Resumo: O presente artigo discute, com fundamento no posicionamento adotado pelos doutrinadores pátrios e no entendimento jurisprudencial emanado dos Tribunais Superiores, o momento processual adequado para aplicação da emendatio libelli no primeiro grau de jurisdição, assim como a necessidade de se observar o princípio da proibição da reformatio in pejus quando realizada em segunda instância, notadamente no julgamento de recurso exclusivo da defesa. Inicialmente, foram analisados aspectos gerais sobre o instituto relativos ao conceito, procedimento, princípios correlatos e momento oportuno para a sua aplicação pelo juízo de primeiro grau. Em seguida, abordou-se, em linhas gerais, o princípio da proibição da reforma para pior (ne reformatio in pejus) e a sua importância como elemento limitador da utilização da emendatio libelli em sede recursal. Por fim, foi exposta a problemática em torno do reconhecimento do instituto no segundo grau de jurisdição e as circunstâncias a serem consideradas, a fim de evitar a reforma para pior em razão da sua utilização.
Palavras-chave: Emendatio Libelli. Primeiro grau de jurisdição. Segunda Instância. Princípio da ne reformatio in pejus.
Sumário: Introdução; 1- Emendatio Libelli; 1.1- Considerações iniciais: Conceito, procedimento e princípios relacionados ao instituto; 1.2- Momento processual adequado para a aplicação da emendatio libelli pelo julgador de primeiro grau; 2- Apontamentos sobre o princípio da proibição ou vedação da reformatio in pejus; 3- Possibilidade de reconhecimento da emendatio libelli na segunda instância e limitação imposta pelo princípio da proibição da reformatio in pejus; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
Nos termos do artigo 383, caput, do Código de Processo Penal, “o juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave”. No que concerne aos processos da competência do Tribunal do Júri, dispõe o artigo 418 do mesmo diploma legal que “o juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da constante da acusação, embora o acusado fique sujeito a pena mais grave”.
Os dispositivos legais supramencionados elencam o instituto da emendatio libelli, próprio da sentença condenatória e da decisão de pronúncia, aplicável tanto à ação penal pública quanto à privada, e relacionado aos princípios da consubstanciação e da correlação ou congruência entre acusação e sentença.
Prevalece entre os doutrinadores e na jurisprudência dos Tribunais Superiores que, em regra, o momento adequado para aplicação da emendatio libelli pelo juiz a quo é o da prolação da sentença ou da decisão de pronúncia, uma vez que o recebimento da inicial pressupõe apenas um juízo de admissibilidade da acusação.
Entretanto, o presente artigo abordará, sob o ponto de vista doutrinário e jurisprudencial, situações excepcionais nas quais se tem admitido a correção do enquadramento legal no ato de recebimento da denúncia ou da queixa-crime, desde que possua o escopo de beneficiar o réu ou viabilizar a adequada definição da competência ou do procedimento a ser aplicado.
No segundo grau de jurisdição, em que pese a admissibilidade da realização da ementadio libelli, serão discutidos neste trabalho os limites impostos pelo princípio da proibição da reformatio in pejus (reforma para pior), previsto no artigo 617 do Código de Processo Penal, que veda o agravamento da situação do réu por ocasião do julgamento de recurso interposto exclusivamente pela defesa.
Por fim, demonstrar-se-á que os Tribunais Superiores têm coibido a aplicação desvirtuada da emendatio libelli em sede recursal, em situações nas quais, embora mantida ou reduzida a pena inicialmente cominada, sejam causados prejuízos ao réu, em flagrante desrespeito ao princípio da ne reformatio in pejus, albergado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
1 – Emendatio Libelli
1.1- Considerações iniciais: Conceito, procedimento e princípios relacionados ao instituto.
A emendatio libelli, prevista nos artigos 383 e 418 do Código de Processo Penal, possibilita ao julgador, no momento da condenação ou pronúncia do réu, cominar definição jurídica diversa daquela constante da peça acusatória, sem alterar, contudo, a descrição fática, ainda que tal atribuição ocasione a aplicação de pena mais grave.
Em outras palavras, resta configurado tal instituto quando o magistrado promove a modificação da tipificação penal sem sobrepor qualquer elementar ou circunstância à narrativa contida na inicial e sobre a qual o acusado não tenha apresentado defesa.
“Na emendatio libelli, em verdade, inexistem acréscimos na decisão judicial quanto ao fato inicialmente atribuído e que consta na denúncia ou na queixa. Por isso mesmo é que facultam os arts. 383 e 418 do CPP o reconhecimento pelo juiz de crime cuja capitulação importe em aplicação de pena mais grave independentemente de qualquer providência prévia relacionada à concessão de novas oportunidades de defesa do réu” (AVENA, 2015, p. 770).
Para Eugênio Pacelli e Douglas Fischer: “A validade da correção da capitulação do crime na sentença tem, pois, um pressuposto: a completa adequação (subsunção) do tipo penal então aplicado pelo juiz aos fatos narrados na acusação. Se o novo tipo penal, isto é, se a nova definição jurídica dos fatos contiver elementos não descritos na denúncia, além daqueles outros nela incluídos, não se poderá fazer a emendatio” (2014, p.775).
Assim, se o juiz decidir realizar a emendatio libelli na sentença ou na decisão de pronúncia, poderá fazê-lo diretamente, sem a necessidade de aditamento da denúncia ou manifestação prévia das partes, já que incumbe ao acusado defender-se dos fatos, independente da definição jurídica a eles atribuída, consoante preleciona o princípio da consubstanciação.
Leonardo Barreto Moreira Alves afirma que “nessa situação, não há que se falar em cerceamento de defesa, afinal de contas o réu se defende dos fatos narrados na peça acusatória e não da tipificação legal. Além disso, presume-se que o juiz conhece o direito - jura novit curia -, daí porque se exige que se leve ao conhecimento dele apenas os fatos, sendo que o direito será ele quem fornecerá” (2015, p. 57).
Impende asseverar, ainda, que tal instituto, próprio da sentença condenatória e da decisão de pronúncia, aplicável tanto à ação penal pública quanto à privada, coaduna-se também com o princípio da correlação ou congruência entre a acusação e a sentença, segundo o qual o fato imputado ao réu na peça inicial acusatória deve conservar completa equivalência com aquele reconhecido pelo julgador na sentença.
Nesse prisma, ensina Guilherme de Souza Nucci que a correlação entre acusação e sentença:
“É a regra segundo a qual o fato imputado ao réu, na peça inicial acusatória, deve guardar perfeita correspondência com o fato reconhecido pelo juiz, na sentença, sob pena de grave violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa, consequentemente, ao devido processo legal.
(…)
São ofensivas à regra da correlação entre acusação e sentença as alterações pertinentes ao elemento subjetivo (transformação do crime de doloso para culposo ou virse-versa), as que disserem respeito ao momento consumativo (transformação de crime consumado para tentado ou virse-versa), bem como as que fizerem incluir fatos não conhecidos da defesa, ainda que possam parecer irrelevantes, como a mudança de endereço onde o delito ocorreu.
(…)
A violação da regra da correlação entre a acusação e a sentença é causa de nulidade absoluta, pois ofende os princípios do contraditório e da ampla defesa, consequentemente, o devido processo legal. Aliás, essa regra passou a ser expressa no caput do art. 383, vale dizer, o juiz não pode modificar a descrição do fato contida na peça acusatória” (2011, p. 664-665).
Ademais, Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar citam a existência de duas formas de emendatio libelli, quais sejam:
“Por defeito de capitulação, situação na qual o juiz profere sentença condenatória ou decisão de pronúncia em conformidade exata com o fato escrito na denúncia ou na queixa, apenas corrigindo a capitulação trazida na inicial e a emendatio libelli por interpretação diferente, ilustrada na hipótese em que o Ministério Público oferece denúncia por homicídio qualificado por meio cruel (art. 121, §2º, III, CP) enquanto que o magistrado, com amparo na mesma situação fática, vislumbra, em oposição, a qualificadora de recurso que impossibilitou a defesa do ofendido (art. 121, § 2º, IV, CP), conferindo assim, nova capitulação ao fato” (2014, p. 876).
Se a desclassificação ocasionada pela emendatio libelli implicar no cometimento de uma infração penal cuja pena mínima abstrata seja igual ou inferior a um ano, aplicar-se-á, em consonância com o disposto no art. 89 da Lei 9.099/1995, a regra contida no § 2º do artigo 383 do CPP: “se, em consequência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei”.
Nesse caso, incumbirá ao juízo proferir a decisão de desclassificação da infração e facultar vista dos autos ao Ministério Público para propositura da suspensão condicional do processo, cabível em tal hipótese, nos termos da súmula 337 do Superior Tribunal de Justiça.
Verificado o dissenso entre as posições adotadas pelo Órgão Ministerial e pelo juiz acerca da suspensão, encontra guarida a aplicação do artigo 28 do CPP, em razão do teor da súmula 696 do Supremo Tribunal Federal, que aduz o seguinte: “reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do CPP”.
Por oportuno, caso “a desclassificação ocorra apenas em grau recursal, no julgamento de eventual apelação, incumbe ao juízo ad quem avaliar a possibilidade de suspensão condicional do processo, baixando os autos à 1ª instância para que a proposta de suspensão condicional do processo seja formulada pelo promotor de justiça” (Brasileiro, 2012, p. 731).
Afora o exposto, dispõe o §3º do mesmo dispositivo legal que, tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos. “Na verdade, essa remessa dos autos ao Juízo competente só deve ocorrer na hipótese de haver o reconhecimento da incompetência absoluta, já que esta modalidade de competência não admite prorrogações e pode ser reconhecida de ofício pelo juiz a qualquer momento, enquanto não houver o esgotamento de instância.” (Brasileiro, 2012, p.732).
1.2- Momento processual adequado para a aplicação da emendatio libelli pelo julgador de primeiro grau.
No que concerne ao momento adequado para aplicação da emendatio libelli pelo juízo a quo, prevalece na doutrina e na jurisprudência que as correções necessárias serão realizadas, em regra, por ocasião da prolação da sentença ou da decisão de pronúncia, se reconhecida durante rito do Tribunal do Júri, já que o recebimento da inicial pressupõe apenas um juízo de admissibilidade da acusação.
Assim, caso o magistrado entenda que a narrativa fática corresponde a uma tipificação legal diversa daquela elencada na denúncia ou na queixa, prevalece que aquele não poderá corrigir a capitulação jurídica dos fatos ao receber a inicial, em observância ao princípio acusatório.
“É dominante o entendimento de que, em regra, a emendatio libelli só deve ser feita pelo juiz na fase da sentença. A uma, por que o dispositivo que trata da emendatio libelli no CPP – art. 383 – está inserido no Título que trata da ‘sentença’. Em segundo lugar, ainda prevalece o entendimento de que, no processo penal, o acusado defende-se dos fatos que lhe são imputados, pouco importando a classificação que lhes seja atribuída” (Brasileiro, 2012, p. 702).
No mesmo sentido posicionou-se a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do AgRg no REsp 1417555/CE, de relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, que expôs o seguinte: “(...) De acordo com reiterados precedentes desta Corte, o momento adequado para o julgador utilizar-se da emendatio libelli, nos termos do artigo 383 do Código de Processo Penal, é quando da prolação da sentença e não anteriormente no momento do recebimento da denúncia”.
Entretanto, em situações peculiares e excepcionais, tem-se admitido a adaptação do enquadramento legal no ato de recebimento da inicial acusatória, desde que tenha a finalidade de beneficiar o réu ou de viabilizar a adequada definição da competência ou do procedimento a ser aplicado.
Nesse diapasão, transcreve-se o aduzido por Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar:
“Trata-se da hipótese em que, vislumbrando capitulação equivocada quando do juízo de admissibilidade da denúncia ou queixa, o magistrado adequa a imputação, prosseguindo-se a instrução normalmente. Os tribunais superiores adotaram o entendimento de que a correção da inicial (bem como a mutatio libelli) deve se dar no momento de prolação da sentença, porém, o STF declarou que, em situações excepcionais, quando a qualificação jurídica do crime imputado repercutir na definição da competência, é viável aplicar a emendatio libelli, declinando da competência para que os autos sejam remetidos ao outro juízo” (2014, p. 875-876).
Renato Brasileiro igualmente entende ser possível a realização da emendatio libelli em um momento prévio com fulcro nos seguintes argumentos:
Conquanto prevaleça o entendimento de que o momento adequado para a perfeita qualificação jurídico-penal é o da prolação da sentença, seja por meio da emendatio libelli, seja por força da mutatio libelli, parece-nos que, em determinadas situações, é perfeitamente possível que o magistrado, no ato do recebimento da exordial acusatória, faça a correção da classificação formulada pelo acusador, sobretudo para fins de análise quanto à possibilidade de concessão de liberdade provisória e/ou aplicação de medidas despenalizadoras, tais como transação penal e suspensão condicional do processo, cuja proposta, evidentemente, deve ser formulada pelo titular da ação penal. Em tais situações, a nosso ver, não fica o juiz vinculado à classificação formulada pela autoridade policial em seu relatório, nem tampouco àquela constante da peça acusatória (2012, p. 703).
O Superior Tribunal de Justiça também se posicionou na mesma linha, conforme julgado cuja ementa é reproduzida a seguir:
PROCESSUAL PENAL E PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL, ORDINÁRIO OU DE REVISÃO CRIMINAL. EMENDATIO LIBELLI. DIREITOS PROCESSUAIS OU MATERIAIS. TEMAS DE ORDEM PÚBLICA. DECISÃO POSSÍVEL EM QUALQUER FASE DO PROCESSO. FUNDAMENTAÇÃO COM EXAME DA CORRETA ADEQUAÇÃO TÍPICA. LEGALIDADE. ANULAÇÃO DA DECISÃO FAVORÁVEL À DEFESA SEM RECURSO ACUSATÓRIO. REFORMATIO IN PEJUS. OCORRÊNCIA. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. Ressalvada pessoal compreensão diversa, uniformizou o Superior Tribunal de Justiça ser inadequado o writ em substituição a recursos especial e ordinário, ou de revisão criminal, admitindo-se, de ofício, a concessão da ordem ante a constatação de ilegalidade flagrante, abuso de poder ou teratologia. 2. Se a aplicação do direito aos fatos denunciados dá-se em regra pela sentença, mantendo ou não a tipificação indicada pela inicial acusatória - arts. 383 e 384 do Código de Processo Penal -, o reconhecimento de incontroversos direitos processuais ou materiais, caracterizados como temas de ordem pública, pode dar-se em qualquer fase do processo, inclusive com fundamentação então necessária de correto enquadramento típico. 3. Nada impede possa o magistrado, mesmo antes da sentença condenatória, evitando a mora e os efeitos de indevida persecução criminal, reconhecer desde logo clara incompetência, prescrição, falta de justa causa, direitos de transação, sursis processual, ou temas outros de ordem pública, relevantes, certos e urgentes. 4. Válido é o reconhecimento do direito à transação penal, por fatos denunciados que compreende o magistrado claramente configurarem crime de pequeno potencial ofensivo. 5. Inválido o acórdão que em habeas corpus anula essa decisão de primeiro grau, explicitando o efeito de prosseguimento da persecução criminal pelo crime comum originalmente tipificado na denúncia, já que prejudica condição processual assegurada ao acusado em impugnação exclusiva da defesa. 6. Habeas corpus não conhecido, mas concedida de ofício a ordem para tornar nulo o acórdão do habeas corpus no Tribunal local, restabelecendo a decisão de 1ª grau que determinou o prosseguimento da persecução criminal por crime de pequeno potencial ofensivo (STJ. 6ª Turma. HC 241.206-SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 11/11/2014).
Infere-se, portanto, que a posição da doutrina e da jurisprudência no sentido de admitir a flexibilização da regra relativa ao momento processual apropriado para aplicação da emendatio libelli no primeiro grau, a fim de permitir a alteração do procedimento a ser adotado, a correta fixação da competência, ou, de qualquer forma, para beneficiar o réu, consagra a efetividade da prestação jurisdicional e obsta a produção dos efeitos deletérios decorrentes da indevida persecução criminal.
2- Apontamentos sobre o princípio da proibição ou vedação da reformatio in pejus.
Antes de abordar especificamente a problemática acerca do reconhecimento da emendatio libelli na fase recursal, cumpre tecer alguns comentários sobre o princípio da ne reformatio in pejus (proibição da reforma para pior), que impõe limites à utilização daquele instituto na segunda instância.
A proibição da reformatio in pejus direta representa o impedimento, por ocasião do julgamento do recurso exclusivo da defesa, de prolação de uma decisão que prejudique ou agrave a situação da parte que recorreu.
Conforme o teor da súmula 160 do Supremo Tribunal Federal, ainda que o recurso seja interposto pela acusação, não é possível ao Tribunal reconhecer de ofício nulidades em prejuízo da defesa que não tenham sido suscitadas pela acusação, salvo quando a decisão é suscetível de recurso de ofício.
Em outras palavras, no julgamento de recurso interposto pela defesa, a situação do réu não pode ser agravada, ainda que se trate da correção, de ofício, de erro material constante da sentença condenatória.
De tal modo entendeu a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 250.455-RJ, em 17/12/2015, no qual restou evidenciada a impossibilidade, em sede de recurso exclusivo da defesa, de majoração da reprimenda aplicada ao condenado em decorrência do reconhecimento de erro aritmético na contabilização das penas cominadas diante da configuração da reformatio in pejus.
A vedação da reforma para pior está elencada no art. 617 do Código de Processo Penal, a saber: “O tribunal, câmara ou turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos arts. 383, 386 e 387, no que for aplicável, não podendo, porém, ser agravada a pena, quando somente o réu houver apelado da sentença”.
Além da proibição direta, existe também a indireta, observada quando o tribunal ad quem, ao julgar o recurso interposto exclusivamente pela defesa, anula a decisão impugnada e remete os autos ao juízo a quo para que outra seja proferida em substituição àquela.
Nesse caso é igualmente vedado o agravamento da situação do réu, de forma que a nulidade reconhecida a partir da interposição do recurso da defesa pressupõe uma limitação da nova decisão, que está condicionada ao que foi imposto no julgado inicialmente prolatado e posteriormente anulado. Tal hipótese, conhecida como efeito prodrômico, traduz um limite excepcionalmente imposto pelo ato nulo.
Em que pese a existência de posições doutrinárias em sentido contrário, prevalece, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que a vedação da reforma para pior deve subsistir mesmo em caso de incompetência absoluta, não sendo dado ao juiz absolutamente competente agravar a situação já fixada pelo juízo absolutamente incompetente.
Nesse prisma, é possível citar o HC 124.149 RJ e o HC 105.384 SP, este último assim ementado:
“HABEAS CORPUS. CRIME DE TRÁFICO INTERNACIONAL DE ENTORPECENTES. SENTENÇA ANULADA DE OFÍCIO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM EM RECURSO EXCLUSIVO DA DEFESA. RECONHECIMENTO DE INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO JUÍZO ESTADUAL PARA O JULGAMENTO DO FEITO. NOVA SENTENÇA PROFERIDA PELO JUIZ NATURAL QUE APLICA PENA SUPERIOR ÀQUELA ESTABELECIDA PELO MAGISTRADO PRIMEVO. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO NE REFORMATIO IN PEJUS. LIMITAÇÃO DA PENA QUE SE IMPÕE. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1 - O princípio ne reformatio in pejus, apesar de não possuir caráter constitucional, faz parte do ordenamento jurídico complementando o rol dos direitos e garantias individuais já previstos na Constituição Federal, cuja interpretação sistemática permite a conclusão de que a Magna Carta impõe a preponderância do direito a liberdade sobre o Juiz natural. Assim, somente se admite que este último - princípio do Juiz natural - seja invocado em favor do réu, nunca em seu prejuízo. 2 - Sob essa ótica, portanto, ainda que a nulidade seja de ordem absoluta, eventual reapreciação da matéria, não poderá de modo algum ser prejudicial ao paciente, isto é, a sua liberdade. 3 - Não obstante irrepreensível o reconhecimento pela autoridade coatora da incompetência da Justiça Estadual para o julgamento da ação penal de que se cuida - em que se imputa ao paciente a prática de tráfico internacional de entorpecentes -, ainda que em sede de apelação exclusiva da defesa, eis que se trata de vício de natureza absoluta, impõe-se que a nova condenação pelo juiz natural da causa não exceda 4 anos de reclusão, tal como estabelecido pelo Juízo da 12ª Vara Criminal de São Paulo - Juízo primitivo -, em observância ao princípio ne reformatio in pejus. 4 - Ordem parcialmente concedida” (STJ. 6ª Turma. HC 105.384 SP, Rel. Min. Haroldo Rodrigues, julgado em 06/10/2009).
No que concerne ao Tribunal do Júri, se o primeiro julgamento for anulado em razão da interposição de recurso da defesa, prevalece na jurisprudência o entendimento de que o juiz presidente, ao proferir a sentença, está vinculado aos limites da pena estabelecida na primeira decisão anulada, em respeito ao princípio da ne reformatio in pejus indireta, aplicável aos julgamentos realizados por esse tribunal. Nesse sentido, cita-se o HC 228856 SP, julgado pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 06/12/2012.
É importante aludir, ainda, que a proibição da reformatio in pejus alcança a revisão criminal, nos termos do artigo 626, parágrafo único, do CPP, sendo aplicável também ao habeas corpus, remédio que jamais poderá piorar a situação do paciente, conforme decidiu o Supremo Tribunal, por meio da 2ª Turma, no julgamento do HC 126869/RS, em 23/06/2015.
Também restará configurada a situação de reformatio in pejus quando o Tribunal reconhecer a existência de uma causa de aumento de pena não vislumbrada anteriormente pelo juízo a quo, ainda que haja redução da pena final, conforme decidiu a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em 01/09/2015, no julgamento do RHC 126763/MS, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli, nos seguintes termos:
“Recurso ordinário em habeas corpus. 2. Apelação exclusiva da defesa. Dosimetria da pena. Configuração de reformatio in pejus, nos termos do art. 617, CPP. A pena fixada não é o único efeito que baliza a condenação, devendo ser consideradas outras circunstâncias, além da quantidade final de pena imposta, para verificação de existência de reformatio in pejus. Exame qualitativo. 3. O aumento da pena-base mediante reconhecimento de circunstâncias desfavoráveis não previstas na sentença monocrática gera reformatio in pejus, ainda que a pena definitiva seja igual ou inferior à anteriormente fixada. Interpretação sistemática do art. 617 do CPP. 4. Recurso provido para que seja refeita a dosimetria da pena em segunda instância”.
Por outro lado, a reforma para pior não será observada se no julgamento de recurso exclusivo da defesa o Tribunal de Justiça mantiver a pena fixada pelo magistrado de primeiro grau, porém, com base em fundamentos diversos dos que foram adotados inicialmente. Nesse sentido, decidiu a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RHC 119149/RS, em 10/2/2015.
3- Possibilidade de reconhecimento da emendatio libelli na segunda instância e limitação imposta pelo princípio da proibição da reformatio in pejus.
A ementadio libelli é plenamente admitida em sede recursal, todavia, faz-se necessário sopesar alguns aspectos dessa permissibilidade, a fim de evitar o desvirtuamento do citado instituto e a aplicação dissimulada da reformatio in pejus em prejuízo do réu.
Destarte, a utilização do instituto no segundo grau de jurisdição pressupõe a observância dos limites elencados no art. 617 do CPP. Assim, embora admissível a emendatio libelli no julgamento de recurso interposto contra sentença proferida pelo juízo a quo, se apenas a defesa houver recorrido e a nova capitulação acarretar prejuízos ao réu no que atine ao cumprimento da pena ou à maior reprovabilidade conferida à conduta, ainda que mantida ou reduzida a penalidade inicialmente imposta, restará configurada a reformatio in pejus, proibida pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Eugênio Pacelli de Oliveira sustenta o seguinte acerca do tema:
“Cumpre observar, porém, que, embora possível, a emendatio libelli em segundo grau sofre as mesmas limitações pertinentes aos efeitos devolutivos dos recursos, em geral. Vige aqui a regra da proibição da reformatio in pejus, ou reforma para pior, segundo o qual o julgamento do recurso não poderá ser mais desfavorável que a decisão de primeira instância, em relação à impugnação aviada exclusivamente pelo recorrente. Não havendo recurso do Ministério Público, o tribunal não poderá piorar a situação do acusado com base no recurso por ele interposto. Assim, ainda que o tribunal esteja autorizado a corrigir a capitulação do crime, da emenda não poderá resultar, nunca, aplicação de pena mais grave”. (2014, p. 649).
Sobre o assunto, impende trazer à baila um caso paradigmático e elucidativo citado por Leonardo Barreto Moreira Alves e transcrito a seguir, decidido pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 121089/AP, em 02/12/2014:
“O STF decidiu que há reformatio in pejus no acórdão que, em julgamento de recurso exclusivo da defesa, reforma sentença condenatória para dar nova definição jurídica ao fato delituoso – emendatio libelli -, mantida a pena imposta, porém desclassificado o crime de furto qualificado (CP, 155, § 4°, lI) para o crime de peculato (CP, art, 312, § 1º). Assim, primeiramente, asseverou-se que seria possível a realização da emendatio libelli em 2° grau de jurisdição, mesmo nas hipóteses de recurso exclusivo da defesa, desde que respeitados os limites estabelecidos pelo art. 617 do CPP. No caso, o tribunal de 2° grau, ao readequar a capitulação legal à narrativa apresentada - o fato descrito na acusação teria sido praticado por funcionário público equiparado (CP, art, 327, § 1°) -, mantivera a pena privativa de liberdade anteriormente aplicada, na tentativa de não gerar prejuízo ao sentenciado. Porém, ao se ponderar atentamente os efeitos da condenação e as circunstâncias referentes à emendatio libelli efetivada, seria inevitável concluir pela superveniência de vedada reformatio in pejus. Com efeito, não se poderia olvidar não ser a pena fixada o único efeito ou única circunstância a permear uma condenação. Haveria regra específica para os condenados pela prática de crime contra a Administração Pública, como o peculato: a progressão de regime do cumprimento da pena respectiva seria condicionada à reparação do dano causado ou à devolução do produto do ilícito praticado (CP, art, 33, § 4°). Na espécie, apesar de ter sido aplicado o regime inicial aberto ao paciente, não se poderia descartar que, durante a execução da reprimenda, este sofresse regressão de regime e fosse prejudicado pela emendatio libelli, aparentemente inofensiva (Informativo no 770)” (2015, p. 345).
Diante disso, constata-se, no caso citado, que a pena imposta manteve-se inalterada, contudo, a situação do réu foi agravada, já que, em se tratando de crime cometido em face da Administração Pública, a progressão de regime está atrelada ao preenchimento de requisito adicional previsto no art. 33, § 4º, do Código Penal, qual seja, a prévia reparação do dano ou a devolução do produto o ilícito, que não é exigido na hipótese de crime contra o patrimônio.
Ante o exposto, é importante enfatizar, como bem entendeu o Supremo Tribunal Federal, que a verificação da reforma para pior decorrente da aplicação da emendatio libelli pelos tribunais pátrios, no julgamento de recurso exclusivo da defesa ou mesmo de recurso da acusação que não refute especificamente a matéria, não pode vincular-se apenas à quantidade de pena aplicada, sendo indispensável a análise acerca das consequências advindas dos demais efeitos da condenação.
CONCLUSÃO
Consoante restou elucidado no decorrer deste artigo, tem-se que a emendatio libelli é o instituto que confere ao julgador a possibilidade de corrigir a inicial acusatória, com a finalidade de adequar a narrativa fática ao tipo penal descrito na legislação, sem que tal providência acarrete prejuízos à defesa, ainda que resulte na aplicação de pena mais grave, uma vez que não cabe ao acusado defender-se da capitulação legal.
Não obstante a regra que fixa o momento da prolação da sentença ou da decisão de pronúncia como o mais adequado à realização da emendatio, ressaltou-se a existência de corrente doutrinária e de entendimento jurisprudencial no sentido de admitir, em situações excepcionais, a modificação da definição jurídica do fato no ato de recebimento da exordial acusatória.
A hipótese supradescrita confere efetividade à prestação da tutela jurisdicional e se justifica, sobretudo, quando permitir a adequada fixação da competência ou do procedimento a ser adotado, assim como em outras situações que beneficiem o acusado, a exemplo da concessão de liberdade provisória ou da adoção de medidas despenalizadoras diversas.
Demonstrou-se, outrossim, que o princípio da proibição da reforma para pior (ne reformatio in pejus) consagra uma limitação à aplicação da emendatio libelli no segundo grau de jurisdição, quando se tratar de recurso interposto exclusivamente pela defesa ou mesmo de recurso da acusação que não tenha ventilado a matéria objeto de discussão.
Ao final, concluiu-se, em consonância com o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal, que a utilização do instituto em sede recursal pressupõe cautela e não está vinculada apenas à quantidade da pena aplicada, exigindo-se a análise acerca dos demais efeitos da condenação, uma vez que, mesmo mantida ou reduzida a penalidade, podem advir prejuízos ao agente em razão da alteração das condições de cumprimento da pena ou da maior reprovabilidade conferida à conduta.
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STJ. HC 241.206/SP. Relator: Ministro Nefi Cordeiro. Sexta Turma. Dje: 11/12/2014.
STJ. HC 250.455/RJ. Relator: Ministro Nefi Cordeiro. Sexta Turma. Dje: 05/02/2016.
STJ. HC 124.149/RJ. Relatora: Ministra Laurita Vaz. Quinta Turma. Dje: 06/12/2010.
STJ. HC 105.384/SP. Relatora: Ministra Haroldo Rodrigues. Sexta Turma. Dje: 03/11/2009.
STJ. HC 228.856/SP. Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior. Sexta Turma. Dje: 30/04/2013.
STF. HC 126.869/RS. Relator: Ministro Dias Toffoli. Segunda Turma. Dje: 21/08/2015.
STF. RHC 126.763/MS. Relator: Ministro Dias Toffoli. Segunda Turma. Dje: 01/02/2016.
STF. RHC 119.149/RS. Relator: Ministro Dias Toffoli. 1ª Turma. Dje: 07/04/2015.
STF. HC 121.089/AP. Relator: Ministro Gilmar Mendes. 2ª Turma. Dje: 17/03/2015.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN. Técnica e Assessora Jurídica do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OTTONI, Maria Clara Góis Campos. Emendatio libelli: perspectivas doutrinária e jurisprudencial a respeito da aplicação do instituto no primeiro grau de jurisdição e na segunda instância Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46561/emendatio-libelli-perspectivas-doutrinaria-e-jurisprudencial-a-respeito-da-aplicacao-do-instituto-no-primeiro-grau-de-jurisdicao-e-na-segunda-instancia. Acesso em: 22 nov 2024.
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