Resumo: O presente artigo versa sobre a prática recorrente no Brasil dos denominados “autos de resistência”, bem como a sua relação com a violência e eventuais arbitrariedades decorrentes de ações policiais. Para melhor retratar essa realidade, será abordado o famoso vídeo exposto pelo webjornal “Extra” que mostra policiais civis forjando um auto de resistência na favela do Rola no Rio de Janeiro. É imprescindível compreender que essa violência institucionalizada advém de inúmeros fatores, como a falta de investigação policial, o preconceito e a seletividade com as quais a policia atua, sobretudo com os grupos marginalizados.
Palavras-chave: investigação policial; seletividade; preconceito; polícia; grupos marginalizados; exercício da força; arbitrariedade; impunidade; fundada suspeita; autos de resistência; letalidade policial; segurança pública.
1. Introdução
O uso do exercício da força pela polícia, em nome da manutenção da ordem é feito, muitas vezes, de forma arbitrária. A legitimidade desse exercício, não obstante, depende da observância de padrões e procedimentos legais e deve ser feito com base na proporcionalidade. O uso da força letal em específico é um assunto ainda mais complexo e só deve ser utilizado em casos de extrema necessidade. Cabe à polícia preservar a vida de todos, não apenas da vítima, mas também daquele que comete o delito. Na prática, observa-se um distanciamento do plano deontológico e ontológica no que se refere à atuação da polícia.
2. Desenvolvimento
Com base no texto "A letalidade da ação policial: parâmetros para análise" escrito por Adriana Loche, a atuação da polícia no estado de São Paulo em um período analisado - 2000 a 2009 - provocou maior número de mortos do que feridos. Evidencia-se uma postura agressiva por parte da polícia brasileira, representando um risco a todos os cidadãos. A falta de controle do uso desmedido da força policial agrava essa realidade uma vez que ocasiona, em grande parte dos casos, a impunidade dos eventuais abusos cometidos.
A situação torna-se mais arbitrária pela contastação de que as abordagens policiais são feitas, em grande parte, com base no que se chama "fundada suspeita". A suspeição, entretanto, acaba por selecionar um grupo de pessoas que se encaixam no perfil de suspeito que são, em geral, homens, jovens, negros e pessoas de baixa renda. O espaço físico, horário, vestimentas e o próprio movimento dos corpos também são considerados. A mulher branca, idosa com roupas longas, em geral, não se encaixa no perfil de suspeito. Piercings, tatuagens, roupas largas, por sua vez, são marcas do perfil do suspeito. Há também grupos que são considerados mais próximos ou distantes do quadro de suspeição. Grupos religiosos, por exemplo, são, em geral, considerados não suspeitos, enquanto grupos que se voltam contra a ordem como grevistas, são considerados suspeitos.
Evidencia-se que a formação da típica suspeição está orientada por fatores sociais, culturais, históricos econômicos, refletindo uma estrutura social classista e marcada pelo passado de escravidão dos negros. A construção de indivíduos suspeitos e indivíduos não suspeitos, bem como a tipificação de ações suspeitas e ações não-suspeitas estão diretamente aliadas ao fator raça.
É importante lembrar que o infrator ou possível suspeito, independente de quem seja, possui direito à vida e ao devido processo legal como qualquer outro cidadão. Cabe à polícia, dessa forma, quando se depara com uma situação de resistência, eliminá-la de forma razoável, evitando ao máximo a morte do indivíduo resistente. Os chamados “autos de resistência”, entretanto, são recorrentes no Brasil, ocasionando um grande número de mortes que, em geral, não são devidamente investigadas e, sim, aceitas como mera ocorrência da ação policial.
O supracitado “Auto de resistência” é um procedimento administrativo que surgiu durante a Ditadura Militar para legitimar homicídios, que ocorriam com frequência. Quando a polícia entrava em conflito com alguém considerado "bandido" ou "comunista" e ocorria a morte deste, alegava-se que houve resistência à prisão. Esse era o procedimento padrão utilizado. Assim, quando um civil é morto por um agente do Estado, normalmente esta ocorrência é registrada como “resistência seguida de morte” ou “auto de resistência”, partindo-se do pressuposto de que o policial atirou em legítima defesa. O maior problema é que os denominados "autos de resistência” ainda continuam a existir e o número de mortes por ações policiais é deveras significativo.
Na medida em que, a impunidade e falta de investigação é a regra para essas ações, observa-se uma realidade de violência institucionalizada. Em especial nas favelas e regiões de classes marginalizadas, agentes das forças policiais utilizam desse recurso. Essa realidade é claramente observada no vídeo obtido pelo webjornal "Extra", que mostra policiais da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais), a divisão de elite da Polícia Civil, violando a cena de um crime durante operação na favela do Rola, em Santa Cruz, zona oeste do Rio de Janeiro. O vídeo mostra agentes forjando um auto de resistência, mudando o corpo de um dos mortos de lugar - segundo a corporação, foram cinco vítimas ao todo na ocasião. A ação aconteceu no dia 16 de agosto de 2012.
A gravação tem início com um helicóptero monitorando um bar, onde há venda de drogas e dois bandidos portam fuzis. Moradores, incluindo crianças e mulheres, passam normalmente pelo local. Minutos depois, já com as ruas desertas, uma segunda aeronave abre fogo por seis minutos contra o refúgio dos traficantes. Não é possível ver, em momento algum disparos feito da terra em direção à aeronave. Mais tarde, após desembarcarem de um dos helicópteros, policiais correm até o bar metralhado. Lá, ao lado da equipe que chegou por terra, em um veículo blindado, todos comemoram com abraços e sorrisos ao encontrar três corpos. Os agentes falam repetidamente em acionar o socorro, embora as mortes já estivessem sido constatadas. Em seguida, uma outra vítima é encontrada numa casa próxima. Os policiais verificam que este sujeijto não portava arma. E assim rapidamente eles começam a forjar a cena do crime, então, com a ajuda de um lençol vermelho, passam a transportar o corpo em ritmo acelerado por cerca de 70 metros e abandoná-lo no bar que era reduto do tráfico.
O fenômeno da letalidade policial é claramente retratado no vídeo. Na ação policial eles atiram com uma metralhadora de um helicóptero, desconsiderando que poderiam matar pessoas inocentes que não tinham nenhuma relação com o crime organizado. A letalidade é, portanto, consequência da forma arbitrária como os policiais atuam nos espaços sociais complexos e conflituosos, a exemplo das grandes cidades no Brasil, em que muitos policiais acabam por ferir ou matar pessoas inocentes. Historicamente, os policiais brasileiros são conhecidos por excederem seu poder, sobretudo contra determinados grupos sociais como os pobres, jovens, negros e moradores das áreas populares. Os policiais são ainda treinados para fortalecer atitudes machistas e de endurecimento do caráter como formas de sobrevivência diante do risco físico, psicológico e mental, o que os distancia de qualquer apoio social e psicológico.
Falar de padrões operacionais e de letalidade na ação policial é afirmar a importância da realização de uma reforma nessas instituições, para a partir disso, toda a sociedade possa conjuntamente pensar em respostas públicas para os dilemas do modelo de democracia e desenvolvimento do Brasil atual e da presença da polícia nesse contexto. Não podemos acreditar numa sociedade sem a polícia, mas podemos apostar que tais instituições sejam o caminho para um modelo de desenvolvimento baseado no respeito e na paz.
Assim, o que é ainda mais preocupante é o fato dos “autos de resistência” não constituirem um tipo criminal específico e serem, na realidade, crimes de homicídio teoricamente praticados com “exclusão de ilicitude”. Nesse sentido, a realidade é que o registo como “resistência seguida de morte” ou como “auto de resistência” são cada vez mais frequentes, mesmo em casos em que tudo indicava tratar-se de um homicídio, ou até mesmo de execução.
Verifica-se que alto número de homicídios por ações policiais, que são enquadradas, sem a devida investigação como "resistência seguida de morte", são encaradas como simples necessidades do combate ao crime, tornando a força policial carente de parâmetros e controle de fato. O uso da força institucionalizado ocorrendo de maneira arbitrária é um sério risco para todos os cidadãos e uma grande perda para uma sociedade que se paute em princípios democráticos. Esse panorama de falta de investigação propicia ações policiais similares às mostradas no vídeo supracitado, onde estes forjam facilmente um auto de resistência, que na realidade se tratava do crime de homicídio.
Para tentar mitigar esses absurdos, em dezembro de 2012 a Secretaria de Direitos Humanos publicou a resolução n.8 dispondo sobre a abolição da “resistência seguida de morte” nos registros policiais, sugerindo sua substituição por “homicídio decorrente de intervenção policial”. No entanto, apesar de ser uma ação importante do ponto de vista simbólico, na prática há dúvidas se seria realmente capaz de impactar nos índices de letalidade policial ou fortalecer a apuração desses crimes.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança pública feito no ano de 2013, a conclusão alcançada pela FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) é que, considerando apenas os dados do ano de 2012, verifica-se que ao menos 5 pessoas morrem vítimas da intervenção policial no Brasil todos os dias, ou seja, ao menos 1.890 vidas foram tiradas pela ação das polícias em situações de “confronto”. E ainda, tais dados consideram apenas as mortes em confronto, pois se colocarmos os casos em que civis são mortos por policiais fora de serviço, o número fica ainda maior. Portanto, o tema da letalidade policial não pode ser tratado como agenda interditada na segurança pública brasileira, mas como assunto central, para que assim, sejam apontadas mudanças que se mostram urgentes nos padrões de atuação das forças de segurança pública do Brasil.
A partir do exposto, percebe-se que essa reforma da segurança pública deve estar atrelada com uma verdadeira conscientização dos policiais sobre Direitos Humanos, portanto, na formação dos policiais, é essencial abarcar a questão dos preconceito de gênero, de etnia, de ideologia, de credo, de orientação sexual, de nacionalidade. Eles precisam enxergar a democracia como um sistema onde todos são iguais em direitos, mas diferentes no plano individual e grupal.
No texto “DIREITOS HUMANOS: COISA DE POLÍCIA” escrito por Ricardo Balestreri, o qual foi escrito para ser lido justamente por um policial, o autor diz esperar e acredita que continuadamente está tendo o privilégio de testemunhar uma polícia cada vez mais “protagonista” de direitos e de cidadania. Argumentando que antes, a polícia se antagonizava fortemente à comunidade de Direitos Humanos e esta, por sua vez, tinha péssimas experiências, o que terminava por consolidar preconceitos contra a polícia advindos da época da Ditadura Militar. Mas ele considera que hoje praticamente ninguém tem dúvidas a respeito da relevância do papel policial na construção de uma cultura de direitos humanos.
No entanto, depois da apresentação de inúmeras estatísticas e dados, e ainda por meio do comentado vídeo exposto pelo webjornal “Extra” torna-se clara que a questão da letalidade policial e dos autos de resistência é algo muito atual e recorrente, portanto falar que a polícia é uma das maiores promotoras dos direitos humanos soa como algo absurdo e fora da realidade concreta, tendo o autor uma visão muito equivocada da instituição policial, que atualmente, está longe de ser considerada uma instituição que respeita os direitos humanos, sendo, na verdade, uma das maiores protagonistas na violação desse direitos humanos na sociedade.
3. Conclusão
Conclui-se, a partir do exposto, que o tema da letalidade policial focada nos grupos marginalizados da sociedade é bastante atual, o que pôde ser comprovado pelos dados trazidos e ainda pelo vídeo relatado. Nesse contexto, é fundamental uma reestruturação no sistema brasileiro, sobretudo no que tange ao treinamento dos agentes policiais, que deveriam, necessariamente, durante a sua formação, entrar em contato com cursos obrigatórios com foco na importância dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana.
No entanto, o que vivenciamos atualmente é uma realidade na qual a seletividade pautada em questões econômicas-sociais e em questões raciais impera, enquanto a objetividade e o respeito ao devido processo legal da investigação policial acabam ocupando um papel secundário, pois já está impregnada pelo preconceito, a arbitrariedade e a impunidade, que infelizmente, se encontram institucionalizadas no processo de investigação policial.
4. Referências Bibliográficas
1. MISSE, Michel. O Inquérito Policial no Brasil. Uma pesquisa empírica. 2010. Disponível em < www.booklink.com.br >
2. BALESTRERI Ricardo Brisola. Direitos Humanos: Coisa de Polícia – Passo fundo-RS, CAPEC, Paster Editora, 1998
3. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2013. Disponível em <www.forumseguranca.org.br>
4. LOCHE, Adriana. A letalidade da ação policial: Parâmetros para análise
5. “Vídeo mostra policiais civis forjando auto de resistência em favela do Rio.” Disponível em < http://extra.globo.com/casos-de-policia/video-mostra-policiais-civis-forjando-auto-de-resistencia-em-favela-do-rio-8361610.html#ixzz3Kw6pviXY > Acesso em: 3 dezembro 2014.
Graduanda na Universidade de Brasília.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Lara Sena Scapetti. Criminologia Crítica: Auto de resistência e a letalidade policial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 mar 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46235/criminologia-critica-auto-de-resistencia-e-a-letalidade-policial. Acesso em: 22 nov 2024.
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