Resumo: O presente artigo pretende analisar o Direito Penal a partir de uma perspectiva de gênero, mostrando como o crime é uma construção social que subjuga a mulher. O texto revela a seletividade utilizada para encarcerar um determinado grupo e comprova que mesmo dentro do feminismo algumas mulheres são mais prejudicadas que outras. Por fim, a partir da história de Célia, o documento apresenta a realidade de mulheres presas por tráfico de drogas e os motivos que levam a grande maioria a agirem assim.
Palavras-chave: Direito Penal, gênero, crime, seletividade, cárcere, feminismo, tráfico.
1. Introdução
Como toda forma de conhecimento, a criminalidade é um conceito construído, inventado e mais do que isso: é uma relação de poder. São os juristas que decidem quem é criminoso e quem não é, quem vai preso e quem não vai, que tipo de crime é válido e qual é inconstitucional.
O Direito Penal também se submete às relações de gênero e é este o foco do presente artigo. Busca dar visibilidade para aquelas que são tidas como vítimas. Como diz Carneiro (2014): “a validade e a legitimidade da pesquisa feminista não repousam sobre a neutralidade, mas sim no reconhecimento pelo/a pesquisador/a de ua posição situada e de sua capacidade de reconhecer as dimensões hierarquizadas e institucionalizadas das relações de gênero”.
Gênero é um conceito inventado pelo movimento feminista para se contrapor ao determinismo biológico que afirmava que as características de cada sexo era determinada pelo órgão sexual com o qual cada pessoa nasceu. A própria noção da palavra, por ser uma construção em um determinado momento histórico, mudou com o tempo.
Nicholson (2000) ensina que a primeira onda do feminismo se esforçou por lutar pelos direitos civis, de voto e por uma educação para as mulheres. A segunda onda do feminismo, nos anos 60-70, validou o fundamentalismo biológico (crença de que o sexo garante algumas características mínimas de igualdade entre as mulheres, o que determinaria o gênero) o feminismo da diferença (busca pelas diferenças entre homens e mulheres). Assim, o gênero depende do sexo, mas de uma forma complementar.
A terceira onda do feminismo que vale até hoje, baseada na célebre frase de Simone de Beauvoir (ninguém nasce mulher, torna-se mulher), crê que gênero vem antes do sexo. O gênero cria o sexo, porque ele é uma construção social anterior à formação dos corpos pelo nascimento.
A partir dessa perspectiva, se busca analisar o caso de uma ex-preseidiária chamada Célia, a qual foi entrevistada pela autora.
2. Das múltiplas facetas da verdade – um recorte parcial
As narrativas aqui compartilhadas foram realizadas para dar voz às pessoas que geralmente são silenciadas por um sistema violento que se utiliza de estigmas e esteriótipos para conter – e invisibilizar – aqueles e aquelas que não se enquadram à norma. Esses sujeitos que existem à margem têm uma história que não pode ser esquecida e muito menos atenuada por uma moral burguesa ocidental estabelecida pelo patriarcado, que indica os que têm algum valor daqueles que devem se manter nas sombras.
O simples fato de cometer um crime (independente da razão) e ser colocado em uma cadeia já estabelece uma relação de causa-efeito cujo resultado é a o afastamento do outro, a negação da humanidade a quem se considera diferente – pior, infame, indigno. Nestes casos as mais prejudicadas são as mulheres, que ao atuarem ilegalmente são condenadas tanto pelo fato criminoso tipificado em lei quanto por não internalizarem devidamente seus papeis sociais de cuidadoras e mães.
Diz Antony (2007) a respeito da maternidade em mulheres encarceradas que “las mujeres que van a dar a luz san conducidas a un hospital público, donde se las trata em forma discriminadora y vejatoria debido a su condición de transgresoras”.
Os depoimentos colhidos, portanto, apresentam as versões dessas mulheres que foram reprimidas desde o nascimento, com a imposição firme das condutas ditas femininas, até o cárcere, com as consequências da rebeldia masculinizada encarnada na figura de ex-detentas. Não se busca aqui o olhar julgador do ordenamento jurídico, e nem a versão de terceiros que fizeram parte de suas histórias, mas as palavras simples e cruas daquelas que poderiam falar, mas normalmente não o fazem.
Ressalta-se que não há que se falar em apenas uma verdade – ou a da Justiça ou a da mulher – pois cada um enxerga os mesmos fatos a partir da sua realidade e das suas experiências, podendo até mesmo obterem respostas opostas, o que não torna nenhuma delas menos verdadeira. Mas como nem mesmo a ciência se consegue imparcial, o presente artigo se apresenta como um recorte das supostas autoras dos crimes, para uma análise detida dos aspectos simbólicos e materiais de gênero presentes na realidade do cárcere.
Neste sentido, Foucalt (2004) apresenta sua tese das múltiplas verdades, cada uma construída (ou seja, criada, não inata e muito menos universal) de acordo com o momento histórico, com a cultura e com as experências passadas de cada pessoa:
A hipótese que gostaria de propor é que, no fundo, há duas histórias da verdade. A primeira é uma espécie de história interna da verdade, a história de uma verdade que se corrige a partir dos seus próprios princípios de regulação: é a história da verdade tal como se faz na ou a partir da história das ciências. Por outro lado, parece-me que existem, na sociedade, ou pelo menos, em nossas sociedades, vários outros lugares em que a verdade se forma, onde um certo número de regras do jogo são definidas – regras do jogo a partir das quais vemos nascer certas formas de subjetividade, certos domínios de objeto, certos tipos de saber – e por conseguinte podemos, a partir daí, fazer uma história externa, exterior, da verdade. [...]
O que pretendo mostrar nestas conferências é como, de fato, as condições políticas, econômicas da existência, não são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento, mas aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento e, por conseguinte, as relações de verdade.
Da mesma forma, Queiroz (2015) mostra como a verdade pode estar contida apenas na cabeça de quem a concebe, até mesmo apenas depois de vários dias se fazendo acreditar. Nem mesmo a própria imaginação se formando nas brechas da memória pode fazer com que o ocorrido deixe de ser verdadeiro para aquele sujeito.
— Sabe, Heidi, eu escuto tantas histórias. As presas sempre se justificam, e eu fico sem saber quando posso acreditar.
— Quando pode acreditar totalmente? Nunca. Existem muitas verdades no mundo: a verdade da presa, a verdade do juiz, a verdade da vítima. E não é que ela está mentindo, mas é que, na cabeça dela, aquilo é verdade. É a verdade da qual ela se convenceu. Outro dia tive uma conversa fascinante com uma moça que está respondendo por sequestro. Ela disse: “Não, eu tenho fé que vou embora quando chegar o julgamento.” “Por quê?” “Porque eu já estou há sete meses aqui, mas eu não fiz o sequestro.” “Qual foi sua parte, então?” “Ah, eu dei café da manhã, às vezes falava com a vítima, mas ela não pode me reconhecer.” Claro que podia, reconhecer a voz, o corpo. “Mas eu não sequestrei”, ela dizia. Porque, na cabeça dela, o sequestro aconteceu na hora que pegaram a mulher e colocaram no cativeiro. E eu falei: “Mas a mulher ficou quanto tempo com vocês?” “Seis meses.” “Você percebe que essa mulher vai carregar isso para o resto da vida? E que a família também ficou traumatizada por seis meses sem saber nada dela? Você tem filhos?” “Tenho.” “E se alguém fizesse isso com um dos seus filhos?” “Ah! Eu me mataria.” E quer saber? Ainda assim se achava inocente do sequestro.
O presente artigo não procura apresentar todas as verdades exibidas em cada esquina, mas mostrar como toda história tem dois lados. Mais do que isso: tenta dar vóz àquelas que são submetidas a uma dominação silenciosa. Se há imparcialidade, se é tudo uma construção, que seja em prol das mulheres.
3. O crime como construção social: uma abordagem de gênero
Crime é uma conduta típica (descrita no Código Penal e que oferece um mínimo de ofensividade a terceiros), antijurídica (não permitida pelo ordenamento jurídico) e culpável (o sujeito tinha a intenção de praticar o ilícito) idealizada pelo legislador com a intenção de proteger os bens jurídicos mais importantes para a sociedade como um todo. O crime é, portanto, uma construção.
Pimentel (2008) apresenta uma perspectiva sociológica do crime a partir dos estudos de Durkheim e da solidariedade mecânica: crime seria aquela conduta que ofende os sentimentos coletivos, formados a partir do alto grau de semelhança entre os indivíduos, que fazem com que a personalidade individual seja absorvida pelo grupal. Assim, as condutas criminosas seriam essenciais para a vida em conjunto, pois lembraria as pessoas das suas afinidades e aumentaria os laços de solidariedade.
O crime, por ser uma construção criada em uma determinada época, muda com a evolução do pensamento e se desenvolve de acordo com os novos padrões e princípios sociais. Por estar inserido na cultura em um dado momento histórico, trás no seu íntimo uma estrutura baseada no gênero, raça e condição social.
Há crimes que são realizados apenas por mulheres, como é o caso do infanticídio[1], outros que se consumam apenas em mulheres, como o aborto, e aqueles cujas vítimas são só do sexo feminino, como é o feminicídio. Havia também uma defesa utilizada apenas por homens com o fim de se livarem da pena por terem matado suas mulheres, que é a legítima defesa da honra. Nos quatro casos o gênero está presente nos próprios tipos penais e na jurisprudência pátria.
O infanticídio é um meio de deslegitimar uma agressividade feminina – supostamente inexistente no sexo frágil e materno –, e de amenizar as razões que a mulher teria para querer tirar a vida dos seus filhos, já que estaria sob um efeito depressivo pós-parto e não poderia racionalizar suas atitudes.
É o caso de Endina[2] que disse “ter estrangulado com as próprias mãos seu filho Romário, ora justificando sua atitude por sentir ‘raiva’ dos comentários feitos pela família de seu marido no sentido de ser duvidosa paternidade do mesmo, ora dizendo não saber o motivo que a teria levado a tanto, acreditando, assim, ser portadora de algum problema mental”, e acabou sendo diagnosticada com depressão pós-parto, três anos após ter dado a luz.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - HOMICÍDIO PRATICADO CONTRA O PRÓPRIO FILHO - ASFIXIA POR ESTRANGULAMENTO - INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL - PERÍCIA - RÉ PORTADORA DE PERTURBAÇÃO DE SAÚDE MENTAL: DEPRESSÃO PÓS-PARTO - CAPACIDADE PARCIAL DE COMPREENDER O CARÁTER ILÍCITO DO FATO OU DE DETERMINAR-SE CONFORME ESSE ENTENDIMENTO - PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 26 DO CÓDIGO PENAL - POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DE PENA - SEMI-IMPUTABILIDADE' - REQUISITOS PARA A PRONÚNCIA - ART. 408, CÓDIGO PENAL: EXISTÊNCIA DO CRIME E INDÍCIOS DE AUTORIA' - CULPABILIDADE COMO ELEMENTO DO CONCEITO ANALÍTICO DO CRIME - PRESENÇA NO CASO CONCRETO - JULGAMENTO CUJA COMPETÊNCIA É DO TRIBUNAL DO JÚRI (art. 5º, XXXVIII, CF/88). DECISÃO QUE CONTEMPLA CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES REFERIDAS NA DENÚNCIA - IMPOSSIBILIDADE - INFLUÊNCIA NA DOSIMETRIA DA PENA - APRECIAÇÃO QUE COMPETE AOS JURADOS SOB A FORMA DE QUESITOS - EXCLUSÃO A QUE SE PROCEDE DE OFÍCIO. (TJ-MG, Relator: SÉRGIO BRAGA, Data de Julgamento: 15/06/2004) (grifos da autora)
Tenha-se do caso acima que nem a própria Edina acredita ter sido capaz de matar os filhos, porque isso não é típico do papel de boa mãe que as mulheres devem exercer, preferindo carregar sobre si o estigma de uma doença mental. Sobre isso, Carneiro (2014) afirma que “é pensável uma mulher cometer um assassinato em momentos de forte emoção ou loucura. É aceitável que ela o faça em sua legítima defesa, usando a violência como uma forma de fugir desta. Mas não é possível que se destitua de seu papel de mãe e assassine as/os filhas/os, seja por que motivo for”.
O feminicídio[3], por sua vez, é um termo novo, tendo sido inserido no Código Penal brasileiro em 09 de março de 2015. Foi um grande avanço na medida em que deu maior visibilidade à violência contra a mulher, tornando o homicídio por questões de gênero um crime hediondo. Em 2001, uma mulher era espancada a cada 15 segundos. Em 2010, dez anos depois, após a implementação da Lei Maria da Penha, uma mulher era agredida a cada 24 segundos. A criminalização de homicídio em massa por conta do gênero se torna essencial à luta contra o patriarcado e sua violência física e simbólica.
O Código Penal de 1890[4], anterior ao que vigora hoje, deixava de considerar crime os homicídios realizados por uma “perturbação dos sentidos e da inteligência”. Nesses casos, quando uma pessoa era acometida por um sentimento tão forte que a impedia de raciocinar, suas ações delituosas não seriam considerados mais crimes. Assim, Se o homem encontrasse sua mulher na cama com outro, e “experimentasse uma insanidade momentânea”, poderia matá-la e não ser responsabilizado.
Quando implantado o Código Penal de 1940, o artigo 27 foi retirado e os termos utilizados foram mudados para “crimes passionais”, que diminuiriam a pena, mas não absolviriam o culpado. Foi nesse contexto que os advogados de defesa criaram a ideia de “legítima defesa da honra”, pois não aceitavam a mudança que beneficiava as mulheres. O termo foi muito utilizado pelo Tribunal do Júri na década de 90, mas hoje, após intensas lutas feministas, não pode mais ser aplicado.
RESP. JÚRI. LEGITIMA DEFESA DA HONRA. VIOLAÇÃO AO ART. 25 DO CÓDIGO PENAL. SÚMULA 07 DO STJ. 1. Relata a denúncia haver o marido, incurso nas sanções do art. 121, § 2º, incisos I e IV, do Código Penal, efetuado diversos disparos contra sua mulher, de quem se encontrava separado, residindo ela, há algum tempo (mais de 30 dias), em casa de seus pais, onde foi procurada, ao que parece, em tentativa frustrada de reconciliação, e morta. 2. A absolvição pelo Júri teve por fundamento ação em legítima defesa da honra, decisão confirmada pelo Tribunal de Justiça, ao entendimento não ser aquela causa excludente desnaturada pelo fato de o casal estar separado, há algum tempo, e porque "a vítima não tinha comportamento recatado". 3. Nestas circunstâncias, representa o acórdão violação à letra do art. 25 do Código Penal, no ponto que empresta referendo à tese da legítima defesa da honra, sem embargo de se encontrar o casal separado há mais de trinta dias, com atropelo do requisito relativo à atualidade da agressão por parte da vítima. Entende-se em legítima defesa, reza a lei, quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. 4. A questão, para seu deslinde e solução, não reclama investigação probatória, com incidência da súmula 7 do STJ, pois de natureza jurídica. 5. Recurso conhecido e provido. (STJ - REsp: 203632 MS 1999/0011536-8, Relator: Ministro FONTES DE ALENCAR, Data de Julgamento: 19/04/2001, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJ 19.12.2002 p. 454) (grifos da autora)
O Direito Penal, como qualquer outra área de conhecimento, se traduz em uma relação de poder, sendo vertical e imposta por aqueles que detém as supostas verdades universais. Já que construção, o crime é criado como meio de domesticação de corpos, tanto femininos quanto masculinos, mas com o caráter de neutralidade que cobre o aparato da ciência. Também por estar inserido em um contexto de dominação masculina, os delitos constituem uma forma de propagação do patriarcado.
4. A seletividade penal e a necessidade de um feminismo interseccional
Durante muito tempo o Direito Penal foi estudado pelos pressupostos epistemológicos do positivismo[5] com o fim de se tornar uma ciência de controle social. Assim, as pesquisas de campo eram responsáveis por analisar quem eram os criminosos e quais características eles tinham em comum. O crime era tido como uma conduta natural e os sujeitos que o realizava como “criminosos natos”. O determinismo biológico foi fundamental para se provar que a violência e a rebeldia eram parte inata do comportamento e da personalidade dos desviantes. Andrade (1995) assevera que:
O pressuposto, pois, de que parte a Criminologia positivista é que a criminalidade é um meio natural de comportamentos e indivíduos que os distinguem de todos os outros comportamentos e de todos os outros indivíduos. Sendo a criminalidade esta realidade ontológica, preconstituída ao Direito Penal (crimes “naturais”) que, com exceção dos chamados crimes “artificiais”,4 não faz mais do que reconhecê-la e positivá-la, seria possível descobrir as suas causas e colocar a ciência destas ao serviço do seu combate em defesa da sociedade.
Com a vinda da Criminologia moderna se desenhou um paradigma alternativo conhecido como “labelling aproach” ou “etiquetamento”. A nova teoria afirmou que não existe nada como um criminoso nato, já que o crime é uma construção criada por outros homens, os legisladores. Como não se pode descobrir quem vai cometer certa conduta tida por criminosa antes dela ser inserida no ordenamento jurídico, não há que se falar de uma criminalidade ontológica e preconstituida.
Sua proposta é a de que não existe nenhuma pessoa condenada ao crime, mas certos grupos cometem mais delitos porque se atribui a eles uma etiqueta de criminoso. Desta forma, se concebe que o policial, o juiz e todos os responsáveis direta ou indiretamente pela Justiça vão estar atentos aos crimes cometidos por essas pessoas determinadas e não pelos que não se enquadram nos padrões estabelecidos. Andrade (1995) continua:
Uma conduta não é criminal “em si” (qualidade negativa ou nocividade inerente) nem seu autor um criminoso por concretos traços de sua personalidade ou influências de seu meio-ambiente. A criminalidade se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos mediante um duplo processo: a “definição” legal de crime, que atribui à conduta o caráter criminal e a “seleção” que etiqueta e estigmatiza um autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais condutas.
Uma pesquisa realizada pela organização Pastoral Carcerária, Conectas Direitos Humanos e Instituto Sou da Paz nas penitenciárias femininas do Brasil, em 2010, mostrou quem são essas mulheres etiquetatas: a maioria fazia parte de um grupo vulnerável e de exclusão social (classe econômica inferior); a maioria entre 20 e 35 anos; escolaridade baixa (poucas oportunidades); mães solteiras não contavam com a ajuda do marido para o cuidado dos filhos); os crimes realizados eram de menos potencial ofensivo (a maioria por tráfico de drogas).
O Infopen (levantamento nacional de informações penitenciárias) realizado pela Depen (Departamento Penitenciário Nacional), em Junho de 2014, também apresentou uma pesquisa sobre as mulheres encarceradas e mostrou que 27% das presas tinham entre 18 a 24 anos e 23% entre 25 e 29. Em relação à raça, cor ou etnia, destaca-se que mulheres negras correspondiam a 68% da população carcerária enquanto 31% eram brancas. Ressalta-se que a população brasileira em geral é composta por 51% de negros, segundo dados do IBGE. Quanto à escolaridade, 50% tinha ensino fundamental incompleto.
Os dados apresentados são fundamentais para que se possa pensar em um feminismo interssecsional, plural e que contemple todos os tipos de subjetividade feminina. As mulheres negras, as mulheres pobres e as mulheres com pouca escolaridade são as mais visadas pelo sistema penal que invisibiliza suas histórias não só pelo sexo, mas também pela cor das suas peles. O feminismo como luta deve se colocar a dispor de todas, buscando sempre sororidade.
5. Célia: boa mulher, boa irmã, boa filha e criminosa.
Célia tem 29 anos e mora em Santa Maria. Terminou o Ensino Médio na cadeia. Ficou 5 anos presa por tráfico de drogas. Chegou lá com 24 anos. Em 2010 teve seu segundo filho na penitenciária de Brasília. Ficou sete meses com ele e depois o bebê foi levado para o pai. A outra filha também não estava com ela, porque “ela tava mais protegida com o pai”. Afirmou “não vou tirar meus filhos do conforto, pra ir morar comigo se eu não tenho condições nem pra mim mesma”. Hoje sua filha tem 13 anos e seu filho tem 5, de pais diferentes. Os dois cuidam bem das crianças e agora que está em semi-liberdade pode vê-los quando quiser. Apesar de tudo diz que “preocupação são só meus filhos mesmo e minha mãe”.
A mulher teve uma vida baseada no crime. Quando era menor de idade foi presa várias vezes, sendo que apenas em uma foi pro Caje. Depois de maior teve várias passagens pela cadeia, sendo presa por porte de armas em uma vez, em regime aberto. Foi acusada de homicídio depois, mas foi absolvida por falta de provas. E, por fim, foi presa por cinco anos e regime fechado por entrar na cadeia com entorpecentes.
Conta que quando foi condenada pelo porte de armas, a polícia invadiu sua casa e achou os objetos que na verdade eram do seu irmão. Por não querer que ele fosse pra cadeia e para acudir o coração de sua mãe, assumiu o crime, mesmo não tendo sido a responsável por ele. Essa não foi a primeira vez. Em outra oportunidade a polícia entrou em sua casa de novo, mas dessa vez procurando drogas. Quando encontraram as substâncias, Célia se disse culpada. A polícia, no entanto, não acreditou, e nem Denúncia ofertaram contra ela, já que estavam lá procurando seu irmão.
O crime pelo qual foi condenada ao regime fechado foi o mesmo responsável por encarcerar a maioria das mulheres: tráfico de drogas. Sua história não é muito diferente de outras encontradas atrás das celas. O marido de Célia pediu para que ela levasse maconha para dentro do presídio porque ele estava com vontade de usar o entorpecente. Disse que lhe daria dinheiro em troca. Mesmo não tendo pensado na possibilidade anteriormente, por amor ao marido e ao dinheiro fácil que ia receber, decidiu levar. Já na segunda vez foi presa. Disse que o juiz não a condenou pelo crime em si, mas por todas as passagens que tinha na Colméia. A pena mais grave era para que “tomasse jeito”. E de acordo com ela, funcionou.
Ramos (2012) revela que há doze categorias de mulheres no tráfico: a bucha (quem é presa por estar presente durante o flagrante, mesmo não tendo participado), consumidora, mula/avião (quem transporta a droga em pequenas quantidades pra entregar para alguém), vendedora, vapor (quem negocia pequenas quantidades), cúmplice, fogueteira (quem anuncia a chegada da polícia), abastecedora/distribuidora, traficante, gerente, chefe de boca e caixa. As últimas posições são as que exigem penas mais altas, porque estão em um nível superior na hierarquia do tráfico. A maioria das mulheres que chega lá é para dar continuidade ao trabalho do marido ou do irmão. É um posto herdado.
A maior parte das mulheres ainda é presa por ocuparem um espaço enfraquecido dentro do crime, como foi o caso de Célia que foi usada como mula porque levou drogas para dentro da prisão para o marido ou da sua mãe, que foi presa apenas por estar em casa e supostamente “apoiar a conduta dos filhos”. Percebe-se que mesmo dentro da estrutura do tráfico, as mulheres ocupam lugares passivos e de pouco poder ou influência. Ainda ocupam primariamente o papel de mãe e dona de casa, e assumem um cargo (inferior) no crime para complementar o dinheiro de casa em prol dos filhos e do marido.
Isso pode ser enxergado na fala de Carla[6], 23 anos, presa por assalto. Perguntada sobre as diferenças entre o presídio feminino e masculino respondeu que na prisão feminina de Brasília, Colmeia, “tem muita mulher que tá lá, mas que não é do crime. Ou é mãe de um traficante que tava dentro de casa e rodou junto, ou era mulher e tava no desespero querendo ajudar o marido lá dentro e levou uma droga, ou tava junto, entendeu?”.
Ramos (2012), a partir de uma pesquisa empírica, afirma que:
A prisão da maioria das mulheres está relacionada ao envolvimento com um homem, seja, marido, filho ou algum parente.
Diversas são as situações. Da simples presença quando do flagrante que prendeu o companheiro à substituição do marido na administração dos negócios. Quem lida com a realidade carcerária sabe que a maioria das mulheres presas por tráfico referencia um homem, seja aquele que pediu a ela que levasse a droga, seja porque o marido foi preso ou morto ou porque precisou ser sucedido na administração da “boca de fumo” ou dos negócios.
Muitas mulheres assumem os negócios por necessidade de manter a família, sejam aquelas que apenas estavam no local do flagrante, quando da prisão do companheiro, tal fato revela uma mudança no perfil das mulheres presas por tráfico.
Apesar dessa referência, que não pode ser negada, é a necessidade de manutenção da família e das condições econômicas vivenciadas, anteriormente, à prisão dos companheiros ou dos filhos ou mesmo da necessidade financeira que vem levando as mulheres ao trabalho ilícito das drogas.
Muitas mulheres, como se pode constatar na pesquisa, não tinham qualquer relação com o tráfico de drogas, mas com o advento da morte ou da prisão do marido, ou por necessidade de complementação de renda, viram-se obrigadas a correr o risco de serem presas.
Apesar das grandes mudanças ocorrendo dentro do sistema criminal, com mulheres ocupando cada vez mais posições hierárquicas de poder, a maioria delas ainda entram para o crime com a intenção de continuar em seus cargos de mãe e esposa afetuosa, seja para conseguir mais dinheiro e proporcionar uma vida digna para os filhos, seja tentando ajudar o marido nas suas conquistas pessoais.
6. Conclusão
O Direito Penal é um mecanismo de controle social baseado em fatores culturais e históricos. É uma relação de poder exercida por aqueles que detém o conhecimento, as verdades tidas por universais, mascarada por um caráter de objetividade. Sua forma mais reveladora está imbutida em seus próprios tipos penais, que por vezes revelam uma diferença de gênero.
O controle dos corpos femininos realizada pelo patriarcado se dá por modos distintos. Por um lado, transforma as mulheres em seres passivos, gentil, contolados, exercendo o papel social de mães e esposas. Essa primeira maneira se dá pela formação subjetivida da própria mulher que se enxerga desta forma. É o caso de Célia, que foi presa por tentar ajudar o marido e os filhos com o dinheiro que ganharia com a venda de drogas no presídio masculino.
Por outro lado, o poder masculino se fortalece e se reafirma ao recolocar a mulher no seu lugar de submissão quando ela, por algum motivo, se desvia do padrão imposto. Quando a mulher se fortalece, reinterpreta suas verdades, conhece e aceita suas vontades, a sociedade fecha os olhos e subverte as razões das suas ações. Foi o caso de Edina, que matou os filhos, e a justificativa – não dela, mas dos outros – foi a de que sofria de depressão pós-parto.
Neste sentido, Carneiro (2014) justifica que:
Nas várias entrevistas realizadas, com operadores/as de Direito, funcionários da PFDF e até mesmo com as próprias mulheres presas, há uma reprodução continuada e pouco crítica das mulheres como seres não passíveis de cometer um ato criminoso tão violento como o assassinato. Essas interpretações e representações, instituídas no imaginário social, desacreditam as mulheres enquanto atrizes da violência, pois as condicionam a permanecer no espaço privado. Dessa forma, sendo o crime uma ação pública, viril e violenta, considera-se que somente os homens detentores desse espaço são capazes da violência.
A criminologia deve ser estudada a partir do contexto de gênero para que não se invisibilize ainda mais as experiências femininas.
7. Bibliografia
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Queiroz, Nana. (2015). Presos que menstruam. Rio de Janeiro: Record.
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[1]Infanticídio Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena - detenção, de dois a seis anos.
[2] RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 1.0607.02.010553-4/001 - COMARCA DE SANTOS DUMONT
[3] “Homicídio simples
Art. 121. ........................................................................
Homicídio qualificado
§ 2o ................................................................................
Feminicídio
VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
.............................................................................................
§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I - violência doméstica e familiar;
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
[4] Art. 27. Não são criminosos:
§ 4º Os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de intelligencia no acto de commetter o crime;
[5] Corrente que entende o Direito como fenômeno jurídico decorrente do estudo das normas, independente de valores morais, socias ou éticos, como uma ciência baseada em objetividade.
[6] Nome fictício.
Pós graduanda em Direito Constitucional - pela Universidade Anhanguera - UNIDERP. Bacharela em Direito do Centro de Ensino Superior do Amapá.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Maria Lígia Gomes da. Mulheres encarceradas: uma realidade a ser observada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 mar 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46238/mulheres-encarceradas-uma-realidade-a-ser-observada. Acesso em: 22 nov 2024.
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