Resumo: Objetiva-se estabelecer uma comparação entre os ordenamentos jurídicos comunitários do Mercosul e da União Europeia, levando em consideração a manifesta distinção quanto às diferentes fases em que se encontram cada um deles. Para tanto, far-se-á necessário, a princípio, analisar as diferentes etapas de integração pelas quais atravessam os blocos até atingirem a plena integração econômica e monetária. Em seguida, partir-se-á ao estudo, propriamente dito, do Ordenamento Jurídico Comunitário, analisado de uma esfera geral, para, em seguida, estabelecer-se a compreensão individualizada do ordenamento de cada bloco, estabelecendo-se as diferenças primordiais entre eles.
Palavras-chave: Direito Internacional. Direito de Integração. Direito Comunitário. União Europeia. Mercosul. Estudo comparado.
Abstract: The objective is to establish a comparison between the Community legal order of Mercosur and the European Union, taking into account the manifest distinction as to the different phases in which they are each of them. To do so, it shall be made necessary at first to examine the different stages of integration by which pass through the blocks until they reach full economic and monetary integration. Then break will be the study itself, the Community legal system, analyzed from a general level, to then settle the individualized understanding of the order of each block, setting up the primary differences between them.
Key words: International right. Integration of law. Community law. European Union. Mercosur. Comparative study.
1. INTRODUÇÃO
A Globalização, fenômeno amplamente reconhecido que se tem intensificado continuamente nas últimas décadas, foi responsável por reduzir as fronteiras internacionais de tal forma que uma nova realidade afigurou-se; proporcionando, assim, uma maior integração econômica entre os países, o que desencadeou a formação dos denominados blocos econômicos.
Tais blocos são dotados de uma estrutura comunitária, na qual os Estados se unem, cedendo cada um parcela de sua soberania, em prol do conseqüente avanço econômico. Além de um mercado comum, objetivo primordial dessa integração, é possível haver, ainda, entre os países signatários, coincidência nas políticas relativas a diversos aspectos sócio-econômicos, a fim de aprofundar os laços entre eles, potencializando os escopos do bloco formado.
O primeiro bloco econômico que se veio a constituir foi a União Européia, estando no nível de integração mais avançado dentre todos os que vieram a se formar posteriormente. O MERCOSUL surgiu em inspiração àquele, buscando atingir os resultados alcançados na Europa, contudo, devido a diversos aspectos, ainda se encontra em nível inicial de integração, bem distante da atual estrutura da União Européia.
A União Européia, criada de fato em 1993, a partir do Tratado de Maastricht, tem suas origens na Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA) e na Comunidade Econômica Européia (CEE), zonas de livre comércio formadas, em princípio, por apenas seis países europeus. Atualmente, contudo, esse bloco econômico é um estabilizado mercado comum, com vias a avançar ao estado de união econômica e monetária, sendo formado por 27 países, os quais mantêm de legislações e políticas em comum.
O MERCOSUL, por sua vez, constitui tão somente uma união econômica. As origens desse bloco remontam à década de 1960, época em que foi formada a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), a qual foi sucedida, na década de 1980, pela Associação Latino-Americana de Desenvolvimento. Foi apenas em 1991, todavia, mediante o Tratado de Assunção, que, efetivamente, estabeleceu-se o bloco econômico sob a denominação de MERCOSUL, constituindo-se de uma zona de livre comércio entre quatro países sul-americanos. Atualmente, esse organismo regional incorpora uma união aduaneira, composta por seis integrantes.
Feita essa lacônica explanação acerca do surgimento do MERCOSUL e da União Européia, cumpre destacar que o objetivo precípuo do presente estudo é estabelecer uma comparação entre os ordenamentos jurídicos comunitários desses dois blocos econômicos, levando em consideração a manifesta distinção quanto às diferentes fases em que se encontram cada um deles.
Para tanto, far-se-á necessário, a princípio, analisar as diferentes etapas de integração pelas quais atravessam os blocos até atingirem a plena integração econômica e monetária. Em seguida, partir-se-á ao estudo, propriamente dito, do Ordenamento Jurídico Comunitário, analisado de uma esfera geral, para, em seguida, estabelecer-se a compreensão individualizada do ordenamento de cada bloco, estabelecendo-se as diferenças primordiais entre eles.
2. O PROCESSO DE INTEGRAÇÃO
Urge, aqui, analisar os cinco modelos de integração, que podem também ser entendidos como fases sucessivas de um processo evolutivo, embora esse desenvolvimento gradual não ocorra necessariamente. Essa classificação mostra-se fundamental para a compreensão, de modo comparativo, do Mercosul e da União Européia, bem como para o entendimento do Ordenamento Comunitário de cada um deles, uma vez que é a partir desse decurso que ele vem a surgir.
O primeiro estágio de integração e o mais rudimentar é a denominada Zona de Preferência Tributária. Aqui, intenta-se estabelecer um padrão tarifário preferencial entre os Estados inseridos na área, de forma que as tarifas cobradas a países não-membros serão necessariamente maiores do que as exigidas em face das nações signatárias. Um exemplo dessa espécie de integração é a ALALC, bloco econômico que antecedeu o MERCOSUL e que buscou estabelecer um padrão tarifário entre seus onze membros, todos da América do Sul.
O segundo nível de integração é a Zona de Livre Comércio, na qual deve ocorrer a eliminação não só de parcela das barreiras tarifárias, como também de parte dos óbices não-tarifários, dentre os quais se subsumem a proibição de importar determinados produtos e a exigência quanto à anuência prévia do Estado importador[1], por exemplo.
Uma terceira forma de integração econômica é a União Aduaneira, que se trata de uma zona de livre comércio dotada, também, de uma Tarifa Externa Comum (TEC). Esta, como o próprio nome indica, estabelece uma tarifa comum de importação não só perante os países integrantes do bloco, mas em face também de Estados não-signatários desse. A CEE foi uma União Aduaneira até 1992, ano em que passou a um estágio mais avançado, o de Mercado Comum. O MERCOSUL, por sua vez, atingiu esse nível de integração, ao qual pertence até hoje, em 1995, quando estabeleceu o primeiro TEC, evidentemente mais oneroso que as tarifas cobradas entre os países membros.
A quarta modalidade de integração é o Mercado Comum, que tem como único exemplo a União Européia. Aqui, diferentemente da União Aduaneira, é estabelecido entre os Estados-membros, além da livre circulação de bens, o desimpedido tráfego de serviços e de fatores de produção (capital e mão de obra). Salienta-se, todavia, que, a fim de consolidar-se efetivamente o Mercado Comum, requer-se a coordenação de políticas macroeconômicas por parte de todos os países integrantes[2].
Por fim, o último nível que poderá alcançar determinada estrutura comunitária é o de União Econômica e Monetária. Este jamais foi atingido, mas deverá sê-lo quando houver, em determinado bloco, além das características inerentes ao Mercado Comum, uma moeda única, sem resquícios de moedas nacionais, bem como uma política monetária inteiramente unificada, conduzida por um Banco Central Comunitário.
O Direito Comunitário, não raro, é conceituado como um sistema jurídico sui generis, que não se confunde nem com o direito interno dos países, pois suas normas são editadas por órgãos de natureza comunitária e têm aplicabilidade imediata nas ordens jurídicas internas desses Estados; nem tampouco com o Direito Internacional Público, uma vez que é regido por princípios próprios.[3]
Por constituir disciplina jurídica nova, o Direito Comunitário se vale de instrumentos hermenêuticos e gnoseológicos próprios, sem prescindir daqueles utilizados pelo Direito Interno e Internacional, em face de seu hibridismo, privilegiando a interpretação teleológica ou finalística[4].
Para o professor José Gomes Sá Pereira, o Direito Comunitário compreende:
“o conjunto de princípios e normas jurídicas que regem a constituição e o funcionamento das Comunidades Européias, e é uma nova ordem jurídica que penetra nos diversos ramos do direito interno dos Estados membros, cujo estudo e aplicação não podem, geralmente, deixar de ser realizados em estreita articulação”[5]
Comungamos com o entendimento do ilustre professor, divergindo, assim, do que preceitua Fausto de Quadros, uma vez que este considera que o Direito Comunitário está adstrito tão somente às regras e princípios pactuados pelos Estados[6]. Em verdade, conforme se pôde inferir supra, deve-se levar em conta, também, o direito interno dos entes da comunidade, sendo fundamental que haja a articulação entre todas as normas, para a devida concretização delas.
O Direito Comunitário deve, ainda, ser caracterizado como parcial, porquanto não tem competência sobre a totalidade do Direito dos Estados-membros. Essa parcialidade, todavia, vai diminuindo, tornando-se o ordenamento comunitário cada vez mais abrangente, pois, na medida em que avança o processo de integração, mais setores passam a estar sob a tutela do Direito Comunitário. Além dessa característica evolutiva, uma terceira evidencia-se, devendo tal Direito ser considerado setorial, vez que coexiste com os vários ordenamentos nacionais que integram a Comunidade.
Questão que exsurge é a que diz respeito ao momento em que passa a existir o Direito Comunitário. De certa forma, ainda na simples estrutura de Zona de Preferência Tarifária existem questões atinentes ao Direito Comunitário. Todavia, a posição já consolidada da doutrina é a de que o mesmo nasce tão somente quando da instituição de um Mercado Comum, porquanto, antes disso, os tratados possuem natureza meramente comercial, inexistindo relação comunitária entre os países membros[7].
Destarte, no que tange ao MERCOSUL, não se pode afirmar que existe um Direito Comunitário, mas tão somente um Direito de Integração. Este consiste no conjunto de normas jurídicas, o qual disciplina os processos de integração econômica e regional entre Estados soberanos que ainda estão em estagio inicial de associação[8].
Deve-se ter em vista que o Direito de Integração, em seu estágio mais avançado, passa a ser considerado Direito Comunitário. Em tal circunstância, cumpre constatar a existência de normas supranacionais emanadas de órgãos comunitários, com aplicabilidade perante não só os Estados-membros ou as instituições comunitárias, mas também em relação aos particulares dos países integrantes[9]; bem como a existência de um órgão judicial supraestatal.
Característica inerente ao Direito Comunitário, a partir da qual se subsumem diversos caracteres peculiares desse modelo de Ordenamento, é a de supranacionalidade.
Tal instituto é um dos principais pilares do Ordenamento Comunitário, e contribuiu sobremaneira no processo de integração da União Européia, possibilitando a adoção de políticas comunitárias compatíveis com a legislação dos Estados membros, bem como a uniformização na tomada de decisões. A supranacionalidade é responsável, outrossim, por possibilitar que as normas produzidas pelos órgãos comunitários possam ser aplicadas de forma homogênea e imediata no ordenamento jurídico dos Estados membros.
No MERCOSUL, em contrapartida, não há de suscitar a existência de um Direito Comunitário, mas tão somente de um Direito de Integração, conforme mencionado alhures. Do conceito de Direito de Integração, advém uma noção que, quando contraposta à supranacionalidade característica da União Européia, faz surgir a principal distinção entre esses dois blocos econômicos. Essa é a intergovernabilidade.
É em função da sistemática da intergovernabilidade que o MERCOSUL é regido pelos preceitos do Direito Internacional Público, a partir do qual sobrevém a descentralização da Comunidade, inexistindo mecanismos e institutos jurídicos próprios capazes de assegurar a primazia e a aplicabilidade direta das normas produzidas por suas instituições.
Em face dessa dicotomia entre supranacionalidade e integovernabilidade, advém grande parte das distinções que serão elucidadas no decorrer do presente trabalho, de modo que a freqüente recorrência a esses dois institutos torna-se manifesta conseqüência do estudo desses dois blocos econômicos.
Feita uma sucinta, porém suficiente explanação acerca dos diferentes níveis de integração em que podem encontrar-se determinado bloco econômico, bem como traçada a devida noção de Direito Comunitário e de Direito de Integração, urge, aqui, dar ensejo à expressa comparação entre os sistemas jurídicos da União Européia e do MERCOSUL.
Para tanto, privilegiar-se-ão as fontes, por meio das quais surge o Direito; o sistema de harmonização desse Direito para com o ordenamento interno dos Estados-membros; e as medidas de solução de controvérsias que eventualmente venham a surgir no âmbito do bloco econômico.
4.1. As Fontes
As fontes que constituem o Direito Comunitário Europeu podem dividir-se em escritas e não escritas.
As fontes escritas são compostas tanto por atos convencionais, quanto por atos derivados ou unilaterais. Os primeiros se subsumem aos acordos celebrados entre os Estados-membros, bem como às convenções concluídas pela Comunidade em face de terceiros Estados.
Já os atos derivados são aqueles emanados pela própria instituição comunitária, possuindo, portanto, grande importância, uma vez que constituem a base do Ordenamento Comunitário Europeu. Tais fontes estão devidamente regulamentadas pelo art. 249 do Tratado Comunitário Europeu (TCE).
Em decorrência de tal dispositivo, considera-se que compõem as fontes unilaterais: os regulamentos – que conferem direitos e impõem obrigações de forma geral e abstrata, constituindo a lei da comunidade -; as diretivas – que vinculam o Estado-membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios -; as decisões – as quais são obrigatórias em todos os seus elementos para os destinatários designados -; as recomendações e os pareceres – que, por sua vez, que não são vinculativos, sendo manifestados de forma interna, no exercício de suas funções administrativas, produzindo efeitos indiretos[10].
A outro giro, como fontes não escritas do Direito da União Européia estão a Jurisprudência do TJCE e os Princípios Gerais do Direito, incluindo-se aqui tanto os princípios inerentes ao Direito Internacional Público, quanto aqueles pertencentes aos Estados-membros e os que o TJCE expressamente enuncia.
No que diz respeito ao MERCOSUL, também é possível estabelecer uma distinção entre as fontes escritas e as não escritas. Quanto às escritas, o Protocolo de Ouro Preto (POP), em seu art. 41, enuncia-as expressamente.
Artigo 41 do Protocolo de Ouro Preto: As fontes jurídicas do Mercosul são:
I. O Tratado de Assunção, seus protocolos e os instrumentos adicionais ou complementares;
II. Os acordos celebrados no âmbito do Tratado de Assunção e seus protocolos;
III. As Decisões do Conselho do Mercado Comum, as Resoluções do Grupo Mercado Comum e as Diretrizes da Comissão de Comércio do Mercosul, adotadas desde a entrada em vigor do Tratado de Assunção.
O mesmo Protocolo, em seu art. 42[11], assevera, em plena concordância com o caráter de intergovernabilidade inerente ao MERCOSUL, que as normas emanadas terão caráter obrigatório e deverão ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais, mediante os procedimentos previstos pela legislação interna de cada país.
Quanto às fontes não escritas do MERCOSUL, os princípios e as disposições do Direito Internacional Clássico desempenham importante função, principalmente no que diz respeito à solução de controvérsias, conforme elucida o art. 19, I do Protocolo de Brasília[12].
4.2 A harmonização da legislação interna
A harmonização, nos processos de integração, tem por escopo, erradicar ou, ao menos, atenuar as disposições de direito interno contraditórias entre si, a fim de possibilitar a aproximação entre os diversos Estados integrantes de uma mesma Comunidade, intensificando, assim, tanto o crescimento econômico, quanto os demais objetivos perseguidos pelo organismo regional.
Tal conformidade entre as normas que vigoram nos Estados associados pode perfazer-se pela adoção de novas normas jurídicas ou mesmo pela supressão, parcial ou total, de normas destoantes entre si, as quais constituem um óbice ao pleno funcionamento do mercado comum.
A harmonização das normas, no âmbito da União Européia, está regida principalmente pelos arts. 3º, “h”; 100; 101 e 102 do Tratado de Roma. Tais dispositivos impõem a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-membros que tenham incidência direta no estabelecimento ou no funcionamento do mercado comum[13].
Pode-se afirmar que o sistema de harmonização de normas da União Européia apresenta a devida efetividade, sendo suficiente para transpor a necessária homogeneidade legislativa entre os ordenamentos nacionais do mesmo bloco econômico. Isso se deve principalmente ao caráter supranacional desse órgão regional, que impõe medidas dotadas de caráter obrigatório a todos os membros signatários, tais como diretivas e regulamentos.
No que tange ao MERCOSUL o art. 1º do Tratado de Assunção estatui:
(...) O compromisso dos Estados Partes de harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do processo de integração.
Todavia, regido pelo Direito Internacional Público e tendo como metodologia o consenso[14], torna-se evidente que tal compromisso estará subordinado à soberania de cada país-membro. A vinculação aos comandos dos tratados, em face do MERCOSUL, é, portanto, extremamente tênue quando comparada às disposições emanadas pela União Européia.
Destarte, a execução dos atos promulgados pelos órgãos do MERCOSUL está sujeita, principalmente, aos princípios do pacta sunt servanda e da boa fé, haja vista que inexiste, nesse bloco econômico, instrumento de caráter sancionador capaz de obrigar os Estados a cumprir as determinações exaradas pelas instituições coletivas, salvo raras medidas de efeito compensatório que relativizam a faculdade do Estado-membro de cumprir a norma emanada, mas não são suficientes para dotar de homogeneidade os ordenamentos internos dos Estados-membros signatário do MERCOSUL.
4.3 O Sistema de solução de controvérsias
A solução de controvérsias, em uma estrutura de integração, pode perfazer-se mediante uma série de mecanismos. É possível aos Estados integrantes de um organismo regional adotarem um modelo baseado no sistema clássico de solução de controvérsias, ou semelhante, mas com a imposição da interveniência dos órgãos do bloco econômico (a exemplo do MERCOSUL), ou, ainda, pode ser constituída uma Corte de Justiça supranacional para a resolução das divergências (é o caso da União Européia)[15].
Cumpre salientar que, independentemente do modelo adotado, nada obsta que os Estados, a qualquer momento, em nível político, optem por adotar as formas clássicas de solução de controvérsias[16].
Conforme citado retro, a União Européia adota uma Corte surpanacional para a solução de controvérsias. Essa, sob a denominação de Tribunal de Justiça da Comunidade Européia (TJCE), vale-se de quinze juízes, assistidos por oito advogados-gerais, a fim de julgar todas as questões inerentes à implementação dos tratados que compõem a União Européia. É um sistema que conjuga a ação de um Tribunal supranacional com a de tribunais nacionais, permitindo-se, assim, aos interessados reagir por via de ação ou de exceção contra o comportamento ilegal das instituições.
O TJCE, instituído por meio do Tratado da Comunidade Européia do Carvão e do Aço, em 1952, inovou em diversos aspectos a perspectiva de tribunal comunitário até então existente. A primeira Grande novidade foi a obrigatoriedade da jurisdição, a despeito do sistema clássico, no qual prevalecia a cláusula facultativa de obrigação. Outra transformação essencial foi a legitimidade ad processum conferida às pessoas físicas e jurídicas de natureza privada, as quais passaram a ter acesso direto ao Tribunal, o que jamais havia ocorrido. Além disso, mediante o engenhoso sistema da “questão prejudicial interpretativa”, possibilitou-se dois efeitos inéditos: a uniformidade da aplicação jurisdicional do Direito Comunitário, que passou a vigorar não apenas perante os Estados-membros, mas em face também do Direito interno dos países signatários; e a cooperação integrativa das jurisdições nacionais com a jurisdição comunitária, o que foi eficaz também no processo preenchimento de lacunas, já que o juiz comunitário não pode renunciar a pronunciar-se sobre determinada demanda.[17]
Cumpre aclarar que o TJCE não é um tribunal de recursos em relação às cortes dos Estados-membros. Assim, conquanto seja possível fazer uma censura indireta por meio de acórdãos, não poderá o Tribunal reformar as decisões das ordens internas, devendo observar as fronteiras de sua jurisdição.
Por óbvio, a fim de ter efetivamente caráter de observância obrigatória, é fundamental a existência de meios coercitivos e sancionatórios no âmbito do TJCE. Tendo isso em vista, o Tratado da Comunidade Européia, mediante os arts. 169, 170 e 171, formulou a ação por descumprimento. De acordo com essa, caso um Estado-membro não adote as medidas necessárias para a execução de um acórdão, a Comissão deverá, em princípio, verificar as causas dessa desobediência, procedendo, em seguida, com determinado prazo para que ocorra o devido cumprimento. Permanecendo a inobservância, conceder-se-á o direito de defesa, e, por fim, se for o caso, deverá ser submetida a ocorrência ao Tribunal, juntamente com a indicação da sanção pecuniária correspondente.
No que concerne ao MERCOSUL, o sistema de solução de controvérsias tem por alicerce o Grupo Mercado Comum (GMC) e como instância recursal um Tribunal Arbitral ad hoc. Destarte, regido pelo caráter intergovernamental, resulta claro que inexiste no âmbito do MERCOSUL um Tribunal supranacional.
Franco da Fonseca, com a precisão que lhe é peculiar, esclarece:
O fato, de o MERCOSUL não contar, em sua estrutura administrativo-legislativa, com nenhum órgão supraestatal não lhe retira a natureza jurídica de organização de integração, porquanto esta se caracteriza pela necessidade de adequação de dois ordenamentos jurídicos internos ao quadro normativo instituído pelo tratado constitutivo.[18]
O Protocolo de Brasília para solução de controvérsias dispõe devidamente o modo pelo qual se dará a solução de controvérsias no âmbito do MERCOSUL, dividindo o processo em etapas.
Assim, diante de uma controvérsia, inicialmente, deverão ser procedidas negociações diretas, devendo os Estados-partes informarem à Secretaria Administrativa do MERCOSUL (SAM) a respeito do procedimento e dos resultados das negociações. Em não sendo alcançado acordo, o caso será submetido ao GMC, o qual formulará, em até 30 dias, as recomendações aos países-membros controvertidos. Se, contudo, persistir a divergência, a questão deverá ser submetida ao procedimento arbitral, mediante comunicação à SAM.[19]
O Tribunal Arbitral ad hoc, reconhecido como obrigatório, deverá decidir o litígio pautando-se pelo Tratado de Assunção, pelos acordos firmados no seu âmbito, pelas decisões do Conselho do Mercado Comum (CMC), pelas resoluções do GMC e pelos princípios e disposições de Direito Internacional aplicáveis ao caso[20].
Tal decisão dar-se-á por maioria e será inapelável, conjecturando-se como obrigatória para os Estados-partes na controvérsia, os quais deverão cumpri-la no prazo de quinze dias, salvo disposição diversa do mesmo Tribunal.
A fim de garantir a obrigatoriedade supracitada, estará sujeito o Estado-parte que não cumprir a sentença arbitral a sanção, que será proferida pelo outro país integrante do conflito. Tal medida pautar-se-á por procedimentos clássicos do Direito Internacional Público, como a aplicação de medidas compensatárias (a exemplo da suspensão de concessões ou outras medidas equivalentes), ou mesmo a denúncia do Tratado[21].
É manifesto, todavia, que tal caráter sancionador, no âmbito do MERCOSUL, em virtude do próprio caráter de intergovernabilidade, é desprovido da eficácia verificada em face da União Européia, carecendo de efetiva coercibilidade, notadamente quando os interesses econômicos se sobrepõem aos interesses internacionais do Tratado.
5. CONCLUSÃO
Traçou-se, no presente trabalho, como principal distinção entre a União Européia e o MERCOSUL a dicotomia entre supranacionalidade e intergovernabilidade, realizando, em seguida, um estudo comparado desses dois organismos, no qual se privilegiou as fontes constitutivas do Direito, o sistema de harmonização das legislações internas e os mecanismos de solução de controvérsias. Pôde-se, assim, ter em vista, que a União Européia encontra-se em estágio de integração bem avançado, quando comparado ao MERCOSUL.
Devido a isso, tem-se que a União Européia é dotada de um Ordenamento Comunitário, enquanto, no MERCOSUL, existe tão somente um Direito de Integração.
Urge ressaltar, contudo, que, malgrado seja a União Européia um parâmetro de organismo comunitário regional, cada bloco econômico deve perseguir o seu próprio processo de integração, evitando estabelecer o modelo europeu sem as devidas adequações, sob pena de, possivelmente, fracassar. Foi o que ocorreu na Comunidade Andina, a qual “transplantou” para o seu ordenamento o Direito Comunitário e o instituto da supranacionalidade, estando, há longo tempo, fadada ao insucesso.
A intergovernabilidade reinante no MERCOSUL, por exemplo, apesar das manifestas desvantagens, quando comparado à supranacionalidade européia, tem sido eficiente no processo de integração desse bloco econômico. Isso, porque, nesse modelo, os Estados negociam de forma horizontal, sem a imposição de interesses, permitindo uma maior liberdade, o que é essencial em face das desigualdades socioeconômicas dos Estados-partes.
Para a adoção do modelo supranacional de integração, outrossim, é necessário, além do desenvolvimento harmônico dos Estados integrantes, que existam instituições permanentes, com funcionários próprios, o que evidentemente torna o processo extremamente dispendioso, contrariando a condição econômica dos países da América do Sul.
Destarte, é certo que o MERCOSUL encontra-se em estágio incipiente de integração, de modo que deve evoluir rumo a um mercado comum, com o fito de potencializar os resultados sociais e econômicos alcançados no âmbito regional. Todavia, tal avanço integracionista deve realizar-se de acordo com um modelo próprio, o qual se adéqüe às circunstâncias inerentes aos países que o integram, sem que se proceda à simples transposição do modelo europeu, o qual é extremamente eficiente na Europa, mas não necessariamente o seria na America do Sul.
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[5] PEREIRA, José Gomes Sá. Direito Comunitário Institucional. Porto: Elcla, 1997. Pág. 11
[6] QUADROS, Fausto de. Direito das comunidades européias e direito internacional público: contributo para o estuda da natureza jurídica do direito comunitário europeu. Reimpressão. Lisboa: Almedina, 1991. Pag. 12
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[9] ISAAC, Guy. Manual de Derecho comunitario general. 4ª ed. Barcelona. Ariel. 1997. Pág. 46 e 47.
[10] ALMEIDA, Elizabeth Accioly Pinto de. Mercosul & União Europeia – Estrutura Jurídico- Institucional. Curitiba. Juruá Editora. 1996. p. 96.
[11] Artigo 42 - As normas emanadas dos órgãos do Mercosul previstos no Artigo 2 deste Protocolo terão caráter obrigatório e deverão, quando necessário, ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país
[12] Art. 19, I do Protocoo de Brasília: El Tribunal Arbitral decidirá la controversia sobre la base de las disposiciones del Tratado de Asunción, de los acuerdos celebrados en el marco del mismo, de las Decisiones del Consejo del Mercado Común, de las Resoluciones del Grupo Mercado Común, como así también de los principios y disposiciones del derecho internacional aplicables en la materia.
[13] O art. 100 do Tratado de Roma, que assim dispõe: O Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão, e após consulta do Parlamento Europeu e do Comité Económico e Social, adopta directivas para a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-membros que tenham incidência directa no estabelecimento ou no funcionamento do mercado comum.
[14] SIMIONATO, Frederico Augusto M.. Métodos de harmonização legislativa na União Européia e no MERCOSUL: uma análise comparativa. Pág. 135. In: BASSO, Maristela. MERCOSUL: seus efeitos jurídicos, econômicos e políticos nos estados-membros. - Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997
[15] VALADÃO, Marcos. Op. Cit. Pág. 63
[16] REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público. 2ª ed. São Paulo. Saraiva. 1991. Pág. 342
[17] FONSECA, J. R. Franco da. MERCOSUL: Estrutura Institucional e Sistema de Solução de Controvérsias. In: MERCOSUL: desafios a vencer. Conselho Brasileiro de Relações Internacionais. São Paulo. CBRI. 1994. Pág. 86.
[18] FONSECA, J. R. Franco da. Op. Cit. p. 86.
[19] VALADÃO, Marcos. Op. Cit. Pág. 65
[20] VALADÃO, Marcos. Op. Cit. Pág. 66.
[21] GOMES, Eduardo Biacchi. Op. Cit.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVEIRA, Felipe Arruda Aguiar Sobreira da. Ordenamentos jurídicos da União Europeia e do Mercosul: um estudo comparado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 mar 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46181/ordenamentos-juridicos-da-uniao-europeia-e-do-mercosul-um-estudo-comparado. Acesso em: 22 nov 2024.
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