O art. 6º da Lei Complementar 105/2001 acresceu ao ordenamento jurídico pátrio hipótese de transferência de sigilo bancário das instituições financeiras para a autoridade fazendária, condicionada ao cumprimento de determinados requisitos previstos na lei.
Com o seu advento, surgiram diversas vozes doutrinárias questionando se o sigilo bancário poderia ser relativizado por determinada norma infraconstitucional, o que veio a refletir em uma construção jurisprudencial destoante.
Assim, o presente artigo visa dar uma conceituação inicial sobre o tema, percorrendo entendimentos doutrinários abalizados.
Por fim, será feita análise de como evoluiu a jurisprudência sobre a questão até os dias atuais.
Inicialmente, destaca-se que a previsão da inviolabilidade do sigilo bancário possui amparo na própria ordem constitucional, especificamente no famoso artigo 5º da Constituição da República, o qual colaciona uma série de direitos e garantias fundamentais dos indivíduos.
Apesar do pacífico reconhecimento de que o sigilo bancário foi consagrado pela ordem constitucional, destaca-se a existência de divergência sobre o fundamento propriamente dito que daria amparo ao referido sigilo.
Aliás, sobre o tema, defende o professor Marcelo Novelino:
Considerando que a proteção constitucional dada expressamente ao sigilo de dados (CF, art. 5.°, XII) é voltada precipuamente à liberdade das comunicações pessoais, entendemos ser necessário um duplo enquadramento dos dados bancários, fiscais, telefônicos e informáticos:
i) a comunicação dos dados (vedação de sua interceptação) faz parte do âmbito de proteção da liberdade de comunicação pessoal (CF, art. 5.°, XII); ii) o conteúdo dos dados, quando relacionado à vida privada ou à intimidade do indivíduo, faz parte do âmbito de proteção do direito à privacidade (CF, art. 5.°, X). (1, 589)
Independentemente de qual dispositivo em específico fundamenta o sigilo bancário, é possível atestar sua existência como consagrada na ordem constitucional. O instituto pode ser delimitado e conceituado como a própria proteção dada ao conteúdo constante nos extratos bancários (1).
Partindo do pressuposto de que a inviolabilidade possuí assento constitucional, construiu-se, doutrinariamente e jurisprudencialmente, a ideia de que a quebra da proteção dos dados bancários está sujeita a reserva de jurisdição, ou seja, demandaria autorização judicial prévia.
Destaca-se, porém, que, conforme notória e pacífica jurisprudência do Superior Tribunal Federal, a reserva de jurisdição in casu é relativizada quando da solicitação por Comissão Parlamentar de Inquérito para a quebra de sigilo bancário, contanto que respeitado o postulado da colegialidade e a solicitação seja devidamente fundamentada.
Assim, tem-se que a regra geral para a quebra do sigilo bancário é a reserva de jurisdição, relativizando-a, contudo, quando se tratar das Comissões Parlamentares de Inquérito.
A grande celeuma sobre o tema surgiu com o advento da Lei complementar 105/2001, a qual, em seu artigo 6º, previu a possibilidade - suscitada por alguns como uma suposta “quebra de sigilo bancário pela via administrativa” - de que:
“As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente” (2)
Sobre o contexto e os fundamentos que permeiam a criação desse dispositivo, ensina Ricardo Alexandre:
Visando a aparelhar o Estado de instrumentos jurídicos aptos a capacitá-lo a fazer valer, na prática, o princípio da capacidade contributiva, a Constituição Federal de 1988, no mesmo art. 145, § 1.º, ora objeto de discussão, facultou à administração tributária “identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
O próprio legislador constituinte fez uma ponderação entre a finalidade social do tributo e a intimidade dos particulares, entendendo que, dentro da razoabilidade, esta não pode servir como obstáculo intransponível ao Estado, quando este busca tributar cada um na medida de sua capacidade contributiva. Assim, a lei obriga a que cada contribuinte declare anualmente à Secretaria da Receita Federal sua atividade, sua renda, seu patrimônio, seus negócios relevantes.
Com fundamento no mesmo instituto, após o advento da Lei Complementar 105, de 10 de janeiro de 2001, tornou-se possível ao fisco requisitar diretamente às instituições financeiras (sem necessidade de ordem judicial) informações protegidas por sigilo bancário. (3, 102 - 103)
A partir da vigência desta previsão, a questão passou a ser debatida nas doutrinas constitucionais e tributárias, discutindo-se sobre a possível inconstitucionalidade do dispositivo.
Sobre o tema:
A matéria polêmica, entretanto, não gira em torno da possibilidade de a Constituição Federal outorgar diretamente a um órgão o poder de determinar a quebra de sigilo, como ocorre com as CPI. Tampouco há controvérsia quanto à legitimidade de o Poder Judiciário autorizar, mediante requerimento fundamentado de determinadas autoridades administrativas, a quebra de sigilo bancário de pessoas que estejam sobre investigação destas. Tormentosa, sim, é a questão concernente à possibilidade de a lei facultar que autoridades administrativas determinem, por ato próprio, a quebra de sigilo bancário, ainda que obedecidos os procedimentos que a mesma lei estabeleça. (4, 44)
Assim, segue-se para analise abalizada sobre o tema.
A transferência do sigilo bancário prevista na Lei Complementar 105/2001 suscitou divergências no âmbito doutrinário.
Sobre as críticas negativas sofridas pela previsão legal, descreve Ricardo Alexandre:
Não obstante os nobres objetivos visados pela norma, existe considerável corrente doutrinária sustentando haver inconstitucionalidade da previsão. O fundamento desta tese é que o sigilo bancário, apesar de não ser uma garantia absoluta – algo inexistente no direito brasileiro –, somente poderia ceder em face de ordem judicial, e não como decorrência de decisão de natureza administrativa. (3, 104)
Ricardo Alexandre (3, 104) ressalva que o conjunto de restrições previstas no art. 3.º do Decreto 3.724/2001, o qual regulamentou a transferência de sigilo, demonstra que a ponderação (capacidade contributiva e finalidade social do tributo versus direitos individuais) não corresponde ao total abandono de um princípio em favor de outro, as prerrogativas atribuídas à administração tributária, afinal, existem desde que “respeitados os direitos individuais” e “nos termos da lei”.
Nesta toada, defendendo o instituto, versa Leandro Paulsen:
(. . . ) Note-se que o sigilo bancário não constitui um valor em si. Tem cunho meramente instrumental, só se justificando em função da proteção dos verdadeiros direitos fundamentais consagrados constitucionalmente. Não ostenta, de modo algum, caráter absoluto. Na quase totalidade dos países ocidentais, existe a possibilidade de acesso às movimentações bancárias sempre que tal seja importante para a apuração de crimes e fraudes tributárias em geral. No Brasil não é diferente. (. . . ). (5, 271)
Assim, nota-se que a grande celeuma está na possibilidade de relativização, ou não, por norma infraconstitucional, da proteção extraída do texto constitucional ao sigilo bancário, ponderando parte da doutrina pela constitucionalidade da previsão e outra parte pela inconstitucionalidade.
A divergência criada em sede doutrinária se reflete, ou melhor, se refletia, na própria jurisprudência dos tribunais superiores.
O Superior Tribunal de Justiça (6) se posicionou, em 2009, em julgamento por meio da sistemática do recurso repetitivo, no sentido de que o dispositivo previsto no artigo 6º da Lei Complementar 105/2001 era constitucional, utilizando, dentre outros argumentos, a constatação que o dispositivo se perfilava ao preceito constitucional do artigo 145, 1º, da Constituição da República, o qual faculta à administração tributária, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
O referido entendimento, contudo, sofreu restrições posteriores dentro do próprio tribunal quando as informações provenientes do sigilo bancário vieram a fundamentar inquérito penal.
Assim:
PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. 1. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 157 DO CPP. OCORRÊNCIA. CONDENAÇÃO PELO DELITO DO ART. 1º, I, DA LEI N. 8.137/1990. QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO PELA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. NULIDADE DA PROVA. 2. RECURSO ESPECIAL
PROVIDO. 1. Afigura-se decorrência lógica do respeito aos direitos à intimidade e à privacidade (art. 5º, X, da CF) a proibição de que a administração fazendária afaste, por autoridade própria, o sigilo bancário do contribuinte, especialmente se considerada sua posição de parte na relação jurídico-tributária, com interesse direto no resultado da fiscalização. Apenas o Judiciário, desinteressado que é na solução material da causa e, por assim dizer, órgão imparcial, está apto a efetuar a ponderação imprescindível entre o dever de sigilo - decorrente da privacidade e da intimidade asseguradas ao indivíduo, em geral, e ao contribuinte, em especial - e o também dever de preservação da ordem jurídica mediante a investigação de condutas a ela atentatórias.
2. Recurso especial a que se dá provimento para reconhecer a ilicitude da prova advinda da quebra do sigilo bancário sem autorização judicial, determinando-se que seja proferida nova sentença, afastada a referida prova ilícita e as eventualmente dela decorrentes. (7)
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, decisões conflitantes e sem força erga omnes somente aqueciam a discussão, o que, aliás, em nada se coadunava com a pacificação social objetivada pelo direito.
Descrevendo de forma objetiva o auge da celeuma na corte máxima, versa Ricardo Alexandre:
Passada uma década da edição da lei, em fevereiro de 2011, o STF finalmente apreciou a matéria. Entretanto, além de não pôr fim à insegurança jurídica que permeia o tema, tornou-o ainda mais controverso. Em um primeiro julgado, em sede cautelar, o Plenário entendeu, por maioria de 6 votos a 4, que é constitucional o art. 6º, da Lei Complementar nº 105/2001. O raciocínio seguido pela maioria foi o de que a possibilidade de requisição de informação sigilosa pela administração tributária não significaria quebra de sigilo bancário, mas mera transferência de informações sigilosas que continuariam protegidas, tendo em vista as regras sobre sigilo fiscal.
Posteriormente, o mesmo Plenário, por maioria de 5 votos a 4, tomou decisão diametralmente oposta, considerando a norma inconstitucional quando do julgamento do mérito do mesmo caso (RE 389.808). Na prática, a inversão do entendimento se deu em virtude da ausência do Ministro Joaquim Barbosa e da mudança de voto do Ministro Gilmar Mendes, que acatou argumento do Relator Marco Aurélio no sentido de que o princípio da dignidade da pessoa humana impõe o necessário respeito à inviolabilidade das informações do cidadão, que somente pode ceder com intervenção jurisdicional. (3, 104 - 105)
Pode-se imaginar o imbróglio jurídico que surgiu após os supramencionados conflitos jurisprudenciais. O Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal estavam em lados distintos quanto ao tema, sendo que, no caso deste último, a decisão não gerava a segurança ansiada pela comunidade jurídica, seja em razão do quórum da decisão final proferida, seja pelo fato da composição do julgamento ter sido bastante modificada ao longo dos anos.
O tema, finalmente, acabou por ser julgado em sede de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, pacificando o ponto controvertido pela sua constitucionalidade. Diante da importância do tema, transcreve-se a decisão publicada no Diário de Justiça:
Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, apreciando o tema 225 da repercussão geral, conheceu do recurso e a este negou provimento, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello. Por maioria, o Tribunal fixou, quanto ao item “a” do tema em questão, a seguinte tese: “O art. 6º da Lei Complementar 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza a igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal”; e, quanto ao item “b”, a tese: “A Lei 10.174/01 não atrai a aplicação do princípio da irretroatividade das leis tributárias, tendo em vista o caráter instrumental da norma, nos termos do artigo 144, §1º, do CTN”, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello. Ausente, justificadamente, a Ministra Cármen Lúcia. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 24.02.2016. (8)
O entendimento que prevaleceu foi o de que o cerne da questão não era a possibilidade de “quebra” em si do sigilo bancário. O enfoque da norma, na verdade, era tratar de transferência das informações sigilosas da órbita bancária para a fiscal, estando as informações, em ambas as esferas, protegidas do acesso de terceiros. Consoante, conclui-se que, seguindo o raciocínio de que não há propriamente “quebra” do sigilo das informações, mas só a transferência deste para o órgão fazendário, não subsistem quaisquer fundamentos para a suposta ofensa à Constituição Federal ou à reserva de jurisdição.
O referido entendimento jurisprudencial, inclusive, acabou por privilegiar o combate as ações ilícitas que lesavam a sociedade brasileira por meio do uso abusivo e distorcido da garantia da inviolabilidade do sigilo bancário.
Assim, conclui-se que, independente do embasamento teórico a ser utilizado, não há como se falar em ausência de previsão constitucional resguardando o sigilo bancário. Não é este, aliás, o fundamento das decisões que o afastam situações excepcionais.
Evidentemente que há fundamentos sólidos tanto para a defesa quanto para o questionamento da constitucionalidade do artigo 6º da Lei Completar 105/2001, o que justifica a existência de jurisprudência conflitante até recentemente.
Contudo, com o tema decidido em sede de repercussão geral, a matéria tende a se pacificar pela constitucionalidade do dispositivo pertencente a Lei Complementar 105/2001, considerando-se como fundamento decisório principal o fato de que não se está a falar propriamente de uma quebra de sigilo bancário, mas de uma transferência de sigilo, devidamente fundamentada e procedimentalizada, imputando-se aos órgãos fazendários a obrigação de manter e preservar o sigilo da informação recebida.
NOVELINO, M. Manual de Direito Constitucional. 9º edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014. Citado 2 vezes nas páginas 2 e 3.
BRASIL. LEI COMPLEMENTAR Nº 105, DE 10 DE JANEIRO DE 2001. 2001. Acesso em 12 de abril de 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil\_03/ leis/LCP/Lcp105.htm>. Citado na página 2.
ALEXANDRE, R. Direito Tributário Esquematizado. 9º. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015. Citado 3 vezes nas páginas 3, 4 e 5.
ALEXANDRINO, M; PAULO, V. Direito Tributário na Constituição e no STF. 17º edução. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014. Citado na página 3.
PAULSEN, L. Curso de Direito Tributário - Completo -. 7º edição. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. Citado na página 4.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1134665/SP. Relator: FUX, Luiz. 2009. Acesso em 12 de abril de 2016. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=932315&num\_registro=200900670344&data=20091218&formato=PDF>. Citado na página 4.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial nº REsp 1361174/RS. Relator: BELLIZZE, Marco Aurélio. . 2014. Acesso em 12/04/2016. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC& sequencial=35572042&num\_registro=201300084170&data=20140610&tipo=5& formato=PDF>. Citado na página 5.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 610.134. Relator: FACHIN, Edson. Publicado no DJE de 26-02-2016. p. 85. Acesso em 15 de abril de 2016. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=10373208& tipo=DJ&descricao=DJENunhboxvoidb@x{def{MessageBreakforsymbol‘ textordmasculine’}edefT1{TS1}xdefT1/phv/m/it/12{T1/phv/m/n/12}egingroup escapecharm@neletMT@subst@T1/phv/m/it/12def{@@par}}37-26/02/2016>. Citado na página 6.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Caio Cavalcanti Amorim. A evolução doutrinária e jurisprudencial acerca da constitucionalidade da transferência do sigilo bancário prevista na Lei Complementar 105/2001 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46459/a-evolucao-doutrinaria-e-jurisprudencial-acerca-da-constitucionalidade-da-transferencia-do-sigilo-bancario-prevista-na-lei-complementar-105-2001. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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