RESUMO: O presente artigo objetiva, inicialmente, verificar a natureza jurídica da decisão de pronúncia proferida pelo juiz togado na primeira fase do rito Tribunal do Júri. Por conseguinte, será possível delinear os limites da fundamentação dessa decisão para que não macule os princípios constitucionais do devido processo legal e da presunção de inocência do acusado. Ao final, o texto visa indicar as consequências processuais necessárias caso haja excesso proibido nas palavras que o magistrado se utiliza para pronunciar o réu.
Palavras-chave: Processo Penal. Tribunal do Júri. Pronúncia. Excesso de fundamentação.
1. INTRODUÇÃO
No âmbito do procedimento relativo aos processos de competência do Tribunal do Júri, a pronúncia é a única das possíveis decisões a serem proferidas pelo judicium accusationis – que também pode impronunciar, absolver sumariamente ou desclassificar a infração penal – que impõe o prosseguimento do processo criminal na vara onde tramita e, por conseguinte, importa no julgamento do réu perante o retrocitado Tribunal. Assim, ao pronunciar o réu, o magistrado admite a acusação inserta na denúncia ou queixa-crime subsidiária.
Essa admissão – ou seja, a decisão de pronúncia – está condicionada, de acordo com o art. 413 do Código de Processo Penal, com o convencimento do juiz sobre a materialidade do fato e a existência de indícios suficientes de autoria ou de participação. Ademais, concomitantemente a esses requisitos, deve haver indicativos de que o réu atuou com o dolo de matar e de que não existem provas inequívocas de quaisquer das situações do art. 415 do CPP (prova da inexistência do fato, de não ser o réu autor ou partícipe; do fato não constituir infração penal; ou de causa de isenção de pena ou de exclusão do crime), para que se dê o prosseguimento ao processo em direção ao judicium causae – segunda fase, perante o Conselho de Sentença.
Ocorre que, como na segunda fase o procedimento será presidido por um juiz togado que apenas prepara o processo para que o acusado seja julgado por um grupo de jurados juridicamente leigos (conselho de sentença), faz-se mister apresentar os limites da pronúncia proferida na primeira fase.
2. DOS LIMITES A SEREM OBSERVADOS NA FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DE PRONÚNCIA
Primeiramente, cumpre observar que a decisão de pronúncia possui conteúdo declaratório, uma vez que o magistrado limita-se a proclamar a admissibilidade da acusação, para que o réu seja julgado pelo júri popular[1]. Assim, não há decisão de mérito, não há condenação, ignorando-se, ainda, a culpa do acusado.
Nesse sentido, resta indubitável que a natureza jurídica desse decisum é de “decisão interlocutória mista não terminativa”[2], pois encerra uma fase do procedimento sem por fim ao processo (mista), e não decidiu, avaliou, o meritum causae – pois se julgasse o mérito condenatório seria definitiva. Desta feita, é indispensável que a pronúncia seja prolatada em termos sóbrios, sem expressões incisivas ou juízo de certeza – porém, com possibilidade da acusação, com fatos aptos ao julgamento de leigos –, evitando-se quaisquer avaliações pessoais no tocante ao acusado, e demonstrando-se uma síntese racional e equilibrada do magistrado que apenas admite a continuidade do feito.
Enfim, a pronúncia é uma decisão com fundamentação técnica, sem valoração subjetiva em prol de uma parte ou de outra[3] - no entanto, com evidente necessidade de fundamentação sobre a persistência da persecução criminal até o júri leigo[4]. É no entendimento esposado, aliás, que o art. 413, §1º, CPP, afirma que “a fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena”.
A necessidade disso, como já explicado, concerne-se no fato dos jurados leigos receberem cópia desse decisum, o que poderia influenciá-los na formação de seu convencimento, colocando-se em risco a própria soberania dos veredictos[5]. Sendo assim, a consequência de termos injuriosos e frases de efeito contra a defesa ou a acusação é a nulidade da decisão.
Evita-se, assim, o que a doutrina intitula de “excesso de linguagem”. Como já é possível compreender, esse fenômeno constitui ilegítima antecipação de julgamento, pois ultrapassa o mero juízo baseado na suspeita, e expressa a certeza de uma sentença condenatória, com pormenorizada análise do conteúdo probatório. Tal fato suscitaria reflexos destrutivos no devido processo legal, notadamente no que tange à imparcialidade, ampla defesa e presunção de inocência. Logo, é imprescindível que a decisão seja fundamentada em uma linguagem prudente, comedida, que se abstenha de aprofundar as provas, incapaz de exercer influência sobre os jurados, sob pena de provocar a nulidade de sua decisão em razão das expressões utilizadas pela autoridade julgadora da primeira fase.
É nesse diapasão que se encontra a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, senão vejamos:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. DOLO EVENTUAL. CULPA CONSCIENTE. PRONÚNCIA. TRIBUNAL DO JÚRI.
1. Admissível, em crimes de homicídio na direção de veículo automotor, o reconhecimento do dolo eventual, a depender das circunstâncias concretas da conduta. Precedentes.
2. Mesmo em crimes de trânsito, definir se os fatos, as provas e as circunstâncias do caso autorizam a condenação do paciente por homicídio doloso ou se, em realidade, trata-se de hipótese de homicídio culposo ou mesmo de inocorrência de crime é questão que cabe ao Conselho de Sentença do Tribunal do Júri.
3. Não cabe na pronúncia analisar e valorar profundamente as provas, pena inclusive de influenciar de forma indevida os jurados, de todo suficiente a indicação, fundamentada, da existência de provas da materialidade e autoria de crime de competência do Tribunal do Júri.
4. Recurso ordinário em habeas corpus a que se nega provimento. (STF. RHC: 116.950-ES, Primeira Turma, Relatora: Min. Rosa Weber, Julgamento: 03/12/2013, DJe-031: 13/02/2014, Publicação: 14/02/2014) – grifei.
SENTENÇA DE PRONÚNCIA – AUTORIA E QUALIFICADORA – CONCLUSÃO – IMPROPRIEDADE. Surge discrepante do figurino legal sentença de pronúncia que, embora lançada em página e meia, contém notícia de ser certa a autoria e de encontrar-se provada a qualificadora. (STF, RHC 103.078-PE, Primeira Turma, rel. Min. Marco Aurélio, Julgamento: 21.08.2012, DJe-126, Publicação: 28/06/2012) – grifei.
Cumpre destacar ainda que a doutrina e o Pretório Excelso também denominam o excesso de linguagem de eloquência acusatória, no que diz respeito à antecipação do juízo de culpa – pronuncia o réu em razão da “convicção da sua culpabilidade” – na decisão de pronúncia. Nesse caso, afastam-se as teses especificamente da defesa, sendo um fato gerador da nulidade absoluta. Vejamos a utilização da Suprema Corte sobre a expressão e o tema:
Pronúncia: nulidade por excesso de "eloqüência acusatória".
1. É inadmissível, conforme a jurisprudência consolidada do STF, a pronúncia cuja fundamentação extrapola a demonstração da concorrência dos seus pressupostos legais (CPrPen, art. 408) e assume, com afirmações apodíticas e minudência no cotejo analítico da prova, a versão acusatória ou rejeita peremptoriamente a da defesa (v.g., HC 68.606, 18/06/91, Celso, RTJ 136/1215; HC 69.133, 24/03/92, Celso, RTJ 140/917; HC 73.126, 27/02/96, Sanches, DJ 17/05/96; RHC 77.044, 26/05/98, Pertence, DJ 07/08/98).
2. O que reclama prova, no juízo da pronúncia, é a existência do crime; não, a autoria, para a qual basta a concorrência de indícios, que, portanto, o juiz deve cingir-se a indicar.
3. No caso, as expressões utilizadas pelo órgão prolator do acórdão confirmatório da sentença de pronúncia, no que concerne à autoria dos delitos, não se revelam compatíveis com a dupla exigência de sobriedade e de comedimento a que os magistrados e Tribunais, sob pena de ilegítima influência sobre o ânimo dos jurados, devem submeter-se quando praticam o ato culminante do judicium accusationis (RT 522/361). (STF. HC 85.260-RJ, Primeira Turma, Relator: Sepúlveda Pertence, Data de Julgamento: 15/02/2005, Data de Publicação: DJ 04/03/2005, pp-23) – grifei.
É importante frisar que no julgamento do HC 96.123, o Ministro Marco Aurélio manifestou que não mais seria possível a nulidade da pronúncia em razão da eloquência acusatória, pois a partir da lei 11.689/08, a pronúncia não mais pode ser lida aos jurados como argumento de autoridade. A doutrina, com sua razão, critica essa posição – afirmando que se trata de falha e minoritária –, uma vez que os jurados recebem cópia da decisão de pronúncia (art. 472, parágrafo único, CPP), e devem ser alfabetizados, o que indica que certamente irão ler a decisão.
Ademais, em relação à consequência da eloquência acusatória, o Superior Tribunal de Justiça já demonstrou vários entendimentos divergentes, seja pelo simples desentranhamento da pronúncia dos autos (evitando-se que os jurados tenham-lhe acesso) e o aproveitamento de todo o processo (Resp. 982.033-PR[6]), seja pela nulidade da decisão e dos atos conseguintes.
De qualquer forma, e finalmente, não se pode olvidar que a posição atual e majoritária da Suprema Corte, guardiã da Constituição Federal, é pela nulidade da pronúncia. Nesse sentido, verificado o excesso de linguagem – ou eloquência acusatória –, a pronúncia deve ser declarada nula, e os autos baixados para que o juiz profira uma nova decisão, refazendo-se o processo a partir dali. Essa ideia de declarar nula a pronúncia, e, por consequência, todos os atos subsequentes, refazendo-se tudo a partir dali, é consubstanciada no princípio da consequencialidade, conforme se extrai do HC 103.037.
3. CONCLUSÃO
Portanto, evitando-se qualquer excesso nos termos e expressões utilizados na fundamentação da pronúncia, faz-se valer o verdadeiro Estado Democrático de Direito, e o Direito Processual Penal Constitucional, pelo qual se prezam o devido processo constitucional e seus princípios derivados, bem como a soberania do veredicto, que não se mostrará influenciado por determinadas expressões proferidas pela autoridade do juiz togado da primeira fase do rito do Tribunal do Júri.
Finalmente, ressalte-se que se a necessidade de decretar a nulidade da pronúncia for verificada, também serão nulos os atos processuais consecutivos para que outra decisão seja proferida (pelo magistrado da primeira fase). Ademais, deverão ser adotadas todas as providências para que os jurados não tomem conhecimento daquele decisum já nulo, o que poderá ser feito com o seu desentranhamento e envelopamento – porém, estes sempre deverão estar acompanhados da decretação de nulidade.
REFERÊNCIAS:
AVENA, Norberto. Processo Penal: Esquematizado. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 11ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014. (versão pdf).
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 5ª ed. rev. ampl. e atual. Bahia: Juspodivm, 2011.
[1] AVENA, Norberto. Processo Penal: Esquematizado. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. p. 759.
[2] Nesse sentido: AVENA, Norberto. Processo Penal: Esquematizado. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. p. 759. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 11ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 537. (versão pdf). TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 5ª ed. rev. ampl. E atual. Bahia: Juspodivm, 2011. p. 761.
[3] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 5ª ed. rev. ampl. E atual. Bahia: Juspodivm, 2011. p. 762.
[4] Frise-se, ainda, que no que tange a outros elementos relacionados à imputação, o juiz somente não deve avaliar aqueles da aplicação da pena, como é o caso das agravantes, das atenuantes e das circunstâncias judiciais, por não se tratar de momento oportuno, já que não houve condenação. Entretanto, é importante que o magistrado averigue as qualificadoras, pois integram o enquadramento do tipo derivado apontado nos fatos. Devem ser afastadas apenas as qualificadoras veementemente improcedentes.
[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 11ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 537. (versão pdf).
[6] PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRONÚNCIA. EXCESSO DE LINGUAGEM. RECONHECIMENTO. INQUESTIONÁVEIS INDÍCIOS DEAUTORIA E MATERIALIDADE DELITIVA. PROVIDÊNCIA APROPRIADA: DESENTRANHAMENTO E ENVELOPAMENTO DA INTERLOCUTÓRIA MISTA. 1. Ontologicamente, a pronúncia deve se revestir de comedimento, sob pena de comprometer a imparcialidade dos juízes leigos. Desbordando dos limites linguísticos, reconhecimento de indícios de autoria e materialidade delitiva, tem entendido a colenda Sexta Turma que o mais apropriado é riscar os trechos excessivos ou, como in casu, determinar o desentranhamento e o envelopamento da interlocutória mista, certificando-se a condição de pronunciado. 2. Ordem concedida, em parte, apenas para determinar o desentranhamento da pronúncia, envelopando-a junto aos autos, de tal forma a evitar que os jurados tenham contato com seus termos, certificando-se a condição de pronunciado do recorrente, prosseguindo-se o processo. (com voto-vencido) (STJ. REsp: 982033 PR 2007/0194430-5, Sexta Turma, Relator: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 03/12/2009, Data de Publicação: DJe 12/04/2010)
Advogado. Graduado em Direito na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-graduado na Fundação Escola Superior do Ministério Público (FESMIP/PB) em Direito Penal e Processual Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVEIRA, Alexander Diniz da Mota. A problemática do excesso da fundamentação da pronúncia e suas consequências processuais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46499/a-problematica-do-excesso-da-fundamentacao-da-pronuncia-e-suas-consequencias-processuais. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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