No mês de homenagem às mulheres, do ano em que a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006) completa 10 anos desde a sua publicação, retoma-se uma pergunta que já foi alvo de debates nesse período: uma lei que “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher” e que, ao mesmo tempo, foi editada para atender um compromisso constitucional de efetivar Convenções Internacionais, protege apenas a mulher? Quem é essa mulher?
Como cediço, foi a repercussão da história da cearense Maria da Penha Maia Fernandes, narrada no livro “Sobrevivi, posso contar”, que fez com que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), acatasse uma denúncia referente ao “silêncio processual do Estado Brasileiro” e condenasse, em 2001, o Governo do Ceará a pagar indenização de 20 mil dólares em favor da vítima, recomendando ainda a adoção de diversas medidas relativas à violência doméstica contra “mulheres” no Brasil, dentre elas a de “simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual”[i].
A efetivação desta recomendação culminou, após longo período de aprovação, na edição da Lei Maria da Penha, em cuja ementa fica claro o seu escopo: criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a “mulher”. Todavia, apesar das cautelas conceituais do legislador, em momento algum, a lei define quem deve ser considerada “mulher”, o que denota a presunção que o sistema jurídico faz de que esse é um conceito incontroverso, discursivamente já definido através de leituras essencialistas.
Contudo, o enfrentamento desta questão exige um exame cauteloso de dois argumentos fortes e igualmente coerentes. De um lado, se verificado o fundamento histórico da sua edição, é possível concluir que a Lei Maria da Penha destina-se apenas às pessoas do sexo biológico feminino, já que se ampara no princípio da isonomia – no qual se preconiza o dever de “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades” – e nas cicatrizes da desigualdade entre os sexos, que implica na relação de dependência entre muitas mulheres e seus companheiros. Por outro lado, se observado que, dentre as diversas ciências, há uma variação do conceito “mulher”, é possível afirmar que, tratando-se de norma penal em branco, à luz da sociologia, “mulher” seria todo aquele que se concebe desta forma socialmente. Isso porque, o conceito de gênero deve ser apreendido a partir dos papéis assumidos por cada um na sociedade, podendo abarcar lésbicas, transexuais, travestis e transgêneros que detenham identidade social com o sexo feminino[ii].
Analisando-se a jurisprudência dos nossos Tribunais, nota-se que, de forma excessivamente perfunctória e literal, são reiteradas as decisões no sentido de que não haveria cabimento a aplicação da Lei Maria da Penha quando a vítima for homem ante a explícita utilização do termo “mulher”[iii]. No entanto, em face da evolução social e necessidade de constante adequação legislativa à realidade e novos valores socioculturais, resta forçosa uma reflexão acerca da literalidade da questão, notadamente com o escopo de conferir efetividade ao princípio da isonomia e da dignidade da pessoa humana, estabelecidos no bojo de uma Constituição que buscou constituir uma sociedade livre de preconceito e de discriminação.
Nesse sentido, é possível afirmar que a discussão acerca do sujeito passivo da Lei Maria da Penha deve recair sobre uma história distinção entre sexo e gênero, que encontra solo fértil nos Estudos Queer e na chamada Terceira Onda do Feminismo. No embrião das mobilizações políticas do movimento feminista, nas quais a protagonista era claramente a mulher branca e de classe média, estavam os direitos civis e as pautas liberais, em especial o direito ao voto.
As primeiras teorias que decidiram estudar a situação social da mulher ainda não concebiam o conceito de gênero, sendo o sexo o único marcador utilizado para diferenciar homens e mulheres, o que acabava, mesmo que não intencionalmente, trazendo para essas discussões sociais uma excessiva ênfase em aspectos biológicos. Autoras notórias, como Simone de Beauvoir, tratavam do feminino ainda como sendo um “segundo sexo”, apesar de já estar presente ali uma oposição discursiva ao determinismo biológico e à leitura do feminino como aspecto diametralmente oposto e derivado da natureza masculina. Foi a partir dessas discussões acadêmicas, introduzidas na Segunda Onda do Feminismo, que se estabeleceu o gênero como o termo usado para falar de aspectos culturais, estando a ideia de sexo mais restrita a disposições anatômicas e biológicas. Essa mudança é fundamental para que se começasse a superar a ideia de que o “feminino” e o “masculino” eram conceitos ontológicos, previamente “dados” pela “natureza”.
Enquanto o que marca a passagem da Primeira para a Segunda Onda é a dissociação entre os termos “sexo” e gênero”, o marco divisor dos Estudos Queer é a ideia de que tanto o que chamamos de sexo, como de gênero, são atravessados pelo crivo da linguagem. Nessa afirmação, é presente a ideia de que não existe nenhum fato biológico ou anatômico que não seja antes percebido e compreendido através de um exercício de leitura e interpretação, o que traz à tona ideias como a de subjetividade e vivência. Na raiz dos Estudos Queer, encontra-se a mobilização política de sujeitos que não se sentiam incluídos nas pautas das políticas públicas, o que abarca transexuais e intersexos. Ao falar de subjetividades e vivências, o queer explicita a importância de considerar opressões de gênero para além de um determinismo biológico, já que a ideia do “feminino” como o polo frágil e inferior vai muito além dos aspectos físicos, estando, no fim, ligada ao desempenho de um papel social que foi estabelecido e impondo uma nova interpretação acerca do termo “mulher”.
O intuito de expoentes queer como Judith Butler em se opor a clássica divisão entre sexo e gênero não é voltar às amarras biológicas[iv]. É, ao contrário, afirmar que, mesmo na ideia de “sexo”, há uma interferência da cultura e da linguagem, que, aliás, são objeto de questionamento pelas famosas Teorias da Argumentação[v]. O objetivo é tratar o “sexo” e o “gênero” como marcadores existentes para além de uma divisão binária, que considera apenas a existência de homens e mulheres, o que acaba por excluir, por exemplo, os indivíduos que nascem com disposições anatômicas que não o classificam em nenhuma das duas categorias.
A proposta das questões de gênero inaugurada pelos Estudos Queer é tratar das opressões sofridas pelos sujeitos a partir da forma individualizada em que ocorre a sua vivência e de como estão estabelecidas as suas relações sociais. Mesmo em relações de dois homens homossexuais, há a possibilidade de estarmos diante de uma situação em que os papeis sociais de “homem” e “mulher” estão claramente definidos e em que, por decorrência, se reflita naquela situação uma violência motivada por gênero.
Em outras palavras, de acordo com os Estudos Queer, não existem papéis sexuais biologicamente inscritos na natureza humana, mas sim formas sociais – e, portanto, variáveis – de desempenhar um ou mais papéis sexuais. A orientação e identidade sexual das pessoas resultam de uma construção social e não de um dado biológico preexistente (nascer com órgão genital masculino ou feminino).
Com efeito, a partir dos Estudos Queer, defende-se que o maior papel da Lei Maria da Penha, em um ideal de isonomia, é proteger pessoas que sofrem formas de violência em razão dos aspectos ligados ao gênero, seja porque nasceram com aspectos biológicos que prontamente as classifique como mulheres, seja devido a vivências, intervenções corporais ou papéis sociais que as torne assim tratadas socialmente.
Isso significa que o biologicamente homem pode ser vítima de violência doméstica e encontrar amparo em todos os institutos e vedações abarcadas pela Lei Maria da Penha, desde que esteja presente a relação de gênero e o estado de vulnerabilidade caracterizado por uma relação de poder e submissão.
Portanto, as conclusões dos Estudos Queer conferem fundamento científico ao entendimento de que a Lei Maria da Penha não pode amparar, restritivamente, pessoas do sexo biológico feminino, concedendo-lhe um argumento sólido quanto a sua legitimidade e coerência constitucional. Nada obstante, é importante observar que, na realidade, com a mera adoção de um método interpretativo sistemático na própria Lei Maria da Penha, já deve ser atribuída uma interpretação sociológica ao termo “mulher”, tendo em vista que a legislação em referência “atribuiu às uniões homoafetivas o caráter de entidade familiar, ao prever, no seu artigo 5º, parágrafo único, que as relações pessoais mencionadas naquele dispositivo independem de orientação sexual”[vi]. Nesse sentido, seria um contra senso afirmar que apenas não estariam tuteladas uniões homoafetivas entre homens em face da impossibilidade de considerar um homem como sujeito passivo da relação de violência especialmente coibida.
[i] Relatório n° 54/01, Caso 12.051, Maria da Penha Maia Fernandes, Brasil.
[ii] DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 3.ed. São Paulo: RT, 2013.
[iii] Cf. TJ/RS - Conflito de Jurisdição nº 70044908549; STJ - CC 96533 / MG; etc.
[iv] SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Tradução de Guacira Lopes Louro. Belo Horizonte: Autêntica, 2012; BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York: Routledge, 1990.
[v] Cite-se como principais expoentes Robert Alexy, Ronald Dworkin, Klaus Günther e Manuel Atienza.
[vi] STJ - HC 203374/MG.
Doutoranda e Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Ciências Criminais pela Universidade da Bahia. Especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra. Professora e Advogada criminalista.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALBAN, Rafaela. Sexo e gênero: breve análise do sujeito passivo da lei Maria da Penha à luz dos estudos Queer Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 abr 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46315/sexo-e-genero-breve-analise-do-sujeito-passivo-da-lei-maria-da-penha-a-luz-dos-estudos-queer. Acesso em: 22 nov 2024.
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