RESUMO: Este trabalho busca apresentar um panorama geral a respeito das ações Restaurativas na Justiça, focalizando o direcionamento, discussões e a efetivação dessas medidas. Para isso, busca-se abordar os principais conceitos, finalidade e natureza da Justiça Restaurativa, desenvolvendo um quadro geral sobre as origens e entendimentos relacionados à matéria em foco.
Palavras-chave: Direito Criminal. Sistema de Justiça Criminal. Justiça Restaurativa. Paradigma Restaurativo. Paradigma Retributivo.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO, 2. A NOÇÃO DE PUNIÇÃO E JUSTIÇA NO SEIO DA SOCIEDADE, 3. O SISTEMA TRADICIONAL DE PUNIÇÃO: DISCUSSÕES NECESSÁRIAS, 4. MODELO RETRIBUTIVO X MODELO RESTAURATIVO, 5. CONCLUSÃO, 7. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
A Justiça Restaurativa emerge como uma esperança em meio ao crescimento do clima de insegurança que marca o mundo contemporâneo, diante dos altos índices de violência e criminalidade. Parece evidenciar-se a necessidade de aprimoramento do sistema de justiça, para que a sociedade e o Estado ofereçam não apenas uma resposta monolítica ao crime, mas disponham de um sistema multi-portas, com outras respostas que pareçam adequadas diante da complexidade do fenômeno criminal.
Sob o epíteto “Justiça Restaurativa” entende-se uma forma inovadora de se pensar a abordagem da justiça penal. Ela toma como escopo basilar a reparação dos danos causados às pessoas e relacionamentos, ao invés de punir os transgressores. [1]
2. A NOÇÃO DE PUNIÇÃO E JUSTIÇA NO SEIO DA SOCIEDADE
Muito se tem questionado, no âmbito da Filosofia do Direito e da Ética, o verdadeiro valor intrínseco da atual forma de se pensar a execução da justiça na legislação ocidental. De fato o sistema de justiça convencional, baseado na retributividade (ou seja, basicamente uma moderna “Lei do Talião”), tem se mostrado muito mais prejudicial, em alguns momentos, ou (para ser mais brando), eminentemente inócua, levando-se à necessidade de pensar em novas estratégias de se executar a justiça, de tal forma que todas as partes envolvidas sejam beneficiadas, em maior ou menor grau.
3. O SISTEMA TRADICIONAL DE PUNIÇÃO: DISCUSSÕES NECESSÁRIAS
Na essência de toda essa discussão está a simples observação ética feita por Andrew von Hirsch [2], em seu segundo tratado inovador sobre punição e como ela pode e deve ser justificada: segundo ele, as punições ferem aqueles que são a elas submetidos e uma sociedade decente deveria procurar manter a imposição proposital de sofrimento ao mínimo possível (grifo nosso).
Tomando como base o brilhantismo da obra de Foucault [3], pode-se afirmar com convicção os inconvenientes do atual sistema prisional. Segundo ele, a prisão é quase inútil. A sociedade é plenamente conhecedora do fracasso da prisão, pois esta contribui para:
a) a manutenção da delinqüência;
b) a indução à reincidência;
c) a transformação do infrator ocasional em delinqüente habitual;
d) a organização de um meio fechado de delinqüência.
A sociedade conhece bem a funcionalidade deste sistema prisional. Sabe-se que estas são apenas conseqüências da prisão. E por que se insiste em continuar repetindo o mesmo paradigma? Conforme o filósofo francês, porque a sociedade não vê o que pôr em seu lugar.
Ademais, a prisão é uma maneira de gerir as ilegalidades, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles.
Além dessa diretriz ética essencial, existem motivos pragmáticos e associados para se repensar as punições tradicionais e mantê-las (em especial a forma de punição preferida de nossas sociedades - a reclusão) ao mínimo possível. Na realidade, as prisões não são apenas locais para “imposição proposital de sofrimento”, elas também custam muito, tanto em termos financeiros quanto em outros termos. Primeiro, podem-se considerar as evidências dos custos financeiros relativos às punições com e sem reclusão.
Falando-se em nível internacional, pode-se tomar como exemplo o Canadá. Em 2000-2001, o custo para manutenção de uma pessoa em um presídio federal era de $185,44 por dia, enquanto o custo de medidas alternativas, tais como sursis, supervisão de fiança e trabalho comunitário supervisionado variaram entre $5,00 e $25,00 por dia [4]. O mesmo ocorre na Austrália, em que o custo médio diário por detento por dia é de $202,30. Outras alternativas de condenações são significativamente menos onerosas, tais como a reclusão periódica por $119,00 a prisão domiciliar por $57,00 e a liberdade condicional, o sursis e serviços comunitários variando entre $9,00 e $4,00 por infrator por dia. Esses números não incluem os custos esporádicos dos estabelecimentos, que são logicamente muito maiores no caso dos presídios que nas outras opções.
No entanto, os custos sociais e humanos – algumas vezes não intencionais, mas que não causam menos sofrimento – são os que mais pesam. Nas palavras de Clifford Shearing e Les Johnston [5]:
“Em 2002, na Inglaterra e no País de Gales, 94 detentos cometeram suicídio, um aumento de 29% sobre o número total do ano anterior (Howard League for Penal Reform, 2003 [Liga Howard pela Reforma Penal]). No Canadá, a taxa média de automutilação nas penitenciárias é quase o dobro da taxa estimada para a população em geral. Em um estudo canadense, 59% das mulheres condenadas por crimes federais relataram que desenvolveram comportamentos prejudiciais a si mesmas (Elizabeth Fry Society, 2002 [Sociedade Elizabeth Fry]). A situação na Austrália não é diferente. Aqui encontramos um nível de problemas de saúde mental e doenças mentais de três a quatro vezes mais alto na população presidiária que na população em geral.
Estatísticas atuais demonstram que cerca de 85% dos detentos de New South Wales experimentaram algum episódio de psicose, ansiedade, uso de drogas ou desvios de comportamento no último ano (Butler; Milner, 2003). Suicídio é outro dos principais problemas, com 39% de tentativas de suicídio entre mulheres detentas e 21% entre os homens detentos, no período 2002-2003, número que mais que triplicou, desde os anos 80 (SCIPP, 2000, p. 16).”
Os referidos autores ainda citam outros inconvenientes do sistema prisional: a contaminação e transmissão de doenças infecciosas, tal como tuberculose, e principalmente os males de cunho sexual.
Nos países ricos, é possível diminuir os custos sociais humanos da reclusão, visto que se pode arcar com os custos financeiros de melhorias nos presídios. Mas o que dizer dos demais países, ou seja, daqueles que mal têm condições de manter seus programas sociais normalmente? A possibilidade de isso vir a ocorrer é mínima. Considerados os custos intencionais e não intencionais da reclusão, deve haver, portanto, bons motivos para a punição e, particularmente, para a reclusão de pessoas. Isso traz a pergunta: “Por que punir?”. Para se responder a essa questão, deve-se encarar em particular o que torna a punição uma técnica tão atrativa e tão forte para o controle da segurança. A realidade leva à conclusão de que a principal característica da atratividade da punição é a forma parcimoniosa com que a mesma integra as características simbólica e instrumental da imposição de medidas judiciais.
Novamente Clifford Shearing e Les Johnston [6] esquematizam a discussão: no nível instrumental, entende-se que a punição evita a desordem, impedindo delitos em nível específico e geral. A reclusão, por exemplo, incapacita os infratores, ao mesmo tempo em que os impede, e a outros, de cometerem futuras transgressões. Ademais, há também um lado simbólico na punição; entende-se que a punição proporciona uma sensação de justiça, ou seja, a punição, quando devidamente aplicada, cria uma sensação de que foi dada ao delito uma resposta justa. Existem duas correntes influentes de pensamento contemporâneo que explicam e promovem o uso simbólico da punição. De um lado, entende-se que a punição cria uma sensação de justiça, ao equilibrar uma lesão com outra; de outro, entende-se que a punição proporciona uma sensação de justiça quando utilizada corretamente para censurar a transgressão.
4. MODELO RETRIBUTIVO X MODELO RESTAURATIVO
Os esforços de delimitação das práticas em termos de justiça penal remontam aos trabalhos de Eglash (1975), o qual considera que três modelos de justiça são identificáveis: uma justiça distributiva, centrada no tratamento do delinqüente, uma justiça punitiva centrada no castigo e uma justiça recompensadora, centrada na restituição.
Ainda em 1975, H. Zehr publica Changing Lenses, um livro decisivo na eclosão da Justiça Restaurativa como paradigma que marca uma ruptura com o modelo retributivo. Neste livro, que se tornou um clássico, Zehr sugere a existência de dois modelos de justiça fundamentalmente diferentes: o modelo retributivo e o modelo restaurador. Alguns anos depois, L. Walgrave, em 1993, propõe uma síntese, que ainda hoje é referência freqüente para a definição da Justiça Restaurativa. De acordo com este autor, a justiça é marcada por três tipos principais de direito: o direito penal, o reabilitador e o direito restaurativo [7], conforme ilustrado no Quadro 2 abaixo.
|
Direito penal |
Direito Reabilitador |
Direito Restaurador |
Ponto de referência |
O delito |
O indivíduo delinqüente |
Os prejuízos causados |
Meios |
A aflição de uma dor |
O tratamento |
A Obrigação de restaurar |
Objetivos |
O equilíbrio moral |
A adaptação |
A anulação dos erros |
Posição das vítimas |
Secundário |
Secundário |
Central |
Critérios de Avaliação |
Uma “pena adequada” |
O indivíduo adaptado |
Satisfação dos interessados |
Contexto social |
O Estado opressor |
O Estado-providência |
O Estado responsável |
Quadro 2: os três modelos de justiça de acordo com Walgrave.
Fonte: WALGRAVE, 1993, p.12, apud JACCOUD, 2005, p. 167.
Conceitua-se que a teoria retributiva acredita que a dor do transgressor pode vir a justificar o dano, mas a prática disso tem se provado ser contraproducente tanto para a vítima quanto para o ofensor. Por seu turno, a teoria da Justiça Restaurativa argumenta que uma verdadeira justificação viria de se reconhecer os danos das vítimas e suas necessidades, aliado ao esforço ativo em se encorajar os ofensores a assumirem responsabilidade, corrigirem os erros, e cuidarem das causas de seu comportamento. Este é o maior diferencial do novo conceito de Justiça: ao se preocupar em responder à necessidade humana de justificação através de uma atividade positiva, a Justiça Restaurativa tem o potencial para aceitar a ambos, vítima e ofensor, e para ajudar a ambos a transformarem suas vidas.
Pedro Scuro Neto em sua obra “Manual de Sociologia Geral e Jurídica” [8], apresenta um quadro comparativo (adaptado a seguir) entre as ações da Justiça Retributiva, convencional, e a Restaurativa, de maneira a mostrar as vantagens inerentes a essa última, quando cotejadas as duas possibilidades entre si.
CRIME E JUSTIÇA: PRESSUPOSTOS
Justiça Retributiva |
Justiça Restaurativa |
Crime: noção abstrata, infração à lei, ato contra o Estado |
Crime: ato contra pessoas e comunidades.
|
Controle: Justiça Penal |
Controle: comunidade |
Compromisso do infrator: pagar multa ou cumprir pena |
Compromisso do infrator: assume responsabilidades e faz algo para compensar o dano. |
Crime: ato e responsabilidade com dimensões individuais e sociais. |
Crime: ato e responsabilidade exclusivamente individuais |
Pena eficaz: a ameaça de castigo altera condutas e coíbe a criminalidade. |
Castigo somente não muda condutas, além de prejudicar a harmonia social e a qualidade dos relacionamentos. |
Vítima: elemento periférico no processo legal:
|
Vítima: vital para o encaminhamento do processo judicial e a solução de conflitos. |
Infrator: definido em termos de suas deficiências.
|
Infrator definido por sua capacidade de reparar danos. |
Preocupação principal: estabelecer culpa por eventos passados (Você fez ou não fez?). |
Preocupação principal: resolver o conflito, enfatizando deveres e obrigações futuras. (Que precisa ser feito agora?) |
Ênfase: relações formais, adversativas, adjucativas e dispositivas. |
Ênfase: diálogo e negociação. |
Impor sofrimento para punir e coibir |
Restituir para compensar as partes e reconciliar |
Comunidade: marginalizada, representada pelo Estado. |
Comunidade: viabiliza o processo restaurativo. |
Quadro 3: Crime e justiça: pressupostos
Fonte: Adaptado de SCURO NETO, 2000, p. 103.
Esses dois quadros apresentados têm a vantagem de realmente situar a Justiça Restaurativa em relação às duas práticas “convencionais” que modelam as atividades do sistema penal.
Conforme se pode ver, o direito restaurador adota os erros causados pela infração como posição de referência ou ponto de partida, enquanto o direito penal se apóia na infração, e o reabilitador sobre o indivíduo delinqüente. O direito reparador tem como objetivo anular os erros obrigando as pessoas responsáveis pelos danos a reparar os prejuízos causados; o direito penal visa restabelecer um equilíbrio moral causado por um mal; a aproximação reabilitadora procura adaptar o ofensor através de um tratamento. Só o direito restaurador concede às vítimas um lugar central, o direito punitivo e o reabilitador lhes oferecem apenas um lugar secundário. Os critérios utilizados para avaliar o alcance dos objetivos atribuídos a cada tipo de direito são muito diferentes. O penal está centrado na noção de “justa” pena (princípio de proporcionalidade), o reabilitador sobre a adaptação do indivíduo delinqüente, enquanto que o direito restaurativo encontra seus objetivos a partir da satisfação vivenciada pelos principais envolvidos pela infração. O contexto social no qual o direito penal evolui é um contexto no qual o Estado é opressor; o direito reabilitador é marcado por um contexto onde o Estado é uma providência estatal; o direito reparador se expressa através de um contexto onde o Estado responsabiliza os principais envolvidos.
5. CONCLUSÃO
Conforme visto ao longo deste artigo, a procura por soluções alternativas ou complementares ao sistema tradicional de justiça, sobretudo ao largamente utilizado retributivo, vêm encontrando nas práticas restaurativas um encaminhamento possível a conflitos definidos legalmente como infracionais. Isso se dá porque a ênfase recai, de um lado, para a busca por amparo às vítimas e ao atendimento a suas necessidades, concedendo a elas um papel ativo na condução das negociações em torno do conflito, diferente do que acontece na retributividade jurídica. Por outra ótica, busca-se mais do que tão-somente a responsabilização do causador do dano, antes, lança-se mão de recursos outros diferentes da punição e da sua estigmatização, mas também, pelo encontro que se dá entre um envolvido e outro no conflito, dar ocasião para o confronto de todas as questões que, a ver de cada qual, o determinaram e para o encaminhamento de possibilidades de sua superação ou transfiguração.
Assim, depreende-se tratar o assunto de uma discussão concernente ao juízo sobre a relação interpessoal e do indivíduo com a sociedade, isto é, no tocante à fundamentação da ação individual e seus limites e do poder da sociedade e do Estado à vista destas ações.
Ultrapassar os desafios e construir um sistema de justiça restaurativo envolve, portanto, assumir por inteiro ônus como o congestionamento dos processos judiciais ou a imagem de sistema perverso e ineficaz – missão particularmente relevante, e muito arriscada, em especial no Brasil.
6. REFERÊNCIAS
MCCOLD, Paul; WACHTEL, Ted. Em Busca de um Paradigma: Uma Teoria de Justiça Restaurativa. International Institute for Restorative Practices. In: XIII CONGRESSO MUNDIAL DE CRIMINOLOGIA, Rio de Janeiro. 10-15 Agosto de 2003. Anais... International Institute for Restorative Practices. [1]
HIRSCH, Andrew von, 1993, p. 4, apud SHEARING, Clifford; JOHNSTON, Les. A justiça em sociedades de risco. In: SLAKMON, Catherine; ROCHA, Maíra; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006. p. 131-146. [2]
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: História da violência nas prisões. 5º ed. Petrópolis: Vozes, 1987. [3]
Elizabeth Fry Society, 2002, apud SHEARING e JOHNSTON, 2006, p. 133. [4]
SHEARING e JOHNSTON, 2006, p. 133. [5]
SHEARING e JOHNSTON, 2006, p. 136. [6]
Conforme apresentado por JACCOUD, 2005, p.167. [7]
SCURO NETO, Pedro. Manual de Sociologia Geral e Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2000. [8]
MELO, Eduardo Rezende. Justiça restaurativa e seus desafios histórico-culturais: Um ensaio crítico sobre os fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa em contraposição à justiça retributiva. In: SLAKMON, Catherine; DE VITTO, Renato Campos Pinto; GOMES PINTO, Renato Sócrates. Justiça restaurativa. Coletânea de artigos. Brasília – DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNDU, 2005. p. 53-78. [9]
Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Camila Albuquerque de Farias. A justiça restaurativa e o sistema convencional de justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 mar 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46097/a-justica-restaurativa-e-o-sistema-convencional-de-justica. Acesso em: 22 nov 2024.
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