RESUMO: O presente artigo repreende a existência do banco dos réus perante o conselho de sentença, no julgamento da segunda fase do Tribunal do Júri, por violar diversos princípios constitucionais, como o devido processo legal e a presunção de inocência, já que, dentre outros malefícios, prejudica o réu desde o início do julgamento, influenciando inequivocamente o leigo corpo de jurados.
Palavras-chave: Tribunal do Júri. Banco dos réus. Presunção de inocência.
1. Introdução
A visão que se tem, majoritariamente, da disposição de lugares de uma sala do Tribunal do Júri é a do juiz presidente, acompanhado a sua direita pelo membro do Ministério Público e a sua esquerda pelo escrivão do processo, a dos sete assentos pertencentes ao grupo do júri leigo, e, bem mais distante, encontra-se o réu em local isolado do recinto, se comparado aos outros.
Trata-se de assento que sequer é próximo à sua própria defesa (o advogado ou defensor); restando ao centro das atenções daquele Tribunal apenas a companhia de agentes policiais. Esse ponto do ambiente de julgamento é o prejudicial instituto do “banco dos réus”.
Como se percebe pela mera descrição, esse instituto é assaz degradante para a imagem do acusado, que é exposto a uma plateia muitas vezes famélica por condenação[1]. Isso acaba por violar inúmeros direitos fundamentais e princípios previstos na Magna Carta.
2. O simbolismo do banco de réus e a violação à Constituição Federal de 1988
Primeiramente, é possível apontar a indubitável influência da posição isolada do indivíduo, desacompanhado inclusive de seu patrono, aos olhos do jurado leigo. Ora, se ele será julgado por indivíduos que não possuem conhecimento da técnica jurídica, resta evidente a influência psicológica que esse simbolismo, representado pela sua posição topográfica juntamente com o próprio termo “banco dos réus”, pode causar sobre o júri popular, ensejando uma consideração prévia de culpabilidade. Viola-se, assim, o princípio da presunção da inocência (ou da não-culpabilidade, muito embora não seja a expressão mais adequada), previsto no art. 5º, LVII, da Constituição Federal.
Sobre esse princípio, aliás, convém declinar as palavras da balizada doutrina de Luiz Flávio Gomes e Valério de Oliveira Mazzuoli[2] – transcrita, inclusive, na decisão do RE 634.224/DF, de Relatoria do Ministro Celso de Mello, o que já se torna indicativo de posicionamento da Corte Suprema:
O correto é mesmo falar em princípio da presunção de inocência (tal como descrito na Convenção Americana), não em princípio da não-culpabilidade (esta última locução tem origem no fascismo italiano, que não se conformava com a idéia de que o acusado fosse, em princípio, inocente).
Trata-se de princípio consagrado não só no art. 8º, 2, da Convenção Americana senão também (em parte) no art. 5°, LVII, da Constituição Federal, segundo o qual toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarada culpada por sentença transitada em julgado. Tem previsão normativa desde 1789, posto que já constava da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Do princípio da presunção de inocência (‘todo acusado é presumido inocente até que se comprove sua culpabilidade’) emanam duas regras: (a) regra de tratamento e (b) regra probatória.
‘Regra de tratamento’: o acusado não pode ser tratado como condenado antes do trânsito em julgado final da sentença condenatória (CF, art. 5°, LVII).
O acusado, por força da regra que estamos estudando, tem o direito de receber a devida ‘consideração’ bem como o direito de ser tratado como não participante do fato imputado. Como ‘regra de tratamento’, a presunção de inocência impede qualquer antecipação de juízo condenatório ou de reconhecimento da culpabilidade do imputado, seja por situações, práticas, palavras, gestos etc., podendo-se exemplificar: a impropriedade de se manter o acusado em exposição humilhante no banco dos réus, o uso de algemas quando desnecessário, a divulgação abusiva de fatos e nomes de pessoas pelos meios de comunicação, a decretação ou manutenção de prisão cautelar desnecessária, a exigência de se recolher à prisão para apelar em razão da existência de condenação em primeira instância etc. É contrária à presunção de inocência a exibição de uma pessoa aos meios de comunicação vestida com traje infamante (Corte Interamericana, Caso Cantoral Benavides, Sentença de 18.08.2000, parágrafo 119).” – grifos acrescidos.
Ademais, não há que se falar em respeito à plenitude da defesa, inerente aos processos do Júri e garantida também pelo art. 5º, em seu inciso XXXVIII, “a”, da CF, se o acusado se mantém em assento distante de seu próprio defensor. Há injustificada incomunicabilidade, cerceando-se o direito de defesa do réu, pois esta só será exercida em sua plenitude a partir do reconhecimento do direito fundamental do acusado permanecer na companhia e ao lado de seu advogado ou defensor durante todos os atos judiciais, sem exceção, seja nos julgamentos do Júri, seja nas audiências do juízo singular.
Nesse sentido, deve-se atentar que a relação entre advogado e réu é de simbiose, chegando a se tornarem uma só pessoa no momento da defesa, de forma que o primeiro apresenta a “defesa técnica” e o segundo a “autodefesa”. Além disso, não pairam dúvidas de que o defensor poderia ser informado pelo acusado de eventuais e relevantes detalhes sobre o fato, durante julgamento. Portanto, “somente assim fica assegurado ao acusado, DE FATO, a ampla defesa (que é a soma da ‘autodefesa’, ou razões e conhecimento dos fatos pelo próprio acusado, com a ‘defesa técnica’ levada a efeito pelo advogado)”[3].
Logo, vetar esse direito significa coibir o próprio papel do defensor. Além disso, infringe não apenas as diretrizes constitucionais retrocitadas, como também o princípio constitucional matriz do processo, qual seja, o devido processo legal.
Desta feita, fica demonstrado que a Defesa já ingressa no Júri em inequívoca desvantagem, quando, na verdade, deveria surgir “com placar favorável”, em razão da presunção de inocência e do ônus da acusação em provar a autoria do delito pelo acusado[4].
Assim, não há sequer mecanismo processual que legitime ou compense essa disparidade de armas na avaliação final – pois, se já prejudica o réu desde o início, trata-se de um ato em benefício da acusação –, uma vez que a decisão do mérito é restrita aos jurados, sem fundamentação técnica. Ou seja, no julgamento do tribunal do júri não há que se discutir o “contexto de justificação”, por se tratar de uma deliberação moderadamente livre aos jurados leigos – ressalte-se que havendo decisão manifestamente contrária à prova dos autos, seria possível a interposição de apelação visando novo julgamento, conforme art. 593, III, “d”, e §3º, do CPP. Da mesma forma, não seria possível, nem legítimo, investigar o “contexto de descoberta” que resultou na decisão do conselho de sentença, já que não se pode adentrar no foro íntimo de cada jurado, bem como é assegurado o sigilo do voto, conforme art. 5º, XXXVIII, “b”, da CF/88 e art. 487, CPP, para manter a integridade física e psicológica do votante. De qualquer forma, a investigação desse último contexto não tem relevância para legitimar a deliberação do conselho, pois não pode ser contestada. No entanto, a influência gerada pelo banco dos réus na formação desse contexto de descoberta é que deve ser evitada.
O contexto de descoberta diz respeito à atividade consistente em descobrir como foi gerado ou desenvolvido um conhecimento científico, uma teoria, o que seria tarefa para o sociólogo ou historiador da ciência. Há quem entenda também versar sobre a investigação da construção de um entendimento sobre determinado ponto, a partir do foro íntimo de um indivíduo, e dos elementos que fazem parte do seu desenvolvimento pessoal. Trata-se de concepção abordada por Manuel Atienza, e que se contrapõe ao contexto de justificação, pelo qual se intenta justificar uma teoria confrontando fatos e argumentos que a validam. Nas palavras do filósofo:
Assim, uma coisa é o procedimento mediante o qual se estabelece uma determinada premissa ou conclusão, e outra coisa é o procedimento que consiste em justificar essa premissa ou conclusão. Se consideramos o argumento que conclui afirmando ser “necessário alimentar à força os detentos do GRAPO”[5], a distinção pode ser traçada entre as causas psicológicas, o contexto social, as circunstâncias ideológicas etc. que levaram um determinado juiz a emitir essa resolução, e as razões dadas pelo orador em questão para mostrar que sua decisão é correta ou aceitável (que está justificada). Dizer que o juiz tomou essa decisão devido às suas fortes crenças religiosas significa enunciar uma razão explicativa; dizer que a decisão do juiz se baseou numa determinada interpretação do artigo 15 da Constituição significa enunciar uma razão justificadora. De modo geral os órgãos jurisdicionais ou administrativos não precisam explicar as suas decisões; o que devem fazer é justificá-las.[6] (grifos nossos)
Logo, infere-se que todos os aspectos humanísticos que resultam na impressão decisiva do corpo de jurados, ante os argumentos das partes no processo do Tribunal do Júri, são as suas razões explicativas, baseadas nas suas crenças religiosas, na sua cultura, seus estudos e experiências profissionais e do cotidiano, entre outros elementos de sua evolução pessoal. Essas razões do contexto de descoberta não interessarão para a legitimação do ato judicial. A validade do provimento final não está nos motivos dados para entender o porquê de uma ação, mas sim nas razões justificadoras para determinar se ela está de acordo com os fundamentos constitucionais e legais de um Estado[7].
Além de todos os fundamentos expostos, não se pode olvidar, ainda, que sequer existe ou existiu qualquer norma legal que imponha a existência desse banco dos réus, o que indica que se trata tão somente de um ato costumeiro em detrimento de preceitos fundamentais.
3. Conclusão
Destarte, não havendo ao menos parâmetro legal, não existem motivos para se manter esse instituto, já que não exerce qualquer outro papel relevante durante a sessão de julgamento. Pelo contrário, apenas fere as garantias individuais do cidadão, fato com o qual a Justiça não pode compactuar.
Finalmente, “não sabemos quem inventou o banco dos réus. Mas já estamos sabendo quem o está abolindo! Os sensatos, os constitucionalistas, os dotados de uma ética humanitária etc”[8]. Espera-se, destarte, que o instituto seja suprimido de vez em todo o território nacional, assim como já fizeram alguns estados a exemplo do Paraná, São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina[9], para que sejam preservados os direitos do acusado, bem como seja honrada a Lei Maior.
REFERÊNCIAS
ASSAD, Elias Mattar. Banco dos réus no Tribunal do Júri é degradante e discriminatório. Revista Consultor Jurídico. 2009. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-jan-06/banco_reus_tribunal_juri_discriminatorio. Acesso em: 03 de fev. 2016.
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy Editora, 2006. p. 20.
GOMES, Luiz Flávio. Libelo contra o “banco dos réus”. Disponível em: http://asdep.com.br/artigos-detalhe/libelo-contra-o-banco-dos-r%C3%A9us-. Acesso em: 03 fev. 2016.
GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de San José da Costa Rica. Coleção “Ciências Criminais”. vol. 4. São Paulo: RT, 2008. p. 91.
MASCARENHAS, Elizabeth Pereira. Quem inventou o banco dos réus? In: FARHAT, Michele Heusi. A extinção do banco dos réus no Tribunal do Júri. Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba, 2007. p. 26. Disponível em: http://tcconline.utp.br/wp-content/uploads//2013/07/A-EXTINCAO-DO-BANCO-DOS-REUS-NO-TRIBUNAL-DO-JURI.pdf. Acesso em: 03 fev. 2016.
[1] ASSAD, Elias Mattar. Banco dos réus no Tribunal do Júri é degradante e discriminatório. Revista Consultor Jurídico. 2009. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-jan-06/banco_reus_tribunal_juri_discriminatorio. Acesso em: 03 de fev. 2016.
[2] GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de San José da Costa Rica. Coleção “Ciências Criminais”. vol. 4. São Paulo: RT, 2008. p. 91.
[3] MASCARENHAS, Elizabeth Pereira. Quem inventou o banco dos réus?. In: FARHAT, Michele Heusi. A extinção do banco dos réus no Tribunal do Júri. Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba, 2007. p. 26. Disponível em: http://tcconline.utp.br/wp-content/uploads//2013/07/A-EXTINCAO-DO-BANCO-DOS-REUS-NO-TRIBUNAL-DO-JURI.pdf. Acesso em: 03 de fev. 2016.
[4] GOMES, Luiz Flávio. Libelo contra o “banco dos réus”. Disponível em: http://asdep.com.br/artigos-detalhe/libelo-contra-o-banco-dos-r%C3%A9us-. Acesso em: 03 fev. 2016.
[5] Cuida-se de caso verídico na Espanha, onde no final de 1989, vários presos dos Grupos Anfascistas Primero de Octubre declararam-se em greve alimentar na tentativa de obterem melhorias em suas condições carcerárias.
[6] ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy Editora, 2006. p. 20.
[7] Idem. Ibidem. p. 43. Nota 2.
[8] GOMES, Luiz Flávio. Libelo contra o “banco dos réus”. Disponível em: http://asdep.com.br/artigos-detalhe/libelo-contra-o-banco-dos-r%C3%A9us-. Acesso em: 03 fev. 2016.
[9] ASSAD, Elias Mattar. Banco dos réus no Tribunal do Júri é degradante e discriminatório. Revista Consultor Jurídico. 2009. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-jan-06/banco_reus_tribunal_juri_discriminatorio. Acesso em: 03 de fev. 2016.
Advogado. Graduado em Direito na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-graduado na Fundação Escola Superior do Ministério Público (FESMIP/PB) em Direito Penal e Processual Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVEIRA, Alexander Diniz da Mota. O banco dos réus como instituto violador dos princípios processuais constitucionais e da dignidade da pessoa humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 abr 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46537/o-banco-dos-reus-como-instituto-violador-dos-principios-processuais-constitucionais-e-da-dignidade-da-pessoa-humana. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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