RESUMO: O vertente trabalho se propõe a realizar uma abordagem sobre a evolução do conceito de culpabilidade, percorrendo as principais formulações teóricas acerca deste elemento integrante do conceito analítico de crime, fundamento da individualização e justificação da imposição da pena no caso concreto.
Palavras-chave: Culpabilidade; Teoria psicológica; Teoria psicológico-normativa; Teoria normativa pura.
1. Considerações iniciais: delimitação do objeto de estudo.
Em linhas gerais, o presente trabalho se propõe a realizar uma abordagem sobre a evolução do conceito de culpabilidade, percorrendo as principais formulações teóricas acerca deste elemento integrante do conceito analítico de crime, fundamento da individualização e justificação da imposição da pena no caso concreto.
É necessária, todavia, uma advertência quanto aos limites da vertente pesquisa, haja vista a acentuada amplitude de temas pertencentes ao estudo da culpabilidade que são objetos de inúmeras investigações por parte da dogmática penal. Neste sentido, analisar-se-á o desenvolvimento do conceito de culpabilidade a partir da teoria psicológica, bem assim das suas imediatas sucessoras, quais sejam as teorias psicológico-normativa e normativa pura.
No que concerne à concepção psicológica da culpabilidade, concebida no âmbito da doutrina causal da ação de Von Liszt, será abordada a ideia da culpabilidade enquanto a relação psicológica entre o autor e seu fato, assim como as principais críticas que foram formuladas contra a citada teoria, posteriormente superada pela teoria psicológico-normativa.
Verificadas as inconsistências decorrentes do modelo psicológico da culpabilidade, cuidou a dogmática penal de promover uma reformulação de tal conceito, tendo como resultado de tal operação a introdução de um novo elemento na culpabilidade, de caráter eminentemente normativo, qual seja a “reprovabilidade”.
A culpabilidade, então, deixa de ser entendida apenas como a relação psicológica entre o autor e o fato, passando a abarcar, também, um juízo de reprovação sobre o sujeito responsável pela prática de uma conduta ilícita, num contexto em que lhe era plenamente exigível uma atuação conforme o ordenamento jurídico. Nesta etapa do trabalho, será fundamental destacar os contributos de Reinhard Frank, James Goldschmidt, Berthold Freudhental e Edmund Mezger para a conformação da referida concepção psicológico-normativa da culpabilidade.
Por fim, caberá então proceder-se à abordagem do conceito de culpabilidade sob o enfoque da teoria final da ação de Hans Welzel. Com sua evolução, assistiu-se à extração de todos os elementos subjetivos que integravam a culpabilidade até a conformação da concepção psicológico-normativa, remanescendo neste elemento integrante do conceito analítico de crime apenas as circunstâncias que conduzem à censurabilidade da conduta atentatória ao Direito (daí por que chamar-se esta última teoria de normativa pura).
2. A Culpabilidade segundo a doutrina causalista. A Teoria Psicológica da Culpabilidade.
Historicamente, a culpabilidade somente se firmou como uma categoria autônoma no conceito analítico de crime nas últimas décadas alemãs do século XIX. Basta perceber que, até o surgimento da Teoria Psicológica, a ilicitude e a culpabilidade faziam parte de uma única categoria na estrutura do delito. Ilustram essa realidade, os pensamentos de Merkel (1867) e Binding (1872), nos quais a culpabilidade estava entrelaçada à categoria da antijuridicidade.[1]
Nesse contexto, sob o influxo da concepção positivista de ciência natural – fundada no empirismo e no abandono metafísico – e do pensamento de Rudolf von Ihering – que demonstrou a existência de injustos não culpáveis – Franz von Liszt, principal articulador da Teoria Psicológica, desvinculou a culpabilidade da antijuridicidade e a alavancou para a condição de categoria autônoma dentro da Teoria do Delito.[2]
Surgiu, desta forma, a Teoria Psicológica, que denota a culpabilidade como uma relação causal psíquica do autor com o fato criminoso, é dizer, consiste na análise de dois elementos subjetivos: i) capacidade de culpabilidade (imputabilidade)[3]; ii) relação psicológica do autor com o fato (dolo ou culpa)[4]. Dessa maneira, o ato culpável está conformado pela ação dolosa ou culposa de um indivíduo imputável.[5]
Diante da necessidade positivista e naturalística de expulsar as valorações imprecisas do conceito de culpabilidade e tornar o Direito Penal o mais exato e científico possível, a conduta criminosa foi dividida em duas fases, a saber: a externa ou objetiva (relacionada com a antijuricidade e com a causalidade material) e a interna ou subjetiva (relacionada com a culpabilidade e com a causalidade psíquica).[6] Nesse diapasão, na análise objetiva do injusto a única nota subjetiva admitida por von Liszt seria o impulso da vontade, isto é, a voluntariedade do movimento corporal (inervação muscular voluntária); qualquer outro elemento subjetivo (conteúdo da vontade) seria analisada na esfera da culpabilidade.[7]
Nessa trilha de raciocínio, Cezar Roberto Bittencourt e Muñoz Conde enfatizam a influência do positivismo-naturalista na teoria psicológica: “Von Liszt reduz a ação a um processo causal originado do impulso voluntário”[8]
A referida Teoria Psicológica da culpabilidade representou, nesse contexto, uma grande superação histórica na seara penal. Basta perceber sua precisa definição estrutural que culminou na autonomia da culpabilidade; na superação da responsabilidade penal puramente objetiva – já que a conduta culpável seria derivada do dolo ou culpa do indivíduo imputável – e no fortalecimento do garantismo, derivado da concepção funcionalista da pena enquanto protetora de bens jurídicos e concretizadora da dignidade humana, da imposição de critérios naturalísticos objetivos mais facilmente verificáveis para aplicação da pena.[9]
Malgrado os referidos avanços históricos[10], a teoria psicológica sofreu diversas críticas, a saber: i) ausência de resposta para os delitos cometidos com culpa inconsciente, pois não há nesses casos uma relação psíquica entre o autor e o fato ; ii) impossibilidade de exclusão da culpabilidade daquele que age dolosamente, mas munido do estado de necessidade exculpante ; iii) impossibilidade de separação da conduta humana em fase externa e interna, pois existem elementos subjetivos nas causas de justificação; iv) impossibilidade de reunião do dolo e culpa na mesma classificação, diante da heterogeneidade dos mesmos, pois a culpa é formada de elementos normativos e o dolo de elementos psicológicos v) formalismo positivista engessa a culpabilidade (não permite a sua graduação), impede a existência de exculpantes supralegais (não havia o conceito de inexigibilidade) e, por consequência, reifica o homem, violando-lhe sua dignidade.[11]
3. A teoria psicológico-normativa da culpabilidade.
Diante do ambiente político, econômico e jurídico do início do século XX – marcado, sobretudo, pelo surgimento do Welfare State e do Neokantismo – a teoria psicológica da culpabilidade, que até então era dominante na doutrina, começa a ser substituída pelo “Direito Penal neoclássico”, vale dizer, um novo sistema do delito que paulatinamente vai reintroduzindo a análise axiológica no âmbito do direito (que era rejeitado pelo purismo metodológico positivista) e inserindo elementos normativos no conteúdo da culpabilidade.[12]
Nesse contexto, nas duas primeiras décadas do século XX, ocorreu uma mudança no conceito da culpabilidade, que deixa de ser apenas um vínculo psicológico entre o autor e o fato para abarcar, também, um juízo de valor, consubstanciado na reprovação sobre o autor do delito. A culpabilidade, assim, não se resume mais ao dolo e à culpa (elementos psicológicos), mas passa a integrar também elementos normativos (valorativos), surgindo, então, dessa fusão de dolo/culpa e valores a teoria chamada psicológica-normativa. Tem-se, nesse diapasão, um novo elemento integrante da culpabilidade, de caráter normativo que é a reprovabilidade (ou censurabilidade)[13]. Observa-se, então, ao mesmo tempo, uma relação psicológica e um juízo de reprovação.[14]
O pensamento normativista, entretanto, não pode ser descrito como um movimento único e harmônico de ideias, mas através de diversas concepções. Cumpre, então, fazer referência aos pontos principais dos mais importantes representantes da teoria neoclássica (psicológico-normativa) do delito.
3.1 Reinhard Frank.
Reinhard Frank, considerado o idealizador da teoria normativa, desenvolveu em 1907 a concepção de culpabilidade como reprovabilidade. Atribui-se a Frank o pioneirismo no questionamento da doutrina acerca da culpabilidade até então entendida como dominante, no bojo da qual se sustentava a existência de um vínculo psicológico entre o autor e o fato[15].
Na lição de Frank, o conteúdo da culpabilidade não se esgotaria tão somente no elemento subjetivo (dolo ou culpa) em que se exprime o momento psicológico da conduta, sendo necessário que a mesma também seja censurável. Tal juízo de censura, todavia, só seria admissível em casos em que o agente atuasse no estado normal das circunstâncias que envolviam sua conduta, a partir de onde se concluiria que circunstâncias anormais afastariam a reprovabilidade.[16]
Em linhas gerais, Frank estabeleceu que a culpabilidade reuniria três elementos, quais sejam: i) imputabilidade; ii) dolo e culpa; iii) normalidade das circunstâncias concomitantes. A imputabilidade, nesse contexto, representaria uma atitude espiritual normal do autor, que, caso existente, permitiria que o juízo de reprovação geral de um comportamento antijurídico se subsumisse ao caso concreto O dolo e a culpa, por seu turno, corresponderiam à relação psíquica do autor com o fato em questão. As circunstâncias concomitantes, in fine, levam em consideração a normalidade das circunstâncias em torno das quais o sujeito atua, possibilitando o aumento, a diminuição e até a exclusão da culpabilidade, nesse último caso no estado de necessidade exculpante – fato que não era possível com a teoria psicológica. Nesse diapasão, alguém imputável pode praticar um injusto de maneira dolosa e, mesmo assim, não ser culpável em face do estado de necessidade exculpante.[17]
Frank desenvolve, assim, a culpabilidade como um fenômeno complexo, formado de elementos subjetivos e normativos, reunidos sob a forma da reprovabilidade. Isso significou a possibilidade de graduação da culpabilidade ou sua exclusão a partir da normalidade das circunstâncias, sendo importante instrumento de limitação do ius puniendi estatal, valorização do homem enquanto suas individualidades e respeito a sua dignidade.[18]
Malgrado o seu avanço em relação à concepção psicológica, a teoria frankiana sofreu diversas críticas, tanto em relação às circunstâncias concomitantes, pois o autor não detalha quando a culpabilidade vai ser maior ou menor e nem quais são as circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis; quanto em relação a suposta impossibilidade de que da união de três elementos não normativos (imputabilidade, dolo e culpa e circunstâncias) se originasse uma culpabilidade normativa.
3.2- James Goldschmidt.
Ao lado de Frank, James Goldschmidt foi outro autor que ofereceu uma contribuição decisiva para a o desenvolvimento da teoria normativa. Baseado na concepção legislativa kantiana, Goldschmidt concebeu a culpabilidade a partir da ideia de violação de uma norma de dever, uma norma interna que motiva o homem a agir de maneira lícita.
Significa dizer que o referido autor entende a culpabilidade sob o influxo de uma norma externa – norma jurídica que exige do particular determinada conduta; que faz da ação um dever – e de uma norma interna – norma de dever (“norma subjetiva de determinación”) que ordena o sujeito a conduzir sua conduta interna e motivar-se pelas representações de valor jurídico.[19] Nesse diapasão, Goldschmidt transcende a relação psíquica, pois além do dolo deveria existir a contrariedade à norma de dever.
Com relação à imputabilidade, o inimputável não seria destinatário da norma de dever, logo não poderia ser reprovável. Vale mencionar também que Goldschmmidt, assim como Frank, entende que a culpabilidade é graduável de acordo com a medida de liberdade, não sendo reprovável a conduta daquele que viola a norma de dever em situações anormais.[20]
Demais disso, Goldschimidt ressalta que quanto mais prevísivel o resultado da ação, quanto mais graves sejam as consequências, quanto mais livre esteja sua motivação de perturbações mentais e morais e quanto mais censuráveis sejam os motivos, mais reprovável seria a conduta do sujeito.[21]
Por fim, destaca-se que a teoria de Goldschmidt, conquanto tenha sido importante para a valorização do homem em suas motivações internas, deve ser tratada com cautela, pois o referido autor utilizou como paradigma de motivação normal a questionável figura abstrata do homem médio[22].
3.3. Berthold Freudenthal.
O pensamento de Freudenthal foi fruto da crise econômica que assolava a Alemanha no início do século XX, numa realidade em que a desobediência à lei representou, em muitas situações, a única solução de sobrevivência para uma série de cidadãos desesperados.[23] Nesse contexto, sustentava Freudenthal que não haveria que se falar na reprovabilidade de uma determinada conduta quando não fosse possível exigir que esta fosse conforme a lei, derivando-se daí a noção de que “a exigibilidade era o elemento diferencial necessário entre culpabilidade e inculpabilidade”.[24]
Conforme aduzido por Freudenthal, “a culpabilidade é um assunto de opinião pública, pois nenhum povo suporta a condenação de um inocente” (no caso, o sujeito que não tinha nenhuma possibilidade razoável de agir de outra maneira distinta da observada na situação concreta).[25] Dessa forma, segundo o autor, não poderia ser culpável uma pessoa que não tinha a possibilidade de atuar de outro modo (em obediência ao princípio impossibilium nulla est obligatio) mesmo que tenham sido preenchidos todos os requisitos formais e legais para a condenação (mesmo que tenha agido com dolo, por exemplo).[26] Isso significa que os elementos do dolo e da culpa transcendem a mera relação psicológica e adquirem elementos éticos, vale dizer, devem ser valorados no caso concreto.[27]
Nesta senda, várias situações especiais demandariam um juízo de absolvição por inexigibilidade de conduta diversa, como no célebre caso do condutor que guia o trem sem acionar integralmente os freios, para que possa cumprir o tempo da viagem determinado pelo patrão, sob pena de demissão, ou do pai que, atendendo à súplica de sua esposa e de sua filha gravemente enferma, mantém esta última em casa, em vez de conduzi-la ao hospital.[28]
Vale destacar também que as decisões judiciais alemãs da época tratavam essas situações especiais sob a forma de uma aplicação extensiva do estado de necessidade. Freudenthal, por outro lado, entendia que essa aplicação é ineficiente e restrita, pois seria incapaz de abrigar todas as situações que, para o entendimento popular, demandariam absolvição. Por isso, o autor propõs a tese da inexigibilidade, demonstrando o caráter humanitário de seu pensamento ao buscar o sentimento de justiça no caso concreto.[29] Com Freudenthal, a inexigibilidade torna-se um apanágio utilizado em benefício do acusado, moderando o ius puniendi.[30]
O pensamento de Freudenthal, por fim, cumpre a advertência hassemeriana de que o Direito Penal “necessita manter seus laços com as mudanças sociais; ter respostas prontas para as perguntas de hoje e não pode sempre retroceder a um purismo de ontem, perdendo-se em problemas sobre norma e violação de norma”[31]
Percebe-se, assim, que Frank, Goldschmidt e Freudenthal, vistos até então, destacam uma concepção individualizadora da culpabilidade, é dizer, consideram a reprovabilidade (“Schuldvorwurf”) para o indivíduo, enfatizando seus aspectos individuais no caso concreto, ampliando os limites da ius puniendi e formando um caráter garantista da culpabilidade.[32]
Na contramão dessa corrente de pensamento, posteriormente, alguns autores defenderam concepções generalizantes de culpabilidade normativa, em que os juízos de exculpação basearam-se no comportamento do “homem médio”. Destacamos Edmund Mezger como um dos precursores desta forma de enxergar a culpabilidade.
3.4. Edmund Mezger
A teoria complexa de Mezger conceitua a culpabilidade como um conjunto de pressupostos fáticos e normativos que fundamentam a reprovação pessoal ao autor do fato punível.[33] Nesse sentido, os pressupostos fáticos constituem uma determinada situação de fato da culpabilidade situados na pessoa do agente, enquanto os pressupostos normativos determinariam um juízo de valor sobre essa situação de fato. Em síntese, a culpabilidade para Mezger consistiria na complexidade de uma situação de fato valorada normativamente.[34]
Mezger afirma defender um conceito jurídico de culpabilidade - juízo normativo acerca de uma situação de fato psicológica[35] – todavia, sua visão de culpabilidade é eminentemente moralizante, generalizando a imputação a partir do paradigma do homem médio (concepção generalizante).[36] Nesse sentido, Couso Salas adverte que esse paradigma do homem médio generaliza a culpabilidade, sendo contrária a sua missão individualizadora-garantista.[37]
Sebástian Mello, na mesma linha, afirma que:
“O homem médio unifica e universaliza valores numa sociedade cada vez mais plural e multicultural e, por estas razões, termina por negar a condição de indivíduo e o direito de ser diferente, próprio da ideia de um Estado Democrático de Direito fundado em princípios de liberdade e tolerância.”[38]
Além disso, a culpabilidade mezgeriana ressalta sua perspectiva moralizante ao ser entendida como um reflexo da condução de vida do indivíduo, ou seja, o sujeito seria culpável pelos maus hábitos e vícios que adquiriu ao longo da vida, sendo censurado por essa posição de “inimizade ao direito”. Nesse sentido, estabelece-se uma censura pessoal ao agente pelo que ele é, e não pelo que ele fez, sendo quase impossível distinguir quais traços da personalidade seriam culposamente adquiridos ou não.[39] Esse posicionamento, por óbvio, não se compatibiliza com uma ordem jurídica de um Estado Democrático de Direito.
4. A Teoria Normativa Pura da Culpabilidade
O normativismo neokantiano estabeleceu-se como dominante nas décadas de 20 e 30 do século XX. A teoria psicológico-normativa, conforme já assinalado, considerava além do dolo e da culpa, os juízos normativos de reprovação da conduta, o que obrigava o magistrado a verificar a culpabilidade no caso concreto, observando o homem, compreendendo suas razões/motivos e verificando se o mesmo merecia uma intervenção punitiva por parte do Estado. Mesmo com os notáveis avanços trazidos por tal teoria, subsistiam os problemas decorrentes das concepções generalizantes e seu criticável paradigma do homem médio.[40]
Nesse contexto, em meados da década de 30, começam a surgir os precursores do finalismo, do conceito pessoal de injusto e da teoria normativa pura da culpabilidade.[41] No entanto, a concepção de culpabilidade transformou-se efetivamente a partir do conceito de ação final trazido por Welzel, em que a ação humana não seria uma mera inervação muscular causal (entendimento da teoria psicológica), pois o homem não é um “mero objeto causal-biológico”[42], mas um sujeito com a capacidade de autodeterminar-se, de escolher os fins e selecionar os meios para praticar suas ações. Com propriedade, Welzel afirmava que “a finalidade é vidente e a causalidade é cega.”[43]
A partir dessa corrente finalista consolidada por Welzel ocorreram significativas mudanças na estrutura do delito. Destaca-se que foram retirados os elementos subjetivos (ou psicológicos) da culpabilidade (dolo e culpa) e inseridos no injusto, fato que reduziu a culpabilidade apenas a um juízo de natureza exclusivamente normativa. A culpabilidade, nessa senda, limita-se a reunir circunstâncias que condicionam a reprovabilidade do fato antijurídico[44].
A culpabilidade, nestes termos, passou a ser entendida como a censura pessoal ao sujeito que praticou uma conduta contrária ao direito (antijurídica), quando podia atuar de acordo com ele. O finalismo fundamenta a culpabilidade na ideia de que o homem tem o “poder de atuar de forma lícita”, mas dirigiu sua vontade para desobedecer o comando normativo. Toda culpabilidade, assim, é uma culpabilidade de vontade, ou seja, uma qualidade valorativa negativa da vontade humana, que pode ser graduável segundo a importância que tenha a exigência do Direito ou segundo a facilidade ou dificuldade que teve o autor de satisfazê-la.[45]
Nesse sentido, Welzel destaca o caráter específico de reprovabilidade da culpabilidade:
“A culpabilidade contém, pois, dupla relação: a ação do autor não é como exige o Direito, apesar de o autor ter podido realizá-la de acordo com a norma. Nessa dupla relação, do não dever ser antijurídica com o poder ser lícita, consiste o caráter específico de reprovabilidade da culpabilidade”[46]
A reprovabilidade, assim, só pode existir sobre um sujeito que pode, com livre determinação (livre-arbítrio) conhecer e dirigir seu comportamento conforme o direito, pois se falta a ele a capacidade de culpabilidade (imputabilidade), o elemento intelectual da culpabilidade (o potencial conhecimento da ilicitude) ou o seu elemento volitivo (exigibilidade), o sujeito não será culpável. Destacam-se, assim, os elementos da culpabilidade para a doutrina finalista que continuam sendo utilizados mesmo no início do século XXI: i) imputabilidade; ii) potencial consciência da ilicitude; iii) exigibilidade de conduta diversa.[47]
Vale dizer que esse livre arbítrio do homem (“poder atuar conforme o direito”) é discutido por Welzel, sob um tríplice aspecto: antropológico, caracterológico e categorial. No aspecto antropológico, ele destaca que o homem é capaz de descobrir e realizar por si mesmo a conduta correta por meio de atos inteligentes, é dizer, possui a capacidade de realizar ações finais que o desvincula das ações instintivas (meros impulsos orgânico-causais). Quanto ao aspecto caracterológico, existiria um centro regulador – denominado de “Eu” – responsável por dirigir racionalmente os impulsos humanos naturais de conservação da espécie conforme sentido e valor, ou seja, seria capaz de gerar os motivos (razões objetivas) das decisões de vontade humana. Por fim, o aspecto categorial enfatiza que a liberdade humana não é um estado, mas um ato de liberação da coação causal dos impulsos para a autodeterminação conforme um sentido. Culpável é, assim, aquele sujeito imputável que falta a autodeterminação para atuar corretamente, deixando se arrastar pelos impulsos contrários ao valor.[48]
Welzel, todavia, conclui que esse livre arbítrio não pode ser demonstrado cientificamente, pois não se pode transformar em objeto a subjetividade humana. Nesse sentido, ele afirma que esse juízo serve muito mais de modo negativo, do que de modo positivo, é dizer, serviria para excluir todos os homens que naturalmente não são capazes de autodeterminação (a exemplo dos menores e dos doentes mentais que são inimputáveis).[49] É o que Jakobs afirma ser a metáfora da “ausência de coação fora do comum”.[50]
Outro ponto de destaque em sua teoria finalista é a visão de Welzel sobre o paradigma generalizante do “homem médio”. O jusfilósofo alemão afirma que a possibilidade de atuar conforme o direito não se verifica num sentido abstrato, comparando a conduta do agente com a de outro homem imaginário no lugar do autor. Ao contrário, isso deve ser verificado num determinado sujeito, numa situação concreta, que poderia adotar sua resolução da vontade de acordo com a norma.[51]
Além disso, ele afirma que pode ocorrer a exclusão da culpabilidade nos casos de incapacidade de culpabilidade ou de inevitável desconhecimento do tipo de injusto; a redução no caso de capacidade relativa ou evitável desconhecimento e o sujeito pode ser exculpado em situações de inexigibilidade (anormalidade das circunstâncias do fato)[52]
Por fim, destaca-se que Welzel estabelece a concepção da culpabilidade sob o ponto de vista formal e material. A culpabilidade formal consiste nos elementos intelectuais e volitivos que são considerados normativamente como requisitos para a imputação pessoal. Por sua vez, a culpabilidade material funda-se no conhecido “poder atuar de outro modo”, vale dizer, na possibilidade do homem concreto atuar conforme o direito, quando autuou de maneira contrária a ele.[53]
Cumpre mencionar também que Juarez Cirino dos Santos destaca as principais teorias construídas para definir o conteúdo material da culpabilidade, a saber: a) teoria do poder de agir diferente; b) teoria da atitude jurídica reprovada ou defeituosa; c) teoria da responsabilidade pelo próprio caráter; d) teoria do defeito de motivação jurídica; e) teoria da dirigibilidade normativa.[54]
Com relação à teoria do poder de agir diferente, já referida nesse artigo, e a teoria da atitude jurídica reprovada (uma variante desta), a culpabilidade seria a reprovação do sujeito imputável que praticou fato antijurídico (uma atitude reprovável), podendo agir conforme o direito. Quanto à teoria da responsabilidade pelo próprio caráter, o homem é responsável ou culpável pelo que ele é (sua personalidade), independentemente dos fatores condicionantes. Por sua vez, a teoria do defeito de motivação jurídica atribui à culpabilidade a tarefa de assinalar a ausência de motivação jurídica do autor. Por fim, a teoria da dirigibilidade normativa atribui à culpabilidade a capacidade de comportamento conforme a norma e pela capacidade de autodeterminação humana.
Diante dessa evolução teórica, Cirino dos Santos afirma que materialmente a culpabilidade dever ser baseada na alteridade, que fundamenta responsabilidade social do homem:
“Na verdade, o homem é responsável por suas ações porque vive em sociedade, um lugar marcado pela existência do outro, em que o sujeito é, ao mesmo tempo, ego e alter, e não por causa do atributo da liberdade de vontade: o princípio da alteridade, – e não a presunção de liberdade – deve ser o fundamento material da responsabilidade social e, portanto, de qualquer juízo de culpabilidade ou de reprovação pessoal.[55]
Muñoz Conde, por sua vez, leciona que o indivíduo só pode ser materialmente culpado caso tenha “motivabilidad”, é dizer, capacidade para reagir frente as exigências normativas, de comportar-se conforme o direito. Isso significa que um Estado Democrático de Direito não deve punir os que não estão em condição de poder participar isonomicamente da vida social (incapazes), mas, pelo contrário, deve promover condições efetivas para concretização da igualdade política, econômica, cultural e social entre os cidadãos.[56]
Juarez Tavares, todavia, ressalta uma das principais críticas feitas à Teoria normativa pura é de que a imputação é feita de fora do agente (do mesmo modo que a teoria psicológica), ou seja, baseado no juízo de censura pronunciado pela ordem jurídica. Abandona-se, assim, o fato e alicerça-se a responsabilidade não no agente, mas no juízo jurídico feito sobre ele.[57]
Na contemporaneidade, a função fundamental da culpabilidade é, portanto, de limitação do intervencionismo estatal, pregando o respeito pela dignidade da pessoa humana. Por isso, a culpabilidade é um fundamento irrenunciável do Direito Penal Contemporâneo. Conforme destaca Jorge Figueiredo Dias existiria o principio constitucional da culpabilidade: “princípio segundo o qual “não há pena sem culpabilidade e a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa” – deve constituir um princípio de direito constitucional próprio de todos os ordenamentos jurídicos dos Estados democráticos”.[58]
5. Considerações finais.
Consoante salientado anteriormente, o presente trabalho se propôs a realizar uma abordagem sobre a evolução do conceito de culpabilidade desde a teoria psicológica até a teoria normativa pura, abordando-se os principais autores e os seus contributos para o desenvolvimento deste elemento integrante do conceito analítico de crime, fundamento da individualização e justificação da imposição da pena a um indivíduo no caso concreto.
Embora na delimitação proposta no início do trabalho tenha se consignado que não se exorbitaria da análise da teoria normativa pura, concebida no âmbito do finalismo de Hans Welzel, cumpre registrar que diversas críticas aos postulados daquela já foram apresentadas desde a ascensão do pós-finalismo.
Provavelmente, os maiores pontos de tensão entre a culpabilidade desenvolvida no âmbito do finalismo e as discussões empreendidas acerca desde tema na contemporaneidade se relacionam ao livre-arbítrio e ao “poder atuar de outro modo”. No que concerne ao livre arbítrio, persiste a crítica ao redor da (in)viabilidade da verificação empírica da possibilidade de atuar de outro modo. Neste sentido, afirma Sebastian Mello que “a irrepetibilidade da experiência humana faz com que não dispunha o juiz de elementos para auferir se o sujeito, no momento da conduta, atuou de forma livre ou não”.[59]
Essa questão envolvendo a pretensa impossibilidade de verificação do “poder atuar de outro modo” no caso concreto se revela tão insuperável para alguns autores que se chega ao ponto de se propor a renúncia à culpabilidade enquanto fundamento e limite da pena, que encontraria sua justificação e medida a partir das exigências de prevenção geral e especial.
Por fim, convém ressaltar que a noção de livre-arbítrio vem sendo enfrentada também pela Neurociência, no bojo de pesquisas em que se investiga uma suposta ausência de liberdade por parte do ser humano, sendo o livre-arbítrio nada mais que uma ilusão criada pela mente consciente. Sem dúvidas, trata-se de mais uma relevante discussão atualmente empreendida em torno do tema da culpabilidade, não sendo o vertente trabalho, porém, o âmbito próprio para sua discussão.
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[1] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. O Conceito Material de Culpabilidade. O fundamento da imposição da pena a um indivíduo concreto em face da dignidade da pessoa humana. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 117-119.
[2] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 119-120.
[3] Segundo Liszt, responsável é todo homem mentalmente desenvolvido e mentalmente são. Por outro lado, seriam inimputáveis, por exemplo, os menores, surdos-mudos e enfermos mentais.
[4] O dolo e a culpa não são apenas formas da culpabilidade, mas são duas classes ou espécies de culpabilidade, que constitui o gênero. São “a” culpabilidade em si.
[5] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Moderna Teoria do Fato Punível. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 175.
[6] DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do Direito Penal Revisitadas. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999. p.192
[7] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 121.
[8] BITENCOURT, Cezar Roberto; MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 317.
[9] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 122-124.
[10] Liszt destaca que a autonomia da culpabilidade é fruto de um longo desenvolvimento histórico, que passeia desde o direito primitivo dos povos que puniam sem culpa até a sua teoria psicológica.
[11] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 124-126.
[12] Id. Ibid. p. 126-132.
[13] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 133.
[14] BITENCOURT, Cezar Roberto; MUÑOZ CONDE, Francisco. op. cit. p. 321.
[15] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 135.
[16] BITENCOURT, Cezar Roberto; MUÑOZ CONDE, Francisco. op. cit. p. 321.
[17] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p.135-139.
[18] Id. Ibid. p. 138-139.
[19] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 139-140.
[20] Id. Ibid. p. 140-141.
[21] GOLDSCHMIDT, James. La concepción normativa de la culpabilidad. Trad. Ricardo C. Nuñez, 2. ed., Buenos Aires: Editorial B de F, 2002. p. 126-143.
[22] A figura do homem médio surgiu na teoria normativa da culpabilidade a partir dos estudos de Eberhard Schmidt. Segundo Mercedez Pérez Manzano, esse paradigma do homem médio desvirtua a função individualizadora da culpabilidade.
[23] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 142-146.
[24] BITENCOURT, Cezar Roberto; MUÑOZ CONDE, Francisco. op. cit. p. 322.
[25] FREUDENTHAL, Berthold. Culpabilidad y reproche en el Derecho Penal. Buenos Aires: Editorial B de F, 2003. p. 63-65.
[26] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. op. cit. p. 176.
[27] GOLDSCHMIDT, James. op. cit. p. 90.
[28] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 143.
[29] Freudenthal consolidou a ideia de exigibilidade no Direito Penal, como um elemento central de uma apreciação valorativa da culpabilidade.
[30] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 146.
[31] HASSEMER, Winfried. História das ideias penais na Alemanha do Pós-Guerra. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 2, n. 6, abril-junho. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1994. p.70.
[32] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 134.
[33] BITENCOURT, Cezar Roberto; MUÑOZ CONDE, Francisco. op. cit. p. 323.
[34] JAKOBS, Günther. Derecho Penal: Parte General – Fundamentos y teoría de la imputación. 2. ed., Madrid: Marcial Pons, 1997. p.572.
[35] GOLDSCHMIDT, James. op. cit. p. 73-74.
[36] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 151.
[37] COUSO SALAS, Jaime. Fundamentos del Derecho Penal de Culpabilidad: historia, teoría y metodología. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2006. p.119-121.
[38] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p.154.
[39] Id. Ibid. p. 154.
[40] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 151-154.
[41] Destacam-se, sobretudo, Graf Zu Dohna e Hellmuth von Weber.
[42] TAVARES, Juarez. op. cit. p. 146.
[43] BITENCOURT, Cezar Roberto; MUÑOZ CONDE, Francisco. op. cit. p.328.
[44] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 156-157.
[45] WELZEL, Hans. O Novo Sistema Jurídico-Penal. Uma introdução à doutrina da ação finalista. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 87-88.
[46] WELZEL, Hans. op. cit. p.87.
[47] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. op. cit. p. 177.
[48] WELZEL, Hans. op. cit.. p.96-102.
[49] WELZEL, Hans. op.cit. p.102-103.
[50] JAKOBS, Günther. Individuo y persona. Sobre la imputación jurídico-penal y los resultados de la moderna investigación neurológica. In: JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finali-dad. Tradução de Manuel Cancio Meliá e Bernardo Feijoo Sánchez. Madrid: Thomson Civitas, 2006. p. 199.
[51] WELZEL, Hans. op cit. p. 93-94.
[52] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. op. cit. p. 173- 174.
[53] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 165.
[54] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. op cit. p. 179-182.
[55] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. op. cit. p. 182-183.
[56] BITENCOURT, Cezar Roberto; MUÑOZ CONDE, Francisco. op. cit. p. 345.
[57]TAVARES, Juarez. op. cit. p. 145.
[58] DIAS, Jorge de Figueiredo. op. cit. p. 228-229.
[59] MELLO, Sebastian Borges de Albuquerque. op. cit. p. 165.
Advogada. Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia (2012). Pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp/Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (2013).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Renata Visco Costa de. Evolução do conceito de culpabilidade: da teoria psicológica até a teoria normativa pura Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 maio 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46569/evolucao-do-conceito-de-culpabilidade-da-teoria-psicologica-ate-a-teoria-normativa-pura. Acesso em: 26 dez 2024.
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