RESUMO: A doutrina pátria, nos últimos tempos, vem questionando bastante o princípio da não produção de provas contra si mesmo, conhecido pelo brocardo latino nemo tenetur se detegere, em razão de sua suposta intangibilidade decorrente da sua própria natureza de direito fundamental. Nesse contexto, o presente estudo se propõe a demonstrar que a sua aplicabilidade vai além do direito ao silêncio e as inúmeras faces que ele aparece no ordenamento jurídico brasileiro. Para isso, inicialmente será feita uma breve abordagem sobre a teoria geral da prova no processo penal brasileiro, passando em seguida a análise histórica do próprio princípio nemo tenetur se detegere. Dessa forma, o princípio será estudado sob o aspecto de direito fundamental constitucionalmente tutelado, bem como a sua aplicação no interrogatório do acusado e na produção de provas que dependam da sua cooperação. Em especial, serão enfatizadas as consequências da violação do direito da não produção de provas contra si mesmo, debatendo acerca da sua relativização e das polêmicas formas de aplicação no processo penal brasileiro.
Palavras-Chaves: Provas. Direito ao silêncio. Não autoincriminação.
ABSTRACT: The homeland doctrine, in recent times, is quite challenging the principle of non-production of evidence against himself, known by the Latin aphorism nemo tenetur se detegere, because of his supposed inviolability due to its nature of fundamental right. In this context, this study aims to demonstrate that its applicability goes beyond the right to silence and the many faces that it appears in the Brazilian legal system. For this, it will be initially made a brief approach to the general theory of evidence in the Brazilian criminal procedure, then moving on historical analysis of the very principle nemo tenetur se detegere. Thus, the principle will be studied under the aspect of constitutionally safeguarded fundamental law and its application in the interrogation of the accused and the production of evidence under their cooperation. In particular, the consequences will be emphasized the infringement of not producing evidence against himself, debating about their relativization and controversial application forms in the Brazilian criminal proceedings.
Keywords: Evidences. Right to silence. No self-incrimination.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O princípio nemo tenetur se detegere aparece dentre as mais importantes questões apreciadas pelo processo penal, no âmbito do tema “provas”, na medida em que um dos maiores desafios atuais consiste na necessidade de se promover uma reconstrução eficaz dos fatos tal como ocorridos na realidade, sem que com isso sejam violados direitos e garantias fundamentais outorgados às partes.
Além de está previsto na Convecção Americana de Direitos Humanos, a nossa Constituição Federal de 1988 o consagra no rol dos direitos fundamentais e, ainda podemos relacioná-lo com outros direitos igualmente assegurados, tais como a ampla defesa, a presunção de inocência e o direito à intimidade.
Trata-se, portanto, de um direito fundamental constitucionalmente tutelado que visa proibir uma autoridade de praticar atos que obriguem um individuo a prestar informações ou dados que sirvam de prova para incriminá-lo direita ou indiretamente, sendo a sua forma de manifestação mais conhecida e que merece maior destaque, o direito ao silêncio.
Contudo, conforme iremos demonstrar no presente estudo, a sua aplicabilidade não se restringe a tal garantia constitucional, e passa também pelo direito de não colaborar com a investigação ou instrução criminal, o direito de não declarar contra si mesmo, o direito de não confessar e o direito de não falar a verdade.
Em linhas gerais, limita-se a atividade estatal, especificamente a persecução penal, com o intuito de promover a dignidade da pessoa humana. Assim, teremos o seguinte panorama: sobrepondo o interesse individual de forma absoluta, a persecução penal estaria totalmente prejudicada; e prevalecendo apenas o interesse público, o acusado teria que submeter as arbitrariedades cometidas pelo poder estatal.
A questão é vista pela doutrina sob diversos prismas e enseja várias abordagens metodológicas. E, nos últimos tempos, o olhar sobre essa intangibilidade do direito de não autoincriminação vem sendo alterado, surgindo certa relativização por parte dos julgados dos Tribunais Superiores e da legislação pátria.
Diante do exposto, o presente estudo tem como escopo analisar a medida ideal para a sua aplicação, ou seja, soluções que garantam a sua preservação sem inviabilização da persecução penal.
2. NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE O DIREITO À PROVA
O direito à prova (right to evidence, em inglês) se apesenta como um verdadeiro desdobramento do direito de ação, estando intimamente relacionado com a garantia constitucional do due processo of law, inserida no contexto dos princípios da ampla defesa e do contraditório.
Assim, podemos conceitua-lo como um direito que permite as partes levar a juízo e provar a veracidade das suas alegações. Desta feita, no momento que é concedido as partes o poder de participar na produção de provas, se desenvolve o chamado “direito à prova”, indo além do ônus probatório.
Outrossim, como não se trata de um direito absoluto, a sua aplicabilidade encontra limites nas regras e princípios estabelecidos pelo nosso ordenamento jurídico pátrio, estando condicionada, em especial, pela observância do devido processo legal e da inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos.
O ilustre doutrinador Antônio Fernandes Scarance (2002, p. 73-74) apresenta os seguintes desdobramentos o direito à prova, vejamos:
a) o direito de requerer a produção; b) direito a que o juiz decida sobre o pedido de produção de prova; c) direito a que, deferida a prova, esta seja realizada, tomando-se todas as providências necessárias para sua produção; d) direito a participar da produção da prova; e) direito a que a produção da prova seja feita em contraditório; f) direito a que a prova seja produzida com a participação do juiz; f) direito a que, realizada a prova, possa manifestar-se a seu respeito; direito a que a prova seja objeto de avaliação pelo julgador.
Assim, conforme se depreende da divisão realizada pelo doutrinador acima mencionado, o direito à prova possui vários desdobramentos para possibilitar ao réu um processo pautado nos postulados do Estado Democrático de Direito, em especial, no devido processo legal e na ampla defesa.
Então, para compreender melhor sobre este direito e seus desdobramentos e, consequentemente, analisar o princípio nemo tenetur se detegere, faz-se necessário apresentar a teoria geral da prova no processo penal brasileiro.
2.1. TERMINOLOGIA DA PROVA
Inicialmente, lembramos que palavra “prova” tem origem do vocábulo latino probatio, o qual, por sua vez, emana do verbo probare e tem como definição prova, argumento, razão, ou melhor, aquilo que atesta a verdade ou autenticidade de alguma coisa.
A doutrina costumeiramente apresenta três acepções para a palavra “prova”. A primeira delas vai analisar a “prova” como uma atividade probatória, isto é, o ato de provar. Trata-se, portanto, das atividades desempenhadas pelas partes na busca pela demonstração da verdade dos fatos alegados.
Já o segundo sentido, traz a palavra “prova” como meio, caracterizado pelos mecanismos idôneos capazes de influir na construção da convicção do órgão julgador sobre os fatos afirmados em juízo. Assim, é possível concluir que essas primeiras acepções pertence à ótica objetiva da prova, através dos quais as partes concretizam a atividade probatória.
Por fim, a terceira interpretação dada a palavra “prova” é como resultado da ação de provar, sendo, especificamente, a formação da convicção do magistrado diante dos fatos relevantes para julgamento e afirmados em juízo pelas partes. Refere-se, portanto, à ótica subjetiva da atividade probatória desenvolvida, que tem o condão de adentrar no íntimo do julgador, a partir das provas produzidas em contraditório, para aperfeiçoar a sua convicção e julgar fundamentadamente em decorrência da livre apreciação da prova.
Destarte, é possível concluir que a atividade probatória tem o escopo de demonstrar no processo a veracidade acerca da existência dos fatos apresentados pela parte a quem foi conferido o respectivo ônus, a partir dos instrumentos hábeis colocados a sua disposição pelo ordenamento jurídico e, assim, poder influenciar no íntimo do julgador e, consequentemente, na sua decisão.
2.2. ÔNUS DA PROVA
Como não poderia deixar de ser, o nosso ordenamento jurídico determina que a sistemática das provas no processo penal seja orientada, especialmente, em consonância com o postulado constitucional da presunção de inocência.
Antes de tudo, é possível conceituar ônus da prova como um verdadeiro encargo conferido as partes de provar, a partir dos instrumentos e meios idôneos admitidos legalmente, a fidelidade entre as alegações produzidas em juízo e a realidade fática nos autos do processo. Ressalta-se, ainda, que a sua inércia é capaz de provocar uma situação de desvantagem no processo.
Nos termos do art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal, “ninguém poderá ser considerado culpado senão após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, demonstra que o ônus probatório da materialidade e autoria do crime deve competir exclusivamente à acusação.
Com efeito, o nosso ordenamento impõe o ônus da prova a quem alega. Apesar da modificação promovida pela Lei n. 11.6902008, não houve quanto a este aspecto, mantendo a “regra de que o ônus de se provar o alegado compete a quem fizera alegação. Trata-se de regra em perfeita sintonia com os princípios gerais do direito, com a boa-fé, a obrigação de dizer a verdade, o esforço para buscar a verdade real, entre outros” (SILVA, 2008, p. 64).
Sobre o tema, faz-se importante mencionar a discussão doutrinária acerca da distribuição propriamente dita do ônus da prova, isto é, o que compete especificamente a defesa e a acusação provar no âmbito do processo penal. Nesse contexto, surgem duas correntes doutrinárias: a primeira (majoritária), que efetivamente promove a distribuição da atividade probatória entre acusação e defesa; e a segunda (minoritária), que dispõe ser privativo da acusação o ônus da prova.
Para a corrente majoritária, compete à acusação provar: a existência do fato típico, a autoria ou participação, o nexo causal e o elemento subjetivo do agente (dolo ou culpa). Assim, pertenceria à acusação a competência para provar, tão somente, a existência do fato típico, excluindo a prova da ilicitude e da culpabilidade.
Por outro lado, a corrente minoritária entende que, em um Estado Democrático de Direito, onde vigora o princípio da presunção de inocência, competiria exclusivamente à acusação todo o ônus probatório. Nesse contexto, Aury Lopes Júnior (2008, p. 504) entende que:
[...] gravíssimo erro é cometido por numerosa doutrina (e rançosa jurisprudência), ao afirmar que a defesa incumbe a prova de uma alegada excludente. Nada mais equivocado, principalmente se compreendido o dito até aqui. A carga do acusador é de provar o alegado; logo, demonstrar que alguém (autoria) praticou um crime (fato típico, ilícito e culpável). Isso significa que incumbe ao acusador provar a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade e, logicamente, a inexistência das causas de justificação.
Nesse sentido, concordamos que a distribuição da atividade probatória no processo penal ocorrerá seguindo a seguinte premissa: em decorrência do princípio constitucional da presunção de inocência, pertence à acusação o ônus da prova de demonstrar a materialidade e autoria delitiva, capaz de romper com esta presunção e, assim, obter um decreto condenatório; por outro lado, deve-se assegurar ao réu o exercício da ampla defesa e, consequentemente, o direito de provar os fatos afirmados em juízo para melhor condução do processo e, assim, possibilitar a sua influência na formação da íntima convicção do magistrado.
3. O PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE DETEGERE
3.1. CONCEITO
O princípio da não autoincriminação, expressado pela máxima latina nemo tenetur se detegere, significa, literalmente, que ninguém é obrigado a se descobrir. Já pelo direito anglo-americano é conhecido pela expressão privilegie against self-incrimination.
Nesse sentido, temos que aquele que é acusado de ter cometido uma infração penal tem o direito de não se autoincriminar, isto é, de não produzir provas que possam ser utilizadas para corroborar com a acusação e, consequentemente, ocasionar a sua condenação. Tradicionalmente, o princípio nemo tenetur se detegere apresenta como principal manifestação o direito ao silêncio, assegurado pelo art. 5º, inciso LXIII da Constituição Federal. Sobre o tema, Alexandre de Morais (2000, p. 286) leciona:
a garantia ao silêncio do acusado foi consagrada no histórico julgamento norteamericano ‘Miranda v. Arizon’, em 1966, em que a Suprema Corte, por cinco votos contra quatro, afastou a possibilidade de utilização como meio de prova de interrogatório policial quando não precedido da enunciação dos direitos do preso, em especial, ‘você tem o direito de ficar calado’ (you have the right to remain silent...), além de consagrar o direito do acusado em exigir a presença imediata de seu advogado.
Desta feita, é possível aduzir que o principal escopo do princípio ora em estudo é proteger o cidadão os excessos cometidos pelo Estado no andamento de toda a persecução penal, inclusive para obstar que o acusado venha a ser submetido à coação e violência física ou moral para cooperar na instrução probatória.
Quanto à titularidade do direito da não autoincriminação, não podemos restringi-la a figura do acusado (réu), devendo ser estendido a qualquer pessoa que posa produzir provas contra si mesmo.
Ressalta-se, por fim, que para a aplicação do princípio nemo tenetur se detegere é prescindível analisar se está diante de inquérito policial, processo criminal ou cível, procedimento administrativo ou Comissão Parlamentar de Inquérito. Isto porque, havendo a possibilidade de se autoincriminar, qualquer pessoa poderá fazer uso deste direito seja qual for a esfera de responsabilização.
Para compreender melhor sobre o princípio nemo tenetur se detegere e, por conseguinte, as consequências de sua violação, faz-se necessário analisar sua evolução histórica, bem como introduzi-lo na ordem jurídica constitucional.
3.2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE NÃO PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO
Primeiramente, cumpre salientar que alguns doutrinadores consideram impossível identificar a origem do princípio nemo tenetur se detegere, haja vista que consideram tal postulado inserido nas regras gerais do direito. Não obstante as dificuldades encontradas na busca pela identificação de suas raízes, temos o referido princípio assumiu, ao longo dos anos, diversos significados e desdobramentos.
Nas civilizações clássicas, não existia vestígios da presença do direito da não autoincriminação. Exemplificando, constata-se que na Grécia antiga eram utilizadas técnicas de tortura no interrogatório de acusados, com fito de obter a confissão e delação dos cúmplices[1].
Do mesmo modo, não havia lugar para a aplicação do postulado em estudo na Idade Média. Durante este período histórico, a confissão era vista como a prova máxima e determinante para o resultado do processo penal. Nesse contexto, o interrogatório do acusado era visto como meio de prova, não havendo espaço para a concessão do direito ao silêncio. Por tal razão, a tortura era amplamente utilizada no interrogatório para obtenção da confissão do acusado.
Historicamente, é inegável a grande aproximação do postulado em análise com o interrogatório do réu. E, foi no período Iluminista que o princípio nemo tenetur se detegere ganhou força e passou a ser assegurado efetivamente no interrogatório do acusado. Com grande afinco, os iluministas rechaçaram a utilização da tortura e o juramento de dizer a verdade imposto ao acusado no momento do interrogatório, já que não restam dúvidas que tal constrangimento vai de encontro com a própria natureza do próprio ser humano.
Assim, paulatinamente o princípio nemo tenetur se detegere foi ocupando o seu espaço, ao mesmo tempo em que foi sendo conferido ao cidadão uma maior proteção perante os abusos estatais e, consequentemente, reduzindo o uso da força contra o réu durante o seu interrogatório.
Todavia, apenas na Idade Contemporânea que os diplomas internacionais passaram a citar, direta ou indiretamente, o princípio da não autoincriminação.
Não obstante mencionar expressamente o princípio da presunção de inocência e a proibição da utilização da tortura, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) não fez referência direta ao princípio nemo tenetur se detegere. Somente em 22 de novembro de 1969, com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada na Conferência de São José da Costa Rica, que expressamente foi disposto acerca do princípio nemo tenetur se detegere, ao tratar das garantias mínimas que devem ser conferidas ao acusado, em seu artigo 8, parágrafo 2, letra “g”.
Nos dias atuais, o princípio nemo tenetur se detegere é inerente a todo e qualquer Estado Democrático de Direito, bem como é considerado de fundamental importância para a efetivação do postulado da dignidade da pessoa humana.
No Brasil, o princípio encontra-se consagrado na Constituição Federal de 1988, especificamente no art. 5º, inciso LXIII, conforme será estudado adiante.
3.3. o princípio nemo tenetur se detegere NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
O princípio nemo tenetur se detegere possui uma elevada importância na atividade probatória, haja vista que a sua observância garante um processo penal justo e democrático, em conformidade com a dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direto.
Assim, como não poderia deixar de ser, possui previsão na Constituição Federal de 1988, sendo, inclusive, considerado por muitos como um direito fundamental. Por tal razão, antes de adentrar no tema, estudaremos os direitos fundamentais.
3.3.1. Direitos fundamentais na Constituição Federal
No Estado Democrático de Direito, tal como o estabelecido em nossa Constituição Federal de 1988, tanto o postulado da dignidade da pessoa humana quanto os direitos e garantias fundamentais ganham papeis relevantes para a sua construção e efetivação. De acordo com os ensinamentos do ilustre Ingo Sarlet (2007, p. 70):
Os direitos fundamentais, consoante oportunamente averbou H.-P. Schneider, podem ser considerados, neste sentido, conditio sine qua non do Estado constitucional democrático. Além disso, como já havia sido objeto de previsão expressa na declaração de direitos da ex-colônia inglesa da Virgínia (1776), os direitos fundamentais passara a ser simultaneamente a base e fundamento (basis and foundation of government), afirmando, assim, a idéia de um Estado que, no exercício de seu poder, está condicionado aos limites fixados na sua Constituição.
O termo “direitos fundamentais” surgiu na França, a partir de um movimento político-cultural no início do século XVIII, o qual culminou com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1798); todavia, foi apenas com o advento da Declaração da Organização das Nações Unidas, no ano de 1948, que foram reconhecidos internacionalmente. De acordo com os ensinamentos do professor José Afonso da Silva (2000, p. 153):
O reconhecimento dos direitos fundamentais do homem em enunciados explícitos nas declarações de direitos, é coisa recente, e está longe de se esgotarem suas possibilidades, já que a cada passo na etapa da evolução da Humanidade importa na conquista de novos direitos. Mais que conquista, o reconhecimento desses direitos caracteriza-se como reconquista de algo que, em termos primitivos, se perdeu, quando a sociedade se dividira em proprietários e não proprietários.
Mas, o que seria dos direitos fundamentais? Na procura da melhor definição, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2009, p. 46-47) chegaram ao seguinte conceito, abaixo transcrito:
Direitos fundamentais são direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual.
A partir dessa breve exposição sobre a definição dos direitos fundamentais e a sua presença na Constituição Federal de 1988, é nós dado a possibilidade de inserção do princípio nemo tenetur se detegere nesse contexto.
3.3.2. O princípio nemo tenetur se detegere como direito fundamental
A partir dos conceitos acima apresentados, é possível concluir que o princípio nemo tenetur se detegere é um direito fundamental do cidadão, em especial, daquele que esta sendo objeto de investigação (acusado).
O princípio em estudo se apresenta como uma modalidade de autodefesa passiva, não se restringindo ao tão famoso direito ao silêncio. De forma geral, podemos dizer que se refere ao direito do acusado poder permanecer omissivo no decorrer da atividade probatória sem que isso gere qualquer tipo de prejuízo para si, ao mesmo tempo em que o Estado não pode fazer uso de medidas coercitivas ou intimidativas para obter essa colaboração. Exemplificando a situação, Cristina di Gesu (2010, p. 50) aduz:
Portanto, o princípio da não auto-incriminação decorre não só de poder calar no interrogatório, como também do fato de o imputado não poder ser compelido a participar de acareações, de reconhecimentos, de reconstituições, de fornecer material para exames periciais, tais como exame de sangue, de DNA ou de escrita, incumbindo à acusação desincumbir-se do ônus ou carga probatória de outra forma.
Assim, por se tratar de um direito que restringe a atuação estatal, protegendo o cidadão dos seus excesso, o princípio nemo tenetur se detegere pode ser classificado como um direito fundamental de primeira geração. Trata-se, portanto, de um direito fundamental que visa assegurar o postulado da dignidade da pessoa humana em face das ingerências do Estado.
Destarte, tal como qualquer direito estampado em nossa Carta Magna, o direito da não autoincriminação pode, de forma excepcional, sofrer restrições no seu âmbito de atuação, o qual deverá ser feito a partir da técnica da ponderação e com base no princípio da proporcionalidade.
3.3.3. O princípio nemo tenetur se detegere e o Código de Processo Penal
O ordenamento jurídico brasileiro, assim como no direito internacional, ampara o direito da não autoincriminação, o qual consiste no direito que o cidadão tem de não ser obrigado a submeter-se a qualquer tipo de procedimento invasivo na produção probatória que possa gerar a sua incriminação.
O Código de Processo Penal foi promulgado no ano de 1941, sob a égide da Constituição Federal de 1937, e encontra-se em vigor até os dias hodiernos. Cumpre lembrar que, ao ser elaborado, a sua inspiração adveio do Código de Processo Penal italiano, conforme ensina Eugênio Pacelli (2013, p. 05):
Inspirado na legislação processual penal italiana produzida na década de 1930, em pelo regime fascista, o CPP brasileiro foi elaborado em bases notoriamente autoritárias, por razões obvias e de origem. E nem poderia ser de outro modo, a julgar pelo paradigma escolhido e justificado, por escrito e expressamente, pelo responsável pelo projeto, Ministro Francisco Campos, conforme se observa em sua Exposição de Motivos.
A Constituição de 1937 surge no período histórico denominado de “Estado Novo”, o qual foi instituído através do golpe de Estado promovido por Getúlio Vargas, possuindo, assim, forte influência autoritária e antidemocrática.
Dessa forma, o Código de Processo Penal, ao ser recepcionado pela Constituição Federal de 1988, adquire novo aspecto, devendo prezar pelo respeito ao postulado da dignidade da pessoa humana, com a interpretação e aplicação dos seus institutos com base nos diversos princípios constitucionais assegurados pela nova ordem constitucional.
Assim, observa-se que dicotomia presente entre o Código de Processo Penal de 1941 e a Constituição de 1988, consiste, fundamentalmente, na base teórica. O primeiro baseia-se no autoritarismo e na preocupação com a segurança pública; contrariamente, o segundo surge com o ideal democrático, sendo seu alicerce principal o postulado da dignidade da pessoa humana e uma enorme preocupação com a proteção dos direitos fundamentais assegurados no decorrer do seu texto.
Portanto, como o Código de Processo Penal não traz expressamente dispositivos contemplando o direito da não autoincriminação, ao aplicá-lo, temos que fazer uma ponderação entre o interesse estatal com os direitos e garantias do cidadão presentes da Constituição Federal.
4. DESDOBRAMENTOS DO PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE DETEGERE
Conforme demonstrado no tópico anterior, deve-se tentar promover uma ponderação dos valores, quais sejam, do interesse social na eficiência da persecução penal e do interesse individual do cidadão, de modo a estabelecer um ponto de equilíbrio e capaz de promover a preservação do núcleo essencial de ambos os interesses. Para melhor analisar os limites do direito de não produzir prova contra si mesmo, se faz necessário demonstrar os seus desdobramentos.
Portanto, adentraremos de forma mais profunda no estudo do princípio nemo tenetur se detegere, demonstrando de forma minuciosa como está previsto no ordenamento jurídico pátrio cada uma de suas faces, a sua aplicabilidade e limites que devem ser respeitados.
4.1. O princípio nemo tenetur se detegere e o direito ao silêncio
O direito de permanecer calado, uma das mais conhecidas manifestações do princípio nemo tenetur se detegere, encontra previsão expressa na Constituição Federal de 1998, em seu art. 5º, inciso LXIII.
Como decorrência lógica do princípio da presunção de inocência e da ampla defesa, o direito ao silêncio surge em nossa Carta Magna para assegurar ao acusado que nenhuma autoridade poderá obriga-lo a produzir prova contra si próprio, ou melhor, que ele poderá exercer sua autodefesa de modo passivo, sem proferir qualquer manifestação, e tal escolha não poderá ser valorada negativamente pelo magistrado no momento de proferir sua decisão final. Nos dizeres de Renato Brasileiro (2014, p. 80):
Corresponde ao direito de não responder às perguntas formuladas pela autoridade, funcionando como espécie de manifestação passiva da defesa. O exercício do direito ao silêncio não é sinônimo de confissão ficta ou de falta de defesa; cuida-se de direito do acusado (CF, art. 5º, LXIII), no exercício da autodefesa, podendo ser usada como estratégia defensiva.
Assim, temos que o magistrado, na formação da sua convicção, não pode valorar negativamente o fato de o réu ter feito uso da prerrogativa de permanecer em silêncio. Isto porque, seria totalmente paradoxal conceder tal direito ao mesmo tempo punir o agente pelo seu exercício.
Para alcançar o seu objetivo, a autoridade competente, seja judicial ou administrativa, tem o dever de advertir o acusado acerca do seu direito de permanecer em silêncio, bem como que o exercício deste direito não irá ser valorado de forma a prejudica-lo, sob pena de ser declarada ilícita a prova então obtida.
Trata-se, portanto, de determinação constitucional análoga ao Aviso de Miranda do direito norte-americano, oriundo do precedente Miranda vs. Arizona, no ano de 1966, e que se caracteriza pela obrigatoriedade do policial, no momento da prisão, ler para o preso todos os seus direitos, para que não seja declarada a nulidade dos atos que forem praticados posteriormente.
Nos dias hodiernos, a realização da advertência do direito ao silêncio pode ser comprovada mediante a entrega ao preso, antes de sua prisão, da nota de ciência das garantias constitucionais.
Vale destacar que as declarações obtidas de maneira informal pelos policiais ou pelo repórter, no momento da prisão do acusado, não podem ser contra ele usadas, em virtude da ausência da referida advertência. Sobre o tema, ressalta Ana Lúcia Menezes Vieira (2003, p. 240):
As declarações precipitadas que são fornecidas pelo preso ao repórter, sob influência do clima sensacionalista criado pela mídia, não podem ser usadas indiscriminadamente no processo. Se o investigado é induzido a confessar, porque pressionado pela mídia, teve atingida a liberdade de calar-se ou falar de acordo com sua consciência. Portanto, a reportagem que contém a confissão é inadmissível como prova, pois, obtida fora dos ditames constitucionais do direito fundamental ao silêncio – com infringência à norma material contida na Constituição –, é considerada ilícita. E, nos termos da Carta Política brasileira ‘são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos’ (art. 5º, LVI).
Devemos ainda lembrar que o direito ao silêncio não é de titularidade exclusiva da pessoa do réu, devendo ser garantida a qualquer pessoa que se encontre em situação capaz de produzir prova contra si mesmo.
E, assim, ainda que estivermos falando de uma testemunha, a qual presta o compromisso de dizer a verdade, se o seu testemunho for capaz de produzir prova que a incrimina e não for feita a advertência sobre o direito de permanecer calada previamente, a referida prova encontra-se maculada com o vício da ilicitude.
Desta feita, podemos concluir que o direito ao silêncio deve ser garantido a todo aquele que se encontre em situação passível de gerar prova contra si mesmo, tendo a autoridade competente o dever (e não mera faculdade) de informar sobre a existência deste direito, sob pena de tornar a prova obtida ilícita.
4.2. O princípio nemo tenetur se detegere e o direito de mentir
Alguns doutrinadores defendem que, no exercício da autodefesa e resguardado pela garantia do direito ao silêncio, o acusado também tivesse o direito à mentira.
De fato, deve ser colocada a disponibilidade do acusado todos os meios de defesa presentes no ordenamento jurídico, para garantir uma defesa ampla e irrestrita, nos moldes do disposto no art. 5º, inciso LV da Constituição Federal.
Todavia, o direito ao silêncio não pode ser interpretado de modo a permitir que o acusado possa, deliberadamente, mentir para as autoridades competentes de promover a respectiva investigação. Nos dizeres de Eugênio Pacelli (2013, p. 383):
O direito ao silêncio tem em mira não um suposto direito à mentira, como ainda se nota em alguma doutrinas, mas à proteção contra as hostilidades e as intimidações historicamente desfechadas contra os réus pelo Estado em atos de natureza inquisitiva. Primeiro, as jurisdições eclesiásticas; depois, no Estado Absolutista, e, no mesmo na modernidade, pelas autoridades responsáveis pelas investigações criminais.
Não é porque se reconhece o direito à defesa que se permitiria que o acusado, por exemplo, atribuísse falsamente a prática do crime a terceiros, com o fim de se ver livre da acusação.
Ao permitir esse absurdo jurídico, estaríamos utilizando o próprio ordenamento jurídico para consagrar valores antiéticos e imorais, colidindo frontalmente com todos os valores consagrados pela nossa Carta Política. Ademais, estaria o réu promovendo um verdadeiro atentado contra a dignidade e a administração da justiça.
Por tal razão, o Supremo Tribunal Federal, em matéria de repercussão geral, decidiu que tanto no crime de uso de documento falso (art. 304 do Código Penal), quanto na hipótese de falsa identidade (art. 307 do Código Penal), é típica a conduta do agente que atribui para si identidade diferente da sua, ainda que sob o manto da autodefesa.
Portanto, o ordenamento jurídico brasileiro, ao instituir a garantia do direito ao silêncio, não pretende abranger a prerrogativa de o acusado faltar com a verdade perante as autoridades competentes, de forma que será responsabilizado criminalmente pelos atos praticados nessas circunstâncias.
4.3. O princípio nemo tenetur se detegere aplicado ao interrogatório do acusado
Antes de tudo, podemos conceituar o interrogatório do réu, de forma simples, como um ato processual pelo qual o magistrado irá ouvir o acusado tanto sobre a sua pessoa quanto sobre a imputação da infração penal que lhe é feita pelo Ministério Público ou pelo querelante.
O princípio do nemo tenetur se detegere possui uma forte presença durante o interrogatório judicial do réu. Por esta razão, iremos analisar as decorrências práticas da sua aplicação neste momento processual.
4.3.1. Interrogatório judicial no Código de Processo Penal
O interrogatório judicial é um momento processual em que o princípio nemo tenetur se detegere ganha bastante relevância, devendo os preceitos estabelecidos no Código de Processo Penal serem interpretados em consonância com este direito e os demais consagrados pela nossa Constituição Federal.
Como decorrência da aplicação do princípio nemo tenetur se detegere, antes de iniciar este ato processual, o magistrado advertirá o réu quanto a possibilidade de permanecer em silêncio e a inexistência de consequências negativas no uso de tal prerrogativa, nos termos do at. 186 do Código de Processo Penal.
É importante mencionar, ainda, que a inclusão do parágrafo único do aludido artigo pela Lei nº 10.792/2003, estabelecendo que o silêncio não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa, bem como a própria garantia constitucional do direito ao silêncio, tornam parcialmente ineficaz a disposição do art. 198 do mesmo diploma legal.
Ora, é totalmente incoerente assegurar ao acusado o direito de permanecer em silêncio e ao mesmo tempo possibilitar que o seu exercício sirva na formação do convencimento do juiz. Ao considerar a sua total vigência, o direito ao silêncio não teria a menor efetividade ou razão de existir.
O interrogatório, conforme dispõe o art. 187 do Código de Processo Penal, será dividido em duas partes, a primeira sobre a sua qualificação e a segunda sobre os fatos.
Não obstante existir certa divergência doutrinária, é predominante na doutrina e na jurisprudência que na primeira fase do interrogatório, o qual diz respeito às perguntas sobre a sua qualificação, o acusado não poderá fazer uso do direito ao silêncio. Assim, temos que o direito a silêncio é relativizado apenas nesta fase do interrogatório e que o acusado não poderá se opor a responder perguntas referentes à sua identificação, já que não dizem respeito à prática do fato que lhe estar sendo imputado.
Conforme já foi analisado anteriormente, tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça já possuem decisões que consideram típico o crime de falsa identidade (art. 307 do Código Penal), quando o agente atribui identidade diversa com o fim de esconder os maus antecedentes.
4.3.2. Inexistência do dever de comparecimento
Outra decorrência do princípio nemo tenetur se detegere presente no interrogatório do réu, é a inexistência do dever de comparecimento neste ato processual.
Em primeiro lugar, cumpre ressaltar que não pode o magistrado deixar de oportunizar ao réu a realização do interrogatório, sob pena de violação do princípio da ampla defesa e, consequentemente, de nulidade absoluta do processo.
Contudo, como o interrogatório é um meio de defesa e o réu possui a faculdade de permanecer em silêncio, não respondendo as perguntas que lhe são formuladas, se ele entender por bem não comparecer a audiência una de instrução e julgamento, apesar de devidamente intimado, este ato será entendido como uma manifestação do direito ao silêncio e não poderá ser determinada a sua condução coercitiva.
Sobre o tema, Eugênio Pacelli (2013, p. 381) dispõe:
O eventual não comparecimento na data de audiência uma designada pelo juízo, enquanto não justificado, pode e deve ser entendido como manifestação do direito ao silêncio, afinal, ninguém pode ser coagido a comparecer perante o juiz, a não ser quando se tratar de réu preso, eis que o réu não pode manifestar livremente a sua vontade E, nos termos do art. 399, § 1º, ressalvadas as hipóteses previstas no §§ 1º e 2º do art. 185, com redação dada pela Lei nº 11.900/08.
Por tal razão, entende-se que o art. 260 do Código de Processo Penal não pode ser aplicado quanto ao interrogatório judicial, por violar frontalmente a nossa Carta Magna de 1988, estando também em desacordo com os preceitos da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos. Permanecendo, todavia, a possibilidade de condução coercitiva para realização do reconhecimento pessoal, haja vista que este ato não se encontra acobertado pelo manto do princípio nemo tenetur se detegere.
Portanto, o não comparecimento ao réu no interrogatório judicial não tem o condão de determinar a sua condução forçada, por representar uma forma de manifestação do princípio da não autoincriminação, devendo partir do acusado a vontade de participar ativamente deste ato processual e, consequentemente, da atividade probatória.
4.4. O princípio nemo tenetur se detegere e as provas que dependem de colaboração do acusado
Como foi apresentado no decorrer do presente estudo, o princípio nemo tenetur se detegere acaba por limitar a atuação estatal, em especial, na produção probatória. E, além da sua forte manifestação no interrogatório do acusado, também será aplicado nas provas que dependem de colaboração do réu.
Primeiramente, se faz necessário entender acerca da produção de provas a partir de intervenções corporais, as quais podem ser de duas espécies: provas invasivas e provas não invasivas. Definindo de forma muito precisa o que seriam as provas invasivas, Renato Brasileiro (2014, p. 83), conceitua como:
São intervenções corporais que pressupõe penetração no organismo humano, por instrumentos ou substancias, em cavidades naturais ou não, implicando na utilização (ou extração) de alguma parte dele ou na invasão física do corpo humano, tais como os exames de sangue, o exame ginecológico, a identificação dentária, a endoscopia (usada para localização de drogas no corpo humano) e o exame do reto.
Por sua vez, as provas não invasivas compreendem em simples inspeção corporal. Assim, não há qualquer retira ou penetração direta no corpo humano. Esse tipo de prova, portanto, apresenta maior proximidade com o respeito dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, sendo de grande importância na persecução penal.
As intervenções corporais, em especial as invasivas, além de violarem o princípio nemo tenetur se detegere, ofendem outros valores consagrados constitucionalmente, tais como o direito à liberdade e o direito à intimidade, além do postulado da dignidade da pessoa humana.
Continuando a explanação sobre o tema, Renato Brasileiro (2013, p. 83) demonstra com exemplo como uma prova pode ser, ao mesmo tempo, invasiva ou não invasiva, a depender da forma como é coletada, vejamos:
As cédulas bucais encontradas na saliva podem ser utilizadas para a realização de um exame de DNA. A forma de sua coleta é que vai determinar se é prova invasiva ou não invasiva. Caso as cédulas sejam colhidas na cavidade bucal, haverá intervenção corpora invasiva. Agora, a saliva também pode ser colhida sem qualquer intervenção corporal, possibilitando a realização do exame de DNA a partir de material encontrado no lixo, como chicletes, pontas de cigarro, latas de cerveja e refringentes, que contêm resquícios da saliva que podem ser examinados.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal decidiu, na RCL-QO 2.040, que seria plenamente possível à coleta do material que seria descartado pelo hospital, no caso concreto, uma placenta, para a realização do exame de DNA.
No tocante a realização do exame de raio-X, de fundamental importância para verificação de drogas no organismo, o Superior Tribunal de Justiça concluiu que se tratava de prova não invasiva, sendo, inclusive, imprescindível para salvaguardar a própria vida da pessoa que está transportando entorpecentes.
Com efeito, não há qualquer óbice na realização de intervenções corporais invasivas, caso o agente seja previamente advertido do seu direito de não produzir prova contra si mesmo e, ainda assim, consentir na realização do exame. Entretanto, cumpre ressaltar que, obviamente, o agente não poderá ser submetido à intervenção que ofenda a dignidade da pessoa humana.
Quanto às provas não invasivas, estas poderão ser realizadas em conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro ainda quando o agente discorde da sua produção. Isto porque, o acusado não participará ativamente da sua produção e, por conseguinte, não haverá violação do princípio nemo tenetur se detegere.
5. CONCLUSÃO
Diante de tudo que foi exposto ao longo do presente trabalho, observou-se que o princípio nemo tenetur se detegere mostra-se, atualmente, como verdadeiro direito fundamental do indivíduo, indo além da ideia de que seria apenas uma mera advertência ser realizada para validade da produção probatória.
Ao ser colocado no patamar de garantia constitucional, o direito de não produzir prova contra si mesmo se apresenta como norma imperativa e de rigorosa observância dentro da ordem jurídica, além de externar sua importância ímpar para o Estado Democrático de Direito, pois garante efetividade a outros direitos fundamentais, bem como a ampla defesa, a presunção de inocência e o direito à intimidade.
A partir dessa perspectiva, destacou-se que a partir de 1988, com o advento da Constituição Cidadã, o instituto em estudo passou a estar localizado no capítulo dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º, LVII), ostentando uma natureza dúplice, tanto de direito como de garantia.
Outrossim, através desta interpretação constitucional dada pelo Estado Democrático de Direito e pelo postulado da dignidade da pessoa humana, o acusado ou investigado deixou de ser visto como objeto de prova para ser sujeito de direitos; ao mesmo tempo em que ressaltou-se no interrogatório o aspecto de momento adequado para realização da ampla defesa, na modalidade autodefesa, e deixa um pouco de lado a antiga visão de meio de prova.
Com efeito, essa mudança de perspectiva foi acompanhada pela alteração da legislação infraconstitucional brasileira, colaborando ainda mais para a defesa e aplicação do princípio em análise.
De fato, a inobservância do princípio nemo tenetur se detegere, conforme demonstrado, acarreta na ilicitude da prova obtida, tornando-a inapta para influenciar no íntimo convencimento do magistrado e, consequentemente, na sentença penal condenatória.
Sendo assim, a busca da verdade real não poderá se sobrepor a todos os direitos e garantias individuais assegurados pelo princípio nemo tenetur se detegere. Posto isto, temos que a prova deverá ser produzida a partir da sua função social de buscar a verdade de forma que seja sempre preservada a segurança jurídica na persecução penal.
Com o discurso até aqui adotado, não é pretensão deste trabalho enveredar por uma posição extremada e afirmar que o princípio nemo tenetur se detegere é uma garantia absoluta dentro do ordenamento jurídico pátrio, pelo contrário, foi defendida a ideia da possibilidade da compatibilização do valor “justiça” e da garantia em questão.
Então, consolidamos a posição do seguinte estudo dessa forma: temos que procurar, sempre, a conciliação entre o princípio nemo tenetur se detegere e o interesse público na realização de uma persecução penal eficiente e célere. Não vemos óbice na relativização do direito da não autoincriminação, desde que haja uma ponderação entre os bens jurídicos tutelados, com base em critérios sólidos, estabelecidos em lei, que se proponha a apurar os delitos de forma eficaz sem violar os preceitos de nossa Constituição Federal.
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[1] Nesses termos, leciona Maria Elizabeth Queijo (2012, p. 30).
Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pós-graduada em Direito e Processo Penal pela Universidade Potiguar.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIRA, Natália Luiza Lima Dantas. O princípio nemo tenetur se detegere e os seus desdobramentos no ordenamento jurídico brasileiro. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 maio 2016, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46619/o-principio-nemo-tenetur-se-detegere-e-os-seus-desdobramentos-no-ordenamento-juridico-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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