O direito busca regular a vida das pessoas usando de normas justas visando ao bom convívio social. Para tanto usa de diversos princípios para concretizar sua busca ao ponto ideal de controle entre o indivíduo e a sociedade.
Como início desta valorização do indivíduo no Sistema Jurídico Pátrio atual, temos o Artigo primeiro do Código Civil que logo vem a estabelecer direitos e deveres a todas as pessoas, respeitando a individualidade de cada um e possibilitando sua participação na sociedade.
Todavia, buscando exatamente individualizar a pessoa e perceber suas necessidades para exercer estes direitos e assumir obrigações, já nos artigos terceiro e quarto se estabelece limitações ao exercício destes direitos. Isto porque estas pessoas, por algum motivo, não são consideradas aptas a realizarem plenamente os atos da vida civil, da vida em sociedade, como a grande maioria de seus demais membros.
Os motivos que levam estas pessoas a ser consideradas inaptas a exercerem os atos da vida civil como os demais são os mais variados, sejam fatores médicos-psicológicos, a idade (biológicos), a dependência de substâncias psicoativas específicas, compulsão financeira patológica, enfim, situações que precisam de auxílio para exercerem plenamente seus direitos e obrigações.
Ao longo dos anos a concepção de pessoa consideradas incapazes trazida no Código Civil de 1916 foi mitigando para hoje termos um panorama bem diferente a aquele. Mas até mesmo o Código Civil de 2002 foi modificado severamente pela Lei 13.146/15, o Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Não todas as alterações foram bem aceitas pelos juristas e precisam ser analisadas para se estabelecer o seu impacto no ordenamento cível e seus reflexos na pessoa do incapaz. Uma destas modificações foi a alteração do tipo de incapacidade da pessoa que não pode exprimir sua vontade o que passaremos a analisar.
O Código Civil de 1916 esteve eficaz até que a Lei 10.406/02, o Código Civil brasileiro atual, revogou o antigo e passou a viger em 2003. Neste novo diploma legal, buscou de início estabelecer o alcance da incapacidade tomando como padrão o discernimento do indivíduo.
Para as pessoas sem discernimento atribuía a incapacidade absoluta para todos os atos da vida civil, enquanto que para os que apresentavam um pouco de discernimento conferia a incapacidade relativa para alguns atos da vida civil ou a maneira de os exercer.
Com a visão diferente do Código Civil antigo, o Novo Código Civil define que esta maior ou menor proteção se daria em face do grau de discernimento ou necessidade que a pessoa tivesse para realmente avaliar o que seria melhor para si, eis a grande modificação conceitual entre os textos.
O objetivo para se limitar o exercício dos direitos civis tem por cerne a proteção do indivíduo dos riscos em assumir obrigações que podem lhe comprometer o bom andar de suas vidas diante da falta de compreensão da realidade que teriam estas pessoas, buscando manter sua dignidade. Por isto, estabelecer o grau de comprometimento do discernimento para adequar a lei às suas necessidades e individualidade.
Pela reprodução do texto original dos Arts. 3º e 4º do Código Civil, podemos perceber o alcance da incapacidade e suas espécies:
Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
I - os menores de dezesseis anos;
II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;
III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:
I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;
III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;
IV - os pródigos.
Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.
A princípio pode-se destacar a diferença de alcance dos dois institutos. Para a Incapacidade civil absoluta temos que o alcance se estende a todos os atos da vida civil, enquanto que para a incapacidade relativa se resume a certos atos ou a maneira de os exercer.
Para a incapacidade relativa, diante do pouco discernimento que contempla o incapaz, o legislador preferiu lhe respeitar a vontade para algumas situações, como para o Pródigo ao qual sua incapacidade só atinge alguns direitos que extrapolem a mera administração de seus bens, como se vê pelo Art. 1.782 do Código Civil:
Art. 1.782. A interdição do pródigo só o privará de, sem curador, emprestar, transigir, dar quitação, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandado, e praticar, em geral, os atos que não sejam de mera administração.
Mostra-se, assim que o Pródigo poderá decidir as demais coisas sobre a sua vida, como casar, constituir família, viajar, etc, sem que o curador tenha que ser consultado.
Aliás, a consulta é outra característica diferenciadora dos institutos, que vai se encaixar na expressão “a maneira de os exercer”, contida no final do caput do Art. 4º do Código Civil.
Para o relativamente incapaz, diante do seu parco, mas existente discernimento, garantiu-se que ele participasse dos atos que lhe impusessem obrigações, contudo deverá ser assistido por um curador, os pais ou o tutor, a quem caberá a palavra final sobre a obrigação que assumirá o incapaz. O Instituto aplicável é o da assistência.
Isto é bem diferente do que ocorre com os absolutamente incapazes, pois estes não opinam e o ato é exercido por intermédio de um representante a quem estabelecerá a melhor escolha dentre as possíveis para o incapaz.
O representante, diante as modificações trazidas com o Estatuto da pessoa com deficiência, o instituto da incapacidade absoluta restou somente aos menores de 16 anos de idade (menor impúbere), como se pode ver pela nova redação do Art. 3º do Código Civil:
Art. 3º. São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.
Neste caso, o instituto da representação ficou restrito aos pais e aos tutores. Como determina os Arts. 1.690, 1.728 e 1.747, do Código Civil:
Art. 1.690. Compete aos pais, e na falta de um deles ao outro, com exclusividade, representar os filhos menores de dezesseis anos, bem como assisti-los até completarem a maioridade ou serem emancipados.
Art. 1.728. Os filhos menores são postos em tutela:
I - com o falecimento dos pais, ou sendo estes julgados ausentes;
II - em caso de os pais decaírem do poder familiar.
Art. 1.747. Compete mais ao tutor:
I - representar o menor, até os dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-lo, após essa idade, nos atos em que for parte;
Como se verifica nos artigos acima transcritos, quando a idade é o elemento limitador da capacidade compete aos pais e, na falta destes, os tutores que sucederão aos pais no cuidados dos menores em razão do falecimento destes ou da retirada do poder familiar.
Deduz-se, portanto, que a incapacidade absoluta não se estabelece em juízo, mas sim na lei que traz a hipótese biológica para tanto, o menor impúbere.
Desde a publicação do Código Civil de 2002 se atribuiu uma nova hipótese de incapacidade absoluta que seriam os que, mesmo por causa transitória, não pudessem exprimir a vontade, que abrangeriam os surdos mudos que não conseguissem se comunicar com as demais pessoas para externar sua vontade e outras pessoas em situações especiais que não lhe permitissem expressar a vontade, p.ex.: que estivessem em coma.
De fato, o que se tinha era uma abrangência do instituto da incapacidade civil absoluta, não só para as pessoas que não tinham discernimento, mas para aquelas que não conseguissem externar a sua vontade.
Aparentemente situa-se um conflito desta alteração aos institutos da incapacidade absoluta e relativa, por sua inadequação conceitual aos institutos da representação e assistência.
Cabe lembrar que a pessoa que não pode exprimir sua vontade não poderá participar da celebração do ato jurídico, afinal de contas ela não tem como exprimir sua vontade. Mas também é preciso estabelecer que o instituto da incapacidade relativa implica em dizer que para a perfeição na celebração do ato jurídico o incapaz deve participar do ato jurídico externando a sua vontade em conjunto com os seus assistentes.
Vejamos o que defendeu GAGLIANO E PAMPLONA FILHO (2012, p. 150):
“Já o suprimento da incapacidade relativa dá-se por meio da assistência. Diferentemente dos absolutamente incapazes, o relativamente incapaz pratica o ato jurídico juntamente com o seu assistente (pais, tutor ou curador), sob pena de anulabilidade.”
Marcos Ehrhardt Jr. (2011, p. 143) também se pronuncia a respeito dos relativamente incapazes afirmando:
“Já nos relativamente incapazes, descritos no art. 4º do CC/02, sua opinião é relevante para o Direito e sem sua vontade (ou contra ela) o ato jurídico não se constitui.”
Alguns negócios jurídicos estão inviabilizados, p. ex.: o que possibilita a continuidade do exercício da atividade empresária por meio do Incapaz. Como se depreende da leitura do Art. 974, III, do Código Civil:
“Art. 974. Poderá o incapaz, por meio de representante ou devidamente assistido, continuar a empresa antes exercida por ele enquanto capaz, por seus pais ou pelo autor de herança. (...)
III – o sócio relativamente incapaz deve ser assistido e o absolutamente incapaz deve ser representado por seus representantes legais”
Embora não tenha modificado a interpretação do instituto, o transporte da hipótese da pessoa que não tem como exprimir sua vontade para os relativamente incapazes, trouxe surpresa e estranheza para alguns juristas.
Para viabilizar a eficácia do instituto, a decisão judicial que decretar o curador o terá que o denominar de representante para que este possa agir em nome do representado já que o curatelado (representado) não pode participar dos atos jurídicos, pois, por óbvio, estes não teriam como fazê-lo diante da impossibilidade que lhe acomete.
A própria lei traz sua adequação, nos Artigos 1.767 e 1.772, quando estabelece a necessidade de interdição para a pessoa que não puder exprimir sua vontade e, quando atribui ao juiz o dever de ajustar os poderes do curador segundo as potencialidades do curatelado, conforme se extrai dos artigos do Código Civil abaixo transcritos.
Art. 1.767. Estão sujeitos a curatela:
- aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;
Art. 1.772. O juiz determinará, segundo as potencialidades da pessoa, os limites da curatela, circunscritos às restrições constantes do art. 1.782, e indicará curador.
Neste caso, o legislador encerrou a partição do instituto da assistência e da representação, como até então se tinha: a representação aplicada para os absolutamente incapazes e a assistência para os relativamente incapazes.
Com a modificação no Código Civil já vigente desde o dia 02 de janeiro de 2016, o magistrado deve avaliar cada caso e modular os poderes do curador em razão das potencialidades da pessoa com deficiência, neste caso a deficiência que impede externar a vontade. Sobretudo, estando a pessoa incapacitada de participar do ato da vida civil, o juiz deverá conceder ao curador os poderes de representar os interesses do curatelado junto as demais pessoas, mesmo este sendo um relativamente incapaz na classificação estabelecida nos artigos 3º e 4º do Código Civil.
Como não poderia deixar de ser, o Código Civil se rendeu as modificações sociais e se adaptou as descobertas científicas ao longo dos tempos.
O legislador foi corajoso, percebeu a injustiça social com os surdos-mudos e lhe retirou o estigma que muito lhes prejudicava. Deixou claro que não era o surdo-mudo que precisaria de proteção e sim as pessoas que não pudessem exprimir a própria vontade.
O Estatuto civil, privilegiando a dignidade da pessoa humana, fincou valores e bateu de frente com o conservadorismo e preconceitos da sociedade para viabilizar a inclusão social dos deficientes e os tornou plenamente capazes, sem lhes abandonar totalmente, pois ainda previu algumas formas de proteção.
Enfim, assumiu seu viés de inclusão social, buscando uma sociedade livre justa e solidária que só existe possibilitando que o ser humano tenha dignidade, possa participar livremente da sociedade que pertence e tomar as rédeas da sua vida.
Para tanto teve que alterar o padrão existente até então da partição da representação e assistência para determinado tipo de incapacidade. Deste modo, restou ao magistrado o dever de distinguir as necessidades do deficiente e as suas potencialidades para lhe suprir as necessidades através de um assistente ou representante. O que melhor lhe servir.
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Especialista em Direito Civil. Pós graduado ela ESMA-PB. Professor na Faculdade Maurício de Nassau em Campina Grande. Advogado militante.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARTHUR DA GAMA FRANçA, . A modulação dos poderes do curador pelo magistrado na hipótese da pessoa que não pode exprimir sua vontade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 abr 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46464/a-modulacao-dos-poderes-do-curador-pelo-magistrado-na-hipotese-da-pessoa-que-nao-pode-exprimir-sua-vontade. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
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Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
Por: PRISCILA GOULART GARRASTAZU XAVIER
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