um conceito fechado da liberdade[1]. Segundo a autora, “a concepção de liberdade é reflexão de uma concepção do homem, em determinado momento histórico”[2], podendo ser apontado, por sua vez, três momentos relevantes no estudo da liberdade: a antiguidade, a expansão do cristianismo, e a modernidade, porém por questões didáticas, o presente artigo somente abordará os pensamentos considerados de maior relevância para a conceituação da autonomia individual.
Iniciando pela antiguidade, mais detidamente à da Grécia antiga, nos sec. V e IV a. C., a palavra liberdade estava atrelada à ideia de autonomia do Estado, na medida em que o indivíduo livre seria aquele que pertencesse à uma polis livre, na condição de cidadão capaz de participação política e não escravo, visto que tal condição lhe dotava de ampla margem de discricionariedade em relação ao seu destino.
A liberdade autonomia era a capacidade do sujeito de se manifestar sobre este destino, negando-o ou aceitando-o. A condição de escravo retirava do homem sua condição de livre, pois dava a terceiro a possibilidade de gerir os acontecimentos de sua vida e lhe negava a esfera de indeterminação de sua conduta.[3] Em último caso, a liberdade de não aceitação do próprio destino, por parte do indivíduo, poderia ser exercida através da busca pela morte, sempre existiria a possibilidade de escolher essa última alternativa para fugir de um acontecimento iminente, cuja escolha, aparentemente, havia sido tolhida[4][5].
Em Roma, a liberdade do indivíduo também é indissociável do status de liberdade do Estado, em que pese já se reconhecesse a liberdade negocial entre sujeitos livres[6]. Segundo Celso Lafer[7], a liberdade romana estava atrelada à dimensão da ingerência estatal na vida do indivíduo. Justamente por isso, o autor assevera que esta liberdade consistia em fazer o que se queria, desde que respeitada a lei. Em suas palavras: “(...)os romanos, que diferenciavam juridicamente o status civitatis e o status libertatis, definiam a liberdade como faculdade natural de se fazer o que se quer com a exceção daquilo que se proíbe ou pela força ou pela lei.”[8]
Realizando um comparativo, nos tempos atuais, isso nos remete ao dispositivo constitucional, segundo o qual “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei”,[9] o que demonstra que tal concepção de liberdade não foi abandonada, mas apenas adequada, em suas devidas proporções e modelos culturais. O referido conceito parte de um raciocínio bastante próximo ao atual, que repercute, inclusive, nos limites da autodeterminação corporal, conforme se verificará mais adiante.
Ainda segundo Lafer, os romanos compreendiam que a liberdade, num Estado regido por leis, não poderia consistir em realizar o que bem se entende, com ações determinadas pelo âmago do sujeito, mas sim, que seria o direito de fazer o que a lei permitia que se fizesse.[10]
Na contemporaneidade, o marco da compreensão jurídica de liberdade no ocidente, sem dúvida alguma fora o filósofo Emmanuel Kant, segundo o qual, a liberdade é inerente a todo indivíduo racional.
Segundo Thaita Trevizan e Vellêda Neta, Kant teria apresentado a liberdade como sentido de autonomia, que comportaria dois aspectos diversos: o negativo e o positivo. O primeiro consistiria em não se submeter a intervenções externas a vontade do indivíduo (liberdade moral) e o segundo seria a possibilidade de agir conforme as normas de direito (liberdade jurídica)[11].
A vontade em Kant é a causalidade dos seres vivos racionais, ao tempo em que a liberdade seria a propriedade da causalidade que a permite ser eficiente, independentemente de causas externas que lhe afetem. A autonomia da vontade é propriedade pela qual ela é, para si mesma, sua lei, e, no caso de intervenções externas, não se poderia mais falar em autonomia, mas em heteronômia[12].
O traço marcante da teoria de Kant é o imperativo categórico, que consiste na inclinação humana para um agir em sentido de promover o bem. O autor acreditava numa espécie de intuição universal do bem que, embora não fosse uma lei que antecedesse a vontade e determinasse a vontade, seria alcançável por todos os seres humanos, a partir do uso da razão. Por meio do uso da racionalidade, todos os homens são capazes de vislumbrar as condutas que são boas e a mesma conduta que seja boa para o indivíduo seria boa para seus pares, em que pese tal lei seja criada pela vontade individual.
O indivíduo, para ser considerado livre, precisaria agir racionalmente, sem intervenções exteriores, afastando qualquer satisfação pessoal de suas ações que o impedissem de adotar do agir racional, respeitando sempre o dever-ser, ou seja, a liberdade dos demais componentes da sociedade.[13] Desse modo, é possível afirmar que a autonomia, ao contrário do pensamento de Laura Souza Lima e Brito, possui um conceito.
Assim, embora muitos pensamentos não tenham sido contemplados, pôde-se extrair uma essência do que seria a liberdade. A autodeterminação do sujeito consiste, justamente, em agir conforme as leis criadas pela sua vontade, atingidas através do emprego da razão, sem a interferência de elementos externos, a qual será a mesma para todas as esferas da vida humana, inclusive a determinação do que pode ser feito com o corpo.
III. DIREITO A AUTODETERMINAÇÃO CORPORAL
Dentre as formas do exercício de liberdade individual, existe o direito à disposição do próprio corpo ou a autodeterminação corporal que é o objeto deste trabalho e, portanto, necessita de uma conceituação e uma apreciação de sua atual situação jurídica.
O direito a disposição do próprio corpo não está expresso na Constituição Federal, mas deriva de uma interpretação sistemática das demais garantias formalmente postas no referido texto. A dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade do direito à liberdade, aliadas à possibilidade de disposição corporal, elencadas, respectivamente, nos arts. 1º, III, 5º, caput e 199, §4º, todos da Constituição, servem de fundamento para que se sustente a existência de um direito individual ao próprio corpo e a um direito a sua disposição. O tema é polêmico e envolve diversas discussões como a possibilidade de alguém se prestar à execução de ensaios farmacológicos, bem como em diversas outras situações a exemplo do direito ao aborto, à ortotanásia, ao suicídio, à heterocolocação em perigo consentida, dentre outros.
Luisa Neto, autora portuguesa, compreende o direito ao próprio corpo como uma derivação do direito à integridade física enquanto uma das vertentes de classificação dos direitos da personalidade. Estes últimos, se encontram em estreita ligação à pessoa e são os bens mais importantes, passíveis de apropriação jurídica. Em sua análise, Neto conclui que o corpo físico do ser humano tem sido tratado como inviolável, com a mitigação desta proteção apenas em situações nas quais se faz necessária a intervenção terapêutica e nos casos de doações de órgãos, não sendo passível de disposição sob contraprestação patrimonial.[14]
Neto ainda questiona a compatibilidade de valores instituídos a nível constitucional como a inviolabilidade da integridade física e moral ou da vedação da submissão à tortura, dos maus tratos e das penas cruéis ou degradantes com o direito à autodeterminação.[15]
Desde já, deve-se fazer uma ressalva acerca do referido pensamento, na medida em que não existe na constituição uma palavra sequer, afirmando que o próprio sujeito não pode, voluntariamente aviltar sua integridade física, se submeter voluntariamente a uma tortura ou a meios degradantes. Pelo contrário, a constituição respeita a liberdade e é mais coerente afirmar que a vedação constitucional, em verdade, dirige-se à prática de terceiros que visem executar estes atos, a priori, sem o consentimento do indivíduo.
Roxana Cardoso Brasileiro Borges somente admite a disposição corporal dentro de determinados limites e divide o direito ao próprio corpo em seis aspectos, para fins meramente didáticos, mas que traduzem as possíveis polêmicas em torno do assunto. São eles: o direito à doação de órgão, ao embelezamento, à mudança de sexo, à integridade física, à autolesão e a reprodução humana.[16]
Em relação ao direito à mudança de sexo, Borges assevera que esta não pode ser pensada pela literalidade do art. 13, do Código Civil, pois tal intervenção, “em vez de importar ‘diminuição permanente da sua integridade física’, permitirá àquela pessoa o pleno desenvolvimento de sua personalidade”, citando no bojo de seu trabalho a opinião de Ricardo Lorenzetti, o qual defende a prevalência do direito à liberdade de escolha do paciente, quando se tratar de casos difíceis.[17]
Sobre a autonomia individual em relação aos “crimes” de lesões corporais, afirma que as declarações de vontade permissivas a agressões que impliquem em mutilações ou cicatrizes não podem ser consideradas válidas por atentarem contra a dignidade da pessoa humana.[18]
Nesse aspecto, verifica-se uma certa contradição em relação à afirmativa da autora no que tange à possibilidade de mudança de sexo e a autorização dada para a prática de lesões corporais. Isso porque, na primeira situação, a mesma admitiria a intervenção médica em pessoas com pleno desenvolvimento mental, enquanto na segunda a autorização dada pela mesma pessoa (aquela em pleno gozo das faculdades mentais) caracterizaria uma afronta a dignidade da pessoa humana, porém, ambas as práticas são formalmente lesões corporais, cujas consequências adotadas são diferentes. Diante da mudança de sexo, permite-se o exercício da autonomia individual que compreende uma redução ou mutilação de membro, todavia, qualquer outra forma de mutilação ou condutas que provoquem cicatrizes não devem ser admitidas pelo ordenamento, ainda que praticadas mediante consentimento livre e esclarecido.
Observe-se que o conceito de dignidade da pessoa humana dado por autores como Ingo Sarlet é pautado na valorização individual incondicional e no reconhecimento da autonomia de todos os humanos, independentemente de cor, gênero, classe social, ou função que ocupa na comunidade[19]. Com isso, a ideia de dignidade persegue, antes de tudo, permitir que o sujeito, mediante o uso da razão, escolha os caminhos de sua vida, desde que não afronte o contrato social que ampara a sociedade, em outras palavras, desde que o exercício do seu direito não infrinja direito de terceiros. Por conta disso, não se vislumbra de que maneira as lesões corporais em geral, a amputação ou a provocação de cicatrizes, autorizadas ou mesmo requeridas pela “vítima” que goza de plenas faculdades mentais, possa ser considerada como contrária a tal postulado.
De igual maneira, não se consegue vislumbrar quais são os valores coletivos ou supra individuais que estão sendo desrespeitados diante do exercício da autonomia, ainda que a vontade individual seja a lesão de sua própria integridade física. Há sim, afronta à dignidade humana, quando, sem qualquer autorização do titular do bem jurídico, procede-se uma intervenção lesiva. Isso por que, o bem jurídico encontra-se em perigo, mediante o cerceamento de seu direito de escolha. É a conduta que retira do indivíduo a gerencia de sua vida, logo, retira a autonomia, coisifica o sujeito, negando sua dignidade.
É importante, ainda, destacar que práticas como tatuagens, cirurgias estéticas amplamente realizadas como rinoplastia, colocação de silicone, lipoaspiração ou a própria cirurgia de mudança de sexo, defendidas por Borges no curso de sua obra, compreendem, de alguma forma, uma lesão corporal, ou mesmo mutilações. Estas, por serem socialmente aceitas ou porque os fins a que se destinam são, supostamente, legítimos, não possuem o mesmo tratamento que as típicas lesões corporais. A lesão corporal, contudo, compreende a ofensa da “integridade corporal ou a saúde de outrem”, podendo ser considerada qualificada quando, entre outras hipóteses, resultar na incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta dias, debilidade permanente de membro, sentido ou função, bem como na perda ou inutilização de membro, sentido ou função[20]. Essa definição, por si só, autoriza a penalização de médicos que procederem cirurgias puramente estéticas em qualquer pessoa que não necessite dela com urgência, para ser salva.
Existe alguma razão para que a fratura consentida de um membro seja proibida e a alteração cirúrgica de seios ou nariz sejam permitidas, além do evidente interesse mercadológico nestas intervenções?
Sobre a autolesão, outra forma de disposição corporal apontada pela autora, explica Borges ser a exposição a dor, ao sofrimento ou a lesões, causadas pelo próprio sujeito cujo corpo está sendo objeto das ações “danosas”. Como exemplo, podem ser citadas as manifestações religiosas de auto-flagelação de “penitentes” católicos, os quais utilizam um instrumento conhecido como “maxixe”, na busca pelo perdão de seus pecados, ou ainda as ações de suspensão[21], da greve de fome[22] e a submissão a esportes violentos.[23]
A greve de fome, por sua vez, consiste no ato de privação da alimentação de um sujeito por opção própria, como forma de protesto. Quando realizada por muito tempo, tende a provocar a autodestruição do grevista, através da redução de suas imunidades e fragilização de seu corpo.
Tal privação é polêmica, pois coloca em debate o poder de autodeterminação individual em face do direito à saúde ou a vida. Para parte da doutrina, a intervenção forçada do sujeito que pratica a greve de fome em nome da proteção do direito à vida e à dignidade da pessoa humana,[24] ao tempo em que, em nome da mesma dignidade da pessoa humana e do direito à autonomia, há quem sustente a inadmissibilidade da nutrição forçada, enquanto os protestantes ainda estiverem conscientes.[25]
Atualmente, regulamentando a matéria, existem as orientações do Código de Ética Médica Nacional, nos termos do art. 51, da Resolução CFM nº 1.246/88, segundo a qual,
Alimentar compulsoriamente qualquer pessoa em greve de fome que for considerada capaz, física e mentalmente, de fazer juízo perfeito das possíveis consequências de sua atitude. Em tais casos, deve o médico fazê-la ciente das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de perigo de vida iminente, tratá-la.[26]
Nesse dispositivo do Código de Ética Médica percebe-se uma proteção mais acentuada da vida, em detrimento da liberdade individual, porém apenas em casos de perigo de vida iminente, o que pode ser considerado um avanço em relação à contemplação a liberdade individual do sujeito.
No caso das lesões corporais para práticas desportivas, verifica-se que algumas delas possuem um risco intrínseco como as famosas lutas de “MMA” e boxe, nas quais os participantes costumam quebrar o nariz do adversário, desferir pontapés e, na medida do socialmente aceitável, estas condutas não são punidas.
Após esta breve explanação, conclui-se que, o sistema brasileiro, em regra, optou pela vedação à violação do corpo, realizando pequenas exceções, pautadas na tolerância social, as quais devem ser somadas ao efetivo exercício do direito de escolha livre e consciente do sujeito. Além disso, parte da doutrina, conforme exposto supra, defende a possibilidade de disposição corporal com fins de entretenimento de outrem e para a promoção de benefícios à comunidade.
IV. EXISTE INTERESSE PÚBLICO SOBRE BEM INDIVIDUAL?
O bem jurídico a que se refere o título do presente capítulo é, por óbvio, o corpo humano, a integridade física e a vida. Não se persegue, porém, o questionamento de que existe um interesse público, a fim de preservar a segurança e a ordem social como um todo na intervenção estatal diante de condutas típicas que ocasionem lesões a tais bens jurídicos provocados por terceiros, ausente a anuência do portador do bem. Sem dúvidas, o Estado deve agir para que o exercício do direito, por parte de determinado sujeito, não importe em transgressão a direito de terceiros. Não obstante esse pressuposto, deve-se questionar se a lesão ao bem jurídico individual, provocada pelo portador do referido bem, merece intervenção do Estado quando tal conduta opera-se em consonância com a autonomia racional da suposta “vítima”.
IV. A questão da supremacia do interesse público
As intervenções penais e a delimitação de bens jurídicos mostram-se saudáveis quando não invadem a esfera privada do indivíduo e possuem por fundamento a manutenção da ordem social e do contrato social.
Existem, contudo, autores que fundamentam a indisponibilidade da vida e da saúde pessoal na função que esta vida e esta vitalidade exercem na sociedade em que fazem parte, o que não permitiria que o indivíduo dispusesse sobre sua própria vida e saúde, em que pesem existirem exemplos diversos no cotidiano de tais situações. O sujeito seria um prisioneiro de sua própria existência. Por conta disso, estaria o Estado autorizado a intervir sobre condutas de disposição corporal adotadas, inclusive em face de sujeitos maiores, capazes, em pleno gozo de suas faculdades mentais e em pleno exercício de sua autonomia.
Isso estaria fundamentado no princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado e na compreensão de que a vida de cada um dos cidadãos interessaria diretamente aos demais, em razão do princípio ético-filosófico da solidariedade.
Daniel Sarmento protagonizou a organização da obra “Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público”, questionando a concepção tradicional de existiria tal supremacia sobre o interesse privado.
O interesse público primário, nas palavras de Barroso, consistiria na obrigação do Estado de promover a justiça, a segurança e o bem estar-social, enquanto o interesse secundário seria o interesse da pessoa jurídica de direito público em relação à arrecadação e seus gastos.
O autor reconhece que o Estado tem o dever de assegurar a implementação dos direitos fundamentais, ainda que sejam individuais, segundo ele:
Em um Estado de direito democrático, assinalado pela centralidade e supremacia da constituição, a realização do interesse público primário muitas vezes se consuma apenas pela satisfação de determinados interesses privados. Se tais interesses forem protegidos por uma cláusula de direito fundamental, não há de haver qualquer dúvida. Assegurar a integridade física de um detento, preservar a liberdade de expressão de um jornalista, prover a educação primária de uma criança são, inequivocamente, formas de realizar o interesse público.[27]
Ainda, segundo Barroso, o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser considerado para solucionar a colisão entre o interesse público e privado, na medida em que:
(...) a dimensão mais nuclear desse princípio se sintetiza na máxima kantiana segundo a qual cada indivíduo deve ser tratado como um fim em si mesmo. Esta máxima, de corte antiutilitarista, pretende evitar que o ser humano seja reduzido à condição de meio para a realização de metas coletivas ou de outras metas individuais.[28]
Já com tais palavras é possível rechaçar qualquer intervenção estatal no âmbito de vida individual do sujeito que não afronte direta ou indiretamente terceiros ou a ordem social. Intervir na esfera privada da vida pessoal padece, pois de fundamentação jurídica, quando puder ser identificada na ação o exercício da autonomia.
Conforme aduz Alexandre Aragão, as concepções de origem anglo-saxônicas e oriundas da europa de interesse público sempre foram diferentes, posto que a primeira considerava-o ligado aos interesses individuais, enquanto que, na segunda, sempre foi considerada superior à totalidade dos interesses individuais.[29]
Na opinião do autor, ainda na atualidade, em lides que envolvem o interesse público genericamente invocados, ao entrar em cena outros valores positivados na constituição, o interesse do Estado sempre prevalece, o que, por ele é considerado um absurdo, corroborando o já tratado durante todo o curso do presente texto de que “não há um interesse público abstratamente considerado que deva prevalecer sobre os interesses particulares eventualmente envolvidos”. [30] Levanta o autor a necessidade de uma ponderação de interesses no caso concreto que pode pender ora em favor do interesse público, ora em favor de interesses privados.
É importante destacar que a discussão em torno do presente artigo não possui como foco outros direitos diversos da autodeterminação corporal, muito embora a obra apontada acima trate da supremacia do interesse público em face de todo e qualquer direito individual.
Ademais, em que pese o interesse público ser considerado ponderável em relação aos direitos individuais e quanto a isso se está de pleno acordo, em relação à intervenção ou supremacia do interesse público em face do exercício da liberdade individual que prescinda de atuação pública para sua implementação, cuja prática não venha a afetar direito de terceiros, considera-se inaplicável a ponderação de interesses.
V. CONCLUSÃO
Conforme se depreende da leitura do presente trabalho, fez-se uma análise de alguns aspectos jurídicos e filosóficos que envolvem a questão da autodeterminação corporal, iniciando-se por uma breve apreciação histórica em torno do conceito filosófico de liberdade no sentido de autonomia individual, passando-se para uma sintética abordagem em torno de algumas formas de disposição corporal e da compreensão de alguns doutrinadores nacionais e estrangeiros em torno da matéria. Ao final, realizou-se uma discussão da possibilidade de intervenção do estado em condutas privadas, tomando como parâmetro os elementos que fundamentam a questão da supremacia do interesse público sobre o privado.
Ao longo do primeiro capitulo, identificou-se que a compreensão de liberdade no sentido autonomia individual, pode ser considerada a capacidade do sujeito de determinar-se a partir de leis que obedecem sua própria vontade, sem a interferência de elementos externos ao seu ser.
Ao longo do segundo capítulo, pode-se verificar que a compreensão acerca das possibilidades de disposição corporal, ato máximo de exercício da liberdade individual não comporta entendimento uníssono entre os doutrinadores observados. Além disso, pode-se perceber que muitas condutas que em tese poderiam ser consideradas como delituosas são moralmente aceitas, motivo pelo qual são consideradas penalmente impuníveis.
Por último, a partir do terceiro capítulo, buscou-se reforçar o descabimento da interferência estatal na esfera privada do indivíduo em gozo de suas faculdades mentais e plenamente capaz de adotar medida autônoma, através da apreciação do conceito de bem jurídico enquanto valor necessário para a manutenção da ordem social.
Restou claro que a autodeterminação corporal constitui uma das formas de exercício da autonomia individual e, para que se faça plena, deve ser resguardada frente aos supostos interesses coletivos, uma vez que a dignidade da pessoa humana, postulado do Estado Democrático de Direito Brasileiro, tem como seus pilares a autonomia individual e a valorização do homem pela sua simples condição humana. Isso posto, considera-se vedada a coisificação do indivíduo, que restaria corrompido, caso a esfera privada individual fosse gerida pelo Estado com vistas à manutenção de interesse público.
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[1] BRITO, Laura Souza Lima e. Liberdade e Direitos humanos: fundamentação jusfilosófica de sua universidade. São Paulo; Saraiva, 2013, p.,37
[2] Ibidem.
[3] Idem, p.,43
[4] Idem, p.,42.
[5] Segundo Maria do Carmo, a liberdade poderia ser exercida através da morte. Com ela o indivíduo poderia fugir do destino vergonhoso. Isso permite que se remeta aos filmes de época, os quais ilustram muito bem essa realidade. Diversas são as representações artísticas que demonstram estórias e histórias pessoas que, para não abrir mão da liberdade, optou pela morte. É a escolha da morte em detrimento de uma vida indigna. FARIA, Maria do Carmo. A liberdade Esquecida: fundamentos ontológicos da liberdade no pensamento aristotélico. São Paulo: Loyola, 1995.p., 44.
[6] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. São Paulo: Atlas, 2003, p., 85.
[7] LAFER, Celso, Ensaios sobre a liberdade. São Paulo: Perspectiva, 2011, p.,18
[8] Ibidem.
[9] BRASIL, Constituição Federal, 1988, art. 5º, Inciso II.
[10] LAFER, Celso, Ensaios sobre a liberdade. São Paulo: Perspectiva, 2011, p.,18.
[11] P.114.
[12] Aula proferida pelo Professor Alexandre Rocha, na disciplina de Direito Penal Contemporâneo da Professora Maria Auxiliadora Minahim, na pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, em 08/12/2014.
[13] GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p., 10-23.
[14] NETO, Luisa. O direito fundamental à disposição sobre o próprio corpo (a relevância da vontade na configuração do seu regime). Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 450 – 451.
[15] Ibidem, p. 450-451.
[16] BORGES. Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de Personalidade e Autonomia Privada. 2ªed. São Paulo: Saraiva, 2007.p. 182-183.
[17] Ibidem, p.190.
[18] Ibidem, p. 194-195.
[19] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9ªed.rev e atual. 2ª tiragem. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
[20] BRASIL, Código Penal, art. 129, §§1º e 2º.
[23] Ibidem, p. 169-194.
[24] DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo:Saraiva, 2001.
[25] SÁ, Elida. Biodireito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.
[26]CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, Resolução nº 1246/88. Disponível em< http://www.portalmedico.org .br/resoluc oes/cfm/1988/1246_1988.htm > Acesso em 28 ago.2013.
[27] SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos versus Interesses Privados:Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005.p. XIV.
[28] Ibidem. p., Xvii.
[29] Ibidem. p., 03.
[30] Ibidem. p., 04.
Advogada. Mestre em Direito Público - Universidade Federal da Bahia. Professora de Direito Penal e Processo Penal da Universidade Católica de Salvador e da Fascal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Natália Petersen Nascimento. Autodeterminação individual: Pode o sujeito dispor do próprio corpo ou da própria vida? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 fev 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46064/autodeterminacao-individual-pode-o-sujeito-dispor-do-proprio-corpo-ou-da-propria-vida. Acesso em: 22 nov 2024.
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