RESUMO: Trata-se de trabalho que visa à análise das alterações trazidas pela Lei 13.245/16 ao Estatuto do Advogado, descrevendo-se as principais mudanças no que se refere à participação do advogado no inquérito policial. Inicialmente, estudam-se alguns princípios fundamentais no procedimento administrativo de investigação policiesco e, após, passa-se a uma breve apreciação da nova lei.
Palavras-chaves: inquérito policial; ampla defesa; advogado.
1) INTRODUÇÃO
A polícia judiciária, seja a Federal ou a Estadual, utiliza o inquérito policial (ou o Termo Circunstanciado, a depender do caso) como instrumento hábil a documentar a cadeia de atos e diligências realizados no âmbito de sua investigação criminal.
Ocorre que, com o decurso do tempo, uma parte da doutrina passou a questionar a eficiência do inquérito policial no controle da segurança pública, como se denota do “1º Colóquio de segurança pública”, realizado pela Associação Nacional dos Procuradores da República, ocorrido em 04 de dezembro de 2015, em Belo Horizonte/MG, no qual, dentre os temas debatidos, se destacaram as reflexões sobre o inquérito policial e a modernização da investigação policial no Brasil.
Certo é que, malgrado se discuta uma reforma (modernização ou extinção) do padrão atual da investigação policiesca e, de igual forma, dos seus instrumentos utilizados, é necessário que se constate o considerável grau de relevância do inquérito policial para os trabalhos da polícia judiciária, sendo alicerceado por diversos princípios e características que norteiam o seu exercício, a saber, a oficiosidade, a discricionariedade, o sigilo, a inquisitoriedade, entre outros extraídos do Código de Processo Penal.
Ademais, há de se considerar ainda que, além dos debates supramencionados, há questões concomitantes e diretamente relacionadas ao inquérito policial que demandam discussões bastante atuais pelos operadores do direito, doutrinadores e, sem dúvida, pelos Tribunais pátrios, como, por exemplo, a participação do advogado na tramitação do inquérito policial em face das garantias de seu(s) cliente(s) como investigado(s).
Nesse diapasão, mister se faz traçar algumas considerações acerca dessa controvérsia que já alcançou as Casas Legislativas quando da promulgação da Lei n. 13.245/06, a qual alterou alguns dispositivos da Lei n. 8.906/94 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil).
2) O INQUÉRITO POLICIAL E SUAS PECULIARIDADES
No inquérito policial, dentre os seus princípios ou características – como denominam alguns autores – há aqueles que se correlacionam diretamente com a participação do advogado e que, por conseguinte, geram diversos posicionamentos contraditórios.
Conforme as lições dos professores Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2012, p. 108):
O inquérito é inquisitivo: as atividades persecutórias ficam concentradas nas mãos de uma única autoridade e não há oportunidade para o exercício do contraditório ou da ampla defesa. Na fase pré-processual não existem partes, apenas uma autoridade investigando e o suposto autor da infração normalmente na condição de indiciado.
A inquisitoriedade permite agilidade nas investigações, otimizando a atuação da autoridade policial.
Com efeito, vê-se explicitamente o caráter inquisitivo do inquérito policial, que denota a concentração da atividade policial em uma única pessoa, qual seja, o delegado de polícia, e também que não se sujeita ao contraditório ou a ampla defesa, ressalvando-se o entendimento de uma corrente doutrinária minoritária, a qual sustenta a possibilidade da assistência e defesa do advogado como exercício de um direito fundamental.
Por outro lado, além da concentração das investigações nas mãos apenas da autoridade policial, importante ressaltar a característica da discricionariedade do inquérito policial, implicitamente prevista no art. 6º do Código de Processo Penal, adotada pela citada autoridade quando da presidência do inquérito policial, ditando o rumo das investigações da melhor forma que lhe condiz.
Com efeito, a investigação policial, reduzida ao termo do inquérito policial, necessita da característica da discricionariedade para que percorra um trilho que leve ao completo esclarecimento da autoria e materialidade delitiva, contudo, sem deixar de lado a possibilidade de o advogado (já constituído pelo investigado) requerer a adoção de diligências a fim de resguardar o direito de seu constituinte, podendo tal(is) solicitação(ões) ser(em) ou não atendida(s), a juízo da autoridade policial (art. 14 do CPP).
Até então, com estrita observância da Súmula Vinculante n. 14 e demais dispositivos processuais penais, constata-se uma harmonia – ainda que tênue – entre as garantias legais do advogado em detrimento da inquisitoriedade e discricionariedade da autoridade policial, apesar de ambos os operadores do direito – advogado e delegado – em muitas oportunidades se encontrarem em lados opostos no âmbito da investigação criminal.
No entanto, o sigilo interno das investigações policiais, ou seja, aquele imposto para restringir o acesso ilimitado ao inquérito policial por parte do indiciado e/ou seu advogado e que tem por objetivo assegurar a eficiência das investigações, origina um conflito acirrado e que toma graves proporções ao ponto de possibilitar o ajuizamento de medidas judiciais (mandado de segurança, habeas corpus, reclamação constitucional no Supremo Tribunal Federal), sem prejuízo ainda da responsabilidade do delegado de polícia por abuso de autoridade (Lei n. 4.898/65). Os doutrinadores Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar afirmam o seguinte (2012, p. 105):
Ao contrário do que ocorre no processo, o inquérito não comporta publicidade, sendo procedimento essencialmente sigiloso, disciplinando o art. 20 do CPP que “a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. Este sigilo, contudo, não se estende, por uma razão lógica, nem ao magistrado, nem ao membro do Ministério Público.
Desta feita, observa-se que há previsões na lei que permitem a atuação “satisfatória” do advogado já na fase investigativa, no entanto, outras atuações vão além das meramente citadas e, por originar uma colisão entre princípios e interesses, acabam por necessitar de provimentos legislativos hábeis a solucionar tais situações.
3) A PARTICIPAÇÃO DO ADVOGADO NO INQUÉRITO POLICIAL E A LEI N. 13.245/06
O Supremo Tribunal Federal aprovou a Súmula Vinculante n. 14, que dispõe:
É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
Como reforço ao texto sumulado, a Lei n. 13.245/16, recentemente publicada (e em vigência) em 12 de janeiro de 2016, alterou substancialmente alguns dispositivos da Lei n. 8.906/94, que dispõe acerca do Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, mais especificamente no Capítulo “Dos Direitos dos Advogados”, em seu art. 7º, passando a trazer a seguinte alteração:
O art. 7o da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 7º (...):
(...)
XIV - examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital;
(...)
XXI - assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração:
a) apresentar razões e quesitos;
b) (VETADO).
(...)
§ 10. Nos autos sujeitos a sigilo, deve o advogado apresentar procuração para o exercício dos direitos de que trata o inciso XIV.
§ 11. No caso previsto no inciso XIV, a autoridade competente poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências.
§ 12. A inobservância aos direitos estabelecidos no inciso XIV, o fornecimento incompleto de autos ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo implicará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente.
Com efeito, vê-se que a nova redação do inciso XIV, do art. 7º do Estatuto da OAB, acima transcrito, ampliou a atuação do advogado com relação à defesa dos interesses de seu cliente, na condição de investigado, assegurando ao procurador a possibilidade de exame de autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, e não autos de flagrante e de inquérito, apenas, como previsto na antiga redação do citado inciso.
Assim sendo, ainda que a investigação seja conduzida na Delegacia de Polícia (no bojo de inquérito policial, por exemplo), no Ministério Público (nos autos de procedimento investigativo criminal, por exemplo), ou em qualquer outro órgão que realize investigação da mais diversa natureza, as alterações trazidas no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil assegura ao advogado o amplo acesso aos autos de investigação, ainda que estes estejam conclusos à autoridade respectiva e que, já em outra discussão, frustre ou confronte a garantia da conclusão dos autos à mencionada autoridade.
Por outro lado, também se constata um aparente conflito entre a nova redação do inciso XIV e a súmula vinculante n. 14, isso porque, com a nova inteligência do legislador, o advogado poderá examinar autos de flagrante ou qualquer outro procedimento de investigação findo ou em andamento; no entanto, o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal é pela possibilidade de o advogado ter acesso amplo apenas aos elementos de prova já documentados. Assim, com a ampliação dos poderes do advogado trazida pela nova lei, a Corte Maior possivelmente manifestará seu posicionamento pela prevalência do entendimento sumulado ou por sua superação.
Tais alterações, como se percebe, garante o maior respaldo possível ao princípio da ampla defesa e do contraditório. Nos dizeres de Marcelo Novelino (2015, p. 470):
A Constituição assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CF, art. 5º, LV). O contraditório, entendido como a ciência bilateral dos atos do processo com a possibilidade de contrariá-los, é composto por dois elementos: informação e reação, sendo esta meramente possibilitada em se tratando de direitos disponíveis. A audiência bilateral é requisito indispensável para garantir a justiça das decisões, pois “somente pela soma da parcialidade das partes (uma representando a tese e a outra, a antítese) o juiz pode corporificar a síntese, em um processo dialético” (CITRA et alii, 1995). A ampla defesa é decorrência do contraditório (“reação”). Assegura-se aos indivíduos a utilização, para a defesa de seus direitos, de todos os meios legais e moralmente admitidos. Não caracteriza uma violação a esta garantia o simples indeferimento de uma diligência probatória considerada desnecessária ou irrelevante.
Outrossim, a intelecção do § 10, do mesmo dispositivo, fulmina o sigilo das investigações ao prever a faculdade do advogado de examinar os autos sujeitos ao sigilo, conquanto seja apresentada procuração para o exercício dos direitos que dispõe o inciso XIV, do referido estatuto do advogado.
Destarte, a lição trazida por Renato Brasileiro acerca do sigilo do procedimento investigativo torna-se parcialmente inócua frente ao novo texto legal, uma vez que o mencionado doutrinador informa o seguinte (2014, p. 80):
Se na própria fase processual é possível a restrição da publicidade, com mais razão será no inquérito policial, em que o elemento surpresa é, na grande maioria dos casos, essencial à própria efetividade das investigações policiais.
Os professores Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar trazem uma diferenciação entre o sigilo interno e externo (2012, p. 106), vejamos:
Devemos diferenciar o sigilo externo das investigações, que é aquele imposto para evitar a divulgação de informações essenciais do inquérito ao público em geral, por intermédio do sistema midiático, do sigilo interno, que é aquele imposto para restringir o acesso aos autos do procedimento por parte do indiciado e/ou do seu advogado.
Nessa linha de raciocínio, há uma perceptível colisão entre interesses (ou direitos) legalmente garantidos, a saber, o sigilo interno e eficácia das investigações e o direito de acesso aos autos de flagrante ou de investigações de qualquer natureza, na forma disposta no dispositivo legal acima mencionado.
Cumpre ressaltar, entretanto, que a liberdade do advogado não se tornou incondicionada, tendo em vista que o legislador resolveu por bem também oferecer determinada segurança à autoridade policial, conforme se observa do § 11, ao conferir ao delegado de polícia a possibilidade de limitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências que estejam em andamento e não estejam documentados quando possa colocar em risco a eficiência, eficácia e a finalidade das investigações.
Por outro lado, e pautado no princípio da boa fé que deve reger qualquer ato do operador do direito no exercício de seu munus, o legislador determinou a aplicação das penalidades criminais e funcionais, por abuso de autoridade, ao responsável pela violação aos direitos do advogado nas hipóteses de fornecimento incompleto dos autos ou fornecimento dos autos com a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo.
Ressalte-se, por oportuno, que o precitado dispositivo não aponta apenas a autoridade policial como possível responsabilizado criminal e funcionalmente, mas também qualquer servidor que integre o cartório ou delegacia e que tenha plenos poderes para manusear os autos requeridos pelo advogado.
Por fim, e para efeito de mero apontamento, registre-se ainda que a alínea “a” do inciso XXI, acima transcrito, inovou o texto legal possibilitando a formulação de quesitos e apresentação de razões, por parte do advogado, durante toda a apuração das infrações penais, mais precisamente no momento do interrogatório ou depoimento.
Entende-se do mencionado dispositivo que a lei quis conferir uma similitude do interrogatório e depoimento durante o inquérito policial aos atos de interrogatório do acusado e depoimento das testemunhas na fase já judicializada, quando já formada a instância penal.
4) CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo o exposto, observa-se que a recente alteração do Estatuto do Advogado trouxe profundas mudanças para o trâmite das investigações criminais, especialmente no âmbito do inquérito policial, de maneira que, atualmente, a liberdade conferida ao advogado para o exercício da ampla defesa de seu constituinte no referido procedimento administrativo foi essencialmente dilatada.
Trata-se de mudança bastante controversa na doutrina, havendo divergência entre aqueles que entendem pela sua constitucionalidade, tendo em vista que a ampla defesa e o contraditório são garantias individuais consideradas cláusulas pétreas pela Carta Maior, e, por outro lado, outra parte doutrinária se posiciona pela afronta a toda órbita do procedimento investigativo do inquérito policial, fulminando na sua inocuidade.
Neste contexto, vislumbra-se que possivelmente os tribunais superiores pátrios se posicionarão pela constitucionalidade das alterações, no entanto, com a certeza de que a autoridade policial, como a própria lei garante, terá autonomia para limitar a atuação do advogado quando entender que sua interferência poderá trazer algum prejuízo ao bom andamento e solução dos casos concretos, optando-se notadamente por uma posição intermediária.
5) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASILEIRO, Renato. Resumo Manual de Processo Penal. 2. ed. 2014.
NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2015.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 7. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2012.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Jussara Araújo Barbosa de. A participação do advogado no inquérito policial e comentários à Lei n. 13.245/16 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 fev 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46074/a-participacao-do-advogado-no-inquerito-policial-e-comentarios-a-lei-n-13-245-16. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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