Resumo: a partir de julgamento do CADE a respeito do caso que ficou conhecido como Cartel de Pão, o presente trabalho aborda as práticas restritivas do livre mercado, seus critérios básicos de análise, os critérios de classificação do ilícito (regra de per se e regra de razão), características, condições que favorecem a formação e a continuidade de tais práticas, com especial destaque para a prática restritiva horizontal de cartel.
Palavras-chaves: Direito Concorrencial. Prática Restritiva do Livre Mercado. Cartel. CADE. Cartel de Pão.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. DESENVOLVIMENTO. 2.1. Critérios Básicos de Análise de Práticas Restritivas utilizadas pelas Autoridades Brasileiras de Defesa da Concorrência. 2.2. Práticas que permitem a Formação e a Continuidade do Cartel. 2.3. Características que favoreceram a Formação de Cartel no Mercado de Pão de Sal de 50g na Cidade-Satélite de Sobradinho-DF. 2.4. Regra do Ilícito em que se baseou a Decisão proferida pelo CADE no Cartel de Pão: Regra per se ou Regra de Razão? 3. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
Em 22 de maio de 2013, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE condenou 18 (dezoito) padarias e 19 (dezenove) pessoas físicas por formação de cartel no mercado de panificação da cidade-satélite de Sobradinho, no Distrito Federal. Também foram enredados neste caso o presidente e o vice-presidente, à época, do Sindicato das Indústrias da Alimentação de Brasília – SIAB, acusados de orquestrar o conluio.
A partir de ofício enviado pela Delegacia de Defesa do Consumidor da Polícia Civil do DF – PCDF, a então Secretaria de Direito Econômico – SDE instaurou o processo administrativo n. 08012.004039/2001-68. O documento informava a prisão em flagrante de proprietários de padarias de cidade-satélite de Sobradinho-DF durante reunião promovida pelo SIAB em um restaurante. A investigação na PCDF, por sua vez, iniciou-se em razão de denúncia de um proprietário de panificadora em Sobradinho-DF que relatou estar sendo ameaçado por outros comerciantes por vender pão de sal a um valor inferior ao de seus concorrentes. A Conselheira-Relatora do CADE no caso, Ana de Oliveira Frazão, aduziu que, embora os participantes afirmassem que a intenção do encontro era somente organizar um debate sobre a melhor forma de cálculo do preço final do produto, ficou comprovada a prática de cartel. O caso ficou conhecido como o Cartel de Pão.
O caso lança luzes sobre o tema da livre concorrência. Mas quais são as implicações práticas da interpretação e da aplicação deste princípio constitucional econômico, bem como das regras jurídicas que lhe dão concretude, na vida das pessoas?
A partir deste estudo de caso, que versou sobre realidade bastante presente na vida dos brasileiros (o preço do chamado pãozinho francês), serão abordados (a) critérios básicos de análise de práticas restritivas utilizados pelas autoridades brasileiras de defesa da concorrência; (b) práticas que permitem a formação e a continuidade do cartel; (c) características que favoreceram a formação de cartel no mercado de pão de sal de 50g (conhecido como pãozinho francês) na cidade-satélite de Sobradinho-DF; (d) a regra do ilícito em que se baseou a decisão proferida pelo CADE no Cartel de Pão, regra per se ou regra de razão.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. Critérios Básicos de Análise de Práticas Restritivas utilizadas pelas Autoridades Brasileiras de Defesa da Concorrência
Em Economia, vigora o princípio da escassez: as necessidade e desejos humanos são infinitos, ao passo que os recursos aptos a satisfazê-los são finitos, limitados. Desse modo, por meio do livre mercado, a Economia deve estar orientada à maximização do bem-estar social mediante a alocação mais eficiente dos recursos disponíveis. Deve-se produzir/consumir mais com o menor custo possível. Nesse contexto, proteger a livre concorrência é fundamental.
A Lei n. 12.529/2011 estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Sucede uma série de atos normativos brasileiros de Direito da Concorrência: Decreto-Lei n. 869/38 (norma de caráter penal e tipos abertos); Decreto-Lei n. 7.666/45 (norma de natureza administrativa, criou a Comissão Administrativa de Defesa Econômica); Lei n. 4.137/1962 (normas de direito antitruste, criou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE); Lei n. 8.158/1991 (modificou inúmeros pontos da legislação antitruste brasileira); Lei n. 8.884/1994 (transformou o CADE em autarquia federal, reordenou as competências administrativas das autoridades de defesa da concorrência, conferiu novo tratamento normativo aos atos de concentração e às condutas anticompetitivas). Insere-se numa mediação concretizadora do princípio livre concorrência, princípio geral da Ordem Econômica Constitucional, consagrado no artigo 170, IV, da Constituição Federal de 1988.
Registre-se, ademais, por oportuno, o disposto no § 4º do artigo 174 da CF/88: lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
Em linhas gerais, as práticas restritivas à livre concorrência estão organizados da seguinte forma: práticas restritivas horizontais (que envolvem agentes econômicos localizados na mesma etapa da cadeia produtiva, isto é, os agentes eram concorrentes antes da operação de concentração); práticas restritivas verticais (que envolvem agentes econômicos localizados em distintas etapas de uma mesma cadeia produtiva) e práticas restritivas de conglomerados (agentes econômicos que atuam em mercados que não se relacionam nem horizontal nem verticalmente).
Mais especificamente, a Resolução nº 20, de 9 de junho de 1999, do CADE, em seu Anexo II, traz os critérios básicos de análise de práticas restritivas: (1) caracterização da conduta anticoncorrencial (aqui, identifica-se a natureza da conduta, define-se seu enquadramento legal e verifica-se a existência de evidências suficientes da conduta nos autos); (2) análise da posição dominante (já aqui, delimita-se o mercado relevante, estima-se as participações dos agentes econômicos no conjunto das empresas que constituem esse mesmo mercado relevante e analisa-se as condições concorrenciais, efetivas e potenciais, barreira à entrada de novos concorrentes inclusive, no mercado relevante de referência, incluindo condições institucionais); e (3) análise da conduta específica (avalia-se os danos anticoncorrenciais da conduta sobre este ou outros mercados, examina-se os possíveis ganhos de eficiência econômica e outros benefícios gerados pela conduta e, por fim, avalia-se o custo-benefício entre efeitos anticompetitivos e eficiências econômicas da conduta).
Merecem destaque, porquanto diretamente ligados à problemática aqui tratada, os seguintes temas: delimitação do mercado relevante e critérios para estimativa das participações dos agentes econômicos no conjunto das empresas do mercado relevante.
O mercado relevante pode ter duas dimensões. Na primeira, objetiva, refere-se a um produto ou serviço. Na segunda, geográfica, refere-se ao um espaço territorial (local, regional, nacional ou internacional). Sendo assim, mercado relevante pode ser tido como o espaço (em suas dimensões objetiva ou geográfica) no qual é razoável supor a possibilidade de abuso de posição dominante por um ou mais agentes econômicos. Nesse espaço, os agentes econômicos ofertam e procuram produtos e/ou serviços em condições de concorrência suficientemente homogêneas, levando-se em conta preços, preferências dos consumidores e características dos produtos e serviços. Por meio do “teste do monopolista hipotético”, ainda, o mercado relevante pode ser definido como o menor grupo de produtos ou a menor área geográfica na qual um suposto monopolista poderia manter seu preço em nível supracompetitivo por um período significativo de tempo.
No que toca a mensurar a participação de cada agente econômico no mercado relevante pode-se usar o faturamento de cada agente econômico no faturamento total do mercado relevante; a quantidade total vendida de cada agente econômico na quantidade total vendida no mercado relevante; e/ou a capacidade produtiva de cada agente econômico em relação à capacidade produtiva total existente no mercado relevante.
A propósito, o cálculo do grau de concentração do mercado relevante pode se aferido tanto pelo teste C4 (coeficiente obtido por meio da soma aritmética das participações de mercado dos quatro agentes econômicos com maior parcela de mercado, de modo que se o resultado for igual ou superior a 75% ou se o agente econômico, em decorrência da operação, experimentar incremento superior a 10% em sua participação, considera-se elevada a concentração do mercado relevante), quanto pelo I?ndice Herfindahl-Hischman – HHI (constitui?do da soma dos quadrados das participac?o?es de mercado de todas as firmas que nele atuam, de modo que, se, após o ato de concentração, HHI < 1000, o mercado relevante seria pouco concentrado, se HHI entre 1000 e 1800, seriam considerados moderadamente concentrados e se HHI > 1800, seriam altamente concentrados. Quanto aos incrementos de participação dos agentes envolvidos, HHI inferior a 50 revela baixa concentração, entre 50 a 100, moderada e superior a 100, elevada).
O cartel, portanto, traduz-se em prática restritiva horizontal à livre concorrência. Segundo o CADE, o cartel é caracterizado por “acordos explícitos ou tácitos entre concorrentes do mesmo mercado, envolvendo parte substancial do mercado relevante, em torno de itens como preços, quotas de produção e distribuição e divisão territorial, na tentativa de aumentar preços e lucros conjuntamente para níveis mais próximos dos de monopólio.”
A Lei n. 12.529/2011, no artigo 36, § 3º, I, alíneas “a” e “b”, tipifica o cartel como infração à Ordem Econômica, in verbis:
Art. 36. Omissis.
[...]
§ 3 As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:
I - acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma:
a) os preços de bens ou serviços ofertados individualmente;
b) a produção ou a comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou a prestação de um número, volume ou frequência restrita ou limitada de serviços;
2.2. Práticas que permitem a Formação e a Continuidade do Cartel
Quando da formação do cartel, os agentes econômicos que deveriam comportar-se como rivais, ou seja, em efetiva competição, passam a agir de forma cooperativa, combinada, uniforme. Como estabelecem, conjuntamente, elementos-chave para o funcionamento do mercado em que atuam, esses “concorrentes” agem como se fossem um único agente econômico. Daí por que, com bastante propriedade, Stiglitz e Walsh ensinam que concorrentes que tais atuam como se fossem um monopólio, com o objetivo de dividirem entre si os lucros daí decorrentes.
Por um lado, favorecem a formação do cartel, em consonância com o Regulamento nº 20 do CADE, de 09 de junho de 1999: o alto grau de concentração do mercado; as barreiras a? entrada de novos competidores; a homogeneidade de produtos e de custos; as condições estáveis de custo e de demanda. Por outro lado, os seguintes aspectos favorecem manutenção do cartel: pequeno nu?mero de agentes econômicos, o que facilita o monitoramento do market share; ausência de flutuações independentes nos prec?os dos produtos/serviços.
2.3. Características que favoreceram a Formação de Cartel no Mercado de Pão de Sal de 50g na Cidade-Satélite de Sobradinho-DF
Os acusados do caso Cartel de Pão defenderam-se das imputações de infração à Ordem argumentando (1) suposta insuficiência de provas que caracterizassem o acordo entre os agentes; (2) inexistência de preços uniformes; (3) ausência de definição de mercado relevante e da existência de concorrência entre padarias e supermercados; (4) ausência de poder de mercado capaz de influenciar o aumento do preço do produto; e (5) ausência de poder de mercado em relação do Sindicato das Indústrias Alimentícias de Brasília – SIAB.
No caso em liça, a atuação pró-ativa do Sindicato das Indústria de Alimentos de Brasília – SIAB favoreceu significativamente a formação do cartel no mercado do pão de sal de 50g na cidade-satélite de Sobradinho-DF. Especialmente no que toca ao alto grau de concentração do mercado relevante, assim como no que pertine à homogeneidade de custos.
As provas trazidas aos autos do processo administrativo n. 08012.004039/2001-68 são substanciais nesse sentido. Juntou-se ao processo convite para reunião, cuja pauta previa preço do pão e pauta da reunião entregue aos participantes, em que efetivamente constava o preço do pão com um dos assuntos. Levou-se aos autos também cartazes que haviam sido fixados em vários estabelecimentos informando o aumento do preço do pão de 50g para R$ 0,20 (vinte centavos de real). Destaque-se que todos esses cartazes eram iguais, apresentando inclusive o mesmo erro de grafia. Apurou-se em depoimento, ainda, que tais cartazes foram entregues com os convites para a reunião.
Não bastasse, também constou dos autos gravação da reunião entre os representantes legais do sindicato e os panificadores convocados. Apesar da baixa qualidade da gravação, pôde-se constatar o ajuste do preço do pão para R$ 0,20, bem como menção aos comerciantes não-aderentes ao cartel. Alguns desses dissidentes do ajuste, dentre eles o denunciante, relatam ter sofrido pressão psicológica para que aderisse ao cartel do preço.
Na mesma linha, Conselheira-Relatora aponta:
“Dessa forma, resta bastante clara, do conjunto probatório dos autos, a existência de conluio no mercado de panificadoras em Sobradinho/DF para fixação do preço do pão no patamar de R$ 0,20. A leitura integrada dos elementos constantes do processo deixa claro que a reunião promovida pelo SIAB em 18/06/2001 não foi um evento esporádico, que teria pego de surpresa os ali presentes por tratar da elevação artificial do preço do pão.
Pelo contrário, é bastante nítido que o encontro organizado pelo SIAB representou apenas mais um evento, de uma cadeia de acontecimentos mais ampla e interconectada, em que se procurou burlar a lei concorrencial por meio de acordo ilícito entre concorrentes.”
De mais a mais, conforme se depreende dos autos, (2) a alegação de ausência de preços uniformes é frágil, pois o auto de prisão em flagrante data de 18/06/2001, enquanto que a grande maioria de notas fiscais trazidas aos autos com preços diferentes do ajustado data de 21/06/2001. Lembrando ainda que preço ligeiramente desuniformes poderiam ser adequadamente combinados com quantidade e/ou qualidade do produto para favorecer a homogeneidade.
Afora isso, (3) não há que se falar em concorrência entre supermercados e padarias. Os objetivos desses empreendimento não se confundem, os respectivos posicionamentos de mercado diferem bastante. Quando o consumidor se dirige ao supermercado, comprar pão de sal de 50g não é sua intenção primordial. O supermercado também não estrutura sua política de marketing para atrair consumidores para o produto pão de sal de 50g. Indelével, portanto, o mercado relevante das padarias, seja em sua dimensão objetiva (pão de sal de 50g), seja em sua dimensão geográfica (cidade-satélite de Sobradinho-DF). Sem falar no elevado trade-off (custo de migração para produto substituto) para a grande maioria dos consumidores que habitualmente compram o pão de sal de 50g em padarias.
Nessa linha, indubitável o (4) poder de mercado das padarias para influenciar o aumento do preço do produto, o que no caso concreto fora (5) potencializado pela atuação coordenada de seu sindicato.
2.4. Regra do Ilícito em que se baseou a Decisão proferida pelo CADE no Cartel de Pão: Regra per se ou Regra de Razão?
Duas são as regras para instrução do ilícito: regra per se e regra de razão. A doutrina antitruste norte-americana, a partir de precedentes da Suprema Corte, dividiu as condutas anticoncorrenciais entre condutas ili?citas per se e condutas ilícitas pelo objeto, condutas que so? sera?o sancionadas apo?s um estudo com fulcro na regra da raza?o, somente após uma ana?lise casui?stica comparativa entre os potenciais efeitos anticompetitivos e eficie?ncias esperadas com a pra?tica em questa?o.
No direito norte-americano, cartéis são considerados ilícitos per se. Dessa forma, em havendo prova de sua ocorrência, deverão ser sancionados. A autoridade de defesa da concorrência não precida comprovar o potencial efeito anticompetitivo da prática, pressuposto. Há quem defenda a aplicação da regra do ilícito per se apenas para os cartéis hardcore ou clássicos, nos quais a atuação coordenada entre os agentes econômicos é habitual e institucionalizada, não se devendo aplicá-la aos cartéis difusos, em que a atuação dos agentes é eventual e não institucionalizada.
No julgamento do Cartel de Pão, o CADE aplicou a regra per se, consoante se depreende dos trechos do voto condutor, adiante transcrito:
A pergunta que se coloca neste feito, portanto, é se a comprovação (i) de que concorrentes tornaram parte em uma reunião em que foi discutido um acordo para majoração de preços e (ii) de que a referida reunião estava concatenada com outros atos voltados à elevação artificial de preços constitui condição suficiente para preenchimento dos requisitos legais de configuração da infração à ordem econômica, com a conseqüente imposição das penalidades previstas na Lei Antitruste a todos os participantes da reunião.
[...] porque a condenação que ora se propõe não se baseia exclusivamente na participação dos representados na referida reunião. Tal fato - que já seria, por si só, extremamente significativo - é ora valorado em contexto muito mais amplo de indícios, que apontam para o fato de que não há que se cogitar de surpresa, desaviso, boa-fé ou mesmo indiferença em relação àqueles que participaram do mencionado encontro.
[...]
A resposta à questão passa pela adequada compreensão das características do cartel como infração cujos efeitos diretos sobre o mercado são de difícil, quando não impossível, aferição. Ao contrário do que ocorre com grande parte das infrações na esfera penal e administrativa, que se caracterizam pelo alcance de resultados considerados antijurídicos pelo ordenamento, a prática de cartel – assim como de outras infrações à ordem econômica – não deixa registros claros de sua ocorrência no campo dos efeitos naturalísticos.
[...]
De forma semelhante, Anderson, Bolema, e Geckil ressaltam a dificuldade de se constatara ocorrência de um aumento de preços no mercado derivada da fixação conjunta de preços por concorrentes:
‘Mesmo no caso mais simples de fixação de preços, a “cobrança excessiva” não está registrada nas faturas comerciais e nem nas declarações contábeis. Um economista ou outro especialista terá que estimá-la, num mercado com competidores, custos variáveis, informação imperfeita e consumidores cujas rendas, preferências e reações a preços podem ter mudado durante o período em que a fixação de preços ocorreu.
A dificuldade de se aferir com exatidão os efeitos de um conluio de concorrentes sobre o mercado não inviabiliza, porém, a condenação de empresas e pessoas físicas envolvidas em acordos voltados à majoração artificial dos preços em detrimento do consumidor. Pelo contrário, a Lei Antitruste brasileira é expressa ao prever que a mera potencialidade lesiva é suficiente para a configuração do ilícito concorrencial, não sendo necessária a comprovação de que os efeitos anticompetitivos foram efetivamente alcançados.
Dessa forma, o ilícito de cartelização revela-se muitas vezes indistinguível de atos rotineiros e ordinários praticados pelos agentes econômicos no curso normal de seus negócios. Tal característica não é uma idiossincrasia da infração de cartel e pode ser “notada em grande parte dos delitos econômicos e dos chamados crimes de “colarinho branco”. Como bem observou o Ministro Luiz Fux em julgamento recente no STF:
‘(...) o delito econômico é, aparentemente, uma operação financeira ou mercantil, uma prática ou procedimento como outros muitos no complexo mundo dos negócios. A ilicitude não se constata diretamente, sendo necessário, não raras vezes, lançar mão de perícias complexas e interpretar normas de compreensão extremamente difícil. As manobras criminosas são realizadas utilizando complexas estruturas societárias, que tornam muito difícil a individualização correta dos diversos autores e partícipes. (...)Essas sutilezas que marcam a identidade dos crimes do “colarinho branco” constituem razões que devem informar a lógica probatória inerente à sua persecução.(STF, AP 470, Relator: Min. Joaquim Barbosa, DJ 22/04/2013)’
A dificuldade na identificação da prática de cartelização é ainda agravada pelo fato de se tratar de prática de difícil comprovação direta. Uma vez que a consumação do ilícito se dá com a simples comunicação entre concorrentes voltada à realização de acordo restritivo da concorrência, é natural que a produção de prova direta seja de difícil realização, dado o evidente interesse dos participantes do cartel na ocultação dos elementos materiais que atestem a existência do acordo.
3. CONCLUSÃO
É consenso mundial, nas economias de mercado capitalista, perceber a livre concorrência como importante instrumento da maximização do bem-estar social. Mercados livres pressupõem livre concorrência entre agentes econômicos.
Nesse particular, são importantíssimas as referências norte-americana do Sherman Act, de 1890 (que combatia acordos destinadas à monopolização e a outras práticas de restrição ao comércio, firmados entre concorrentes de grandes conglomerados empresariais), e a referência europeia do Tratado de Roma, de 1957 (que erigiu a concorrência à condição de pilar da Comunidade Econômica Européia).
Neste trabalho, pôde-se perceber a dificuldade probatória das práticas restritivas da livre concorrência, especificamente da prática do cartel; as dificuldade de se delimitar com precisão o âmbito semântico de conceitos bastante abstratos, tais como, mercado relevante e poder de mercado. Não obstante isso, é incontestável a sofisticação alcançada pelo Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, bem como a razoabilidade e coerência jurídico-econômica das decisões proferidas pelo CADE.
A decisão do CADE no caso do Cartel de Pão, adotando a regra de ilícito per se no combate ao cartel, contribuiu para a consolidação da livre concorrência, princípio de nossa Ordem Econômica Constitucional previsto no artigo 170, IV, CF/88, assim como reforçou a livre concorrência enquanto direito difuso, titularizado pela coletividade, consoante previsto no parágrafo único do artigo 1 da Lei n. 12.529/2011.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei no 12.529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; altera a Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o Decreto-Lei no3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, e a Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985; revoga dispositivos da Lei no 8.884, de 11 de junho de 1994, e a Lei no 9.781, de 19 de janeiro de 1999; e dá outras providências.. Diário Oficial da União, Brasília, 01 nov. 2011. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Lei/L12529.htm>. Acesso em: 08 abr. 2016.
BRASIL. Resolução no 20 do Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Dispõe, de forma complementar, sobre o Processo Administrativo, nos termos do art. 51 da Lei 8.884/94. Diário Oficial da União, Brasília, 28 jun. 1999. Disponível em: <http://www.cade.gov.br/upload/Resolu%C3%A7%C3%A3o%20n%C2%BA%2020,%20de%209%20de%20junho%20de%201999.pdf >. Acesso em: 08 abr. 2016.
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Advogado e Consultor Jurídico em Brasília e em Alagoas; Procurador do Distrito Federal; Procurador-Chefe do Centro de Apoio Técnico da Procuradoria Geral do Distrito Federal; Membro da Comissão de Assuntos Institucionais do Fórum Nacional de Precatórios - FONAPREC/CNJ; especialista em Direito Público; Especializando MBA em Agronegócio pela ESALQ/USP; pós-graduando MBA LLM em Direito Empresarial pela FGV; especializando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET; Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direito Tributário da UnB; ex-Procurador da Fazenda Nacional; ex-Procurador Federal. Professor do Instituto de Magistrados do Distrito Federal - IMAG/DF;Professor da Faculdade de Direito da FACITEC; co-autor do livro Direito Constitucional, Ed. Método, São Paulo; co-autor do Livro Estudos Dirigidos: Procuradorias, Ed. Jus Podivm;<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FIEL, Adamir de Amorim. Práticas restritivas do livre mercado e sistema brasileiro de defesa da concorrência: análise jurídica do julgamento do CADE no cartel de pão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46534/praticas-restritivas-do-livre-mercado-e-sistema-brasileiro-de-defesa-da-concorrencia-analise-juridica-do-julgamento-do-cade-no-cartel-de-pao. Acesso em: 22 nov 2024.
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