Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a possibilidade da condução coercitiva, pela Policia Militar, de vítima ou testemunha de crimes em flagrante, que se recusem a deslocarem até a delegacia para serem ouvidas no procedimento elaborado pela Autoridade Policial Judiciária.
Palavras-chave: Condução coercitiva. Polícia Militar. Vítima. Testemunha. Delegacia.
Abstract: This article aims to analyze the possibility of coercive conduct by the Military Police, victim or witness of flagrant crimes, which refuse to move to the station to be heard in the procedure prepared by the Judicial Police Authority.
Keywords: Arrest. Military police. Victim. Witness. Police station.
Sumário: Introdução. 1. Da condução de vítima ou testemunha de crime flagrante que se recusem a comparecer a delegacia para prestar esclarecimentos. 2. Do procedimento policial militar em relação aos envolvidos que se recusam a comparecer a delegacia. Conclusão.
Introdução.
A prisão em flagrante no Brasil, expressamente autorizada na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, LXI, é uma modalidade de prisão, que dispensa ordem Judicial, sendo de cunho cautelar (conforme reforma introduzida pela Lei 12.403/2011), provisória e de natureza administrativa visto necessitar da análise do Juiz competente para que se converta em Prisão Preventiva, assumindo assim caráter processual. Está diretamente ligada ao que está manifesto ou evidente no momento em que ocorre, razão pela qual o fato é qualificado como “flagrante”, palavra que deriva do latim “flagrare” (queimar), e “flagrans”, “flagrantis” (ardente, brilhante, resplandecente). Portanto só pode ocorrer nas hipóteses previstas no artigo 302 do Código de Processo Penal Brasileiro, ressalvado o disposto diverso em lei especial.
Quanto aos sujeitos competentes para realizar essa prisão (denominado pela doutrina de sujeito ativo), o Código de Processo Penal Brasileiro, definiu em seu artigo 301 “que qualquer do povo poderá” prender quem se encontre em flagrante, ou seja, a lei conferiu a faculdade de qualquer um do povo prender o autor de crime em flagrante. Trata-se de uma possibilidade facultativa, não impondo ao particular o dever de atuar no lugar da polícia. O mesmo artigo 301 do CPP, determina que “autoridades policiais e seus agentes deverão” prender quem se encontre em flagrante delito, tratando-se, portanto, de uma vinculação àqueles que possuem o dever de atuar nos casos de flagrante de crime, mormente os policiais. Quando qualquer um do povo realiza a prisão em flagrante, estará amparado pela excludente de ilicitude de exercício regular de direito, conforme o art. 23, inciso III, do Código Pena.
Quanto ao sujeito ativo vinculado, figuram “as autoridades policiais e seus agentes”. Nessa seara, todos os integrantes dos Órgãos Policiais mencionados no artigo 144 da Constituição Federal de 1988 tem legitimidade para realização da prisão em flagrante. Por sua atuação na preservação da ordem pública e patrulhamento ostensivo, o que lhe confere uma atuação territorial ampla dentro do respectivo Estado a qual pertence e possuindo maior efetivo, a Policia Militar é naturalmente a força policial que mais encontra flagrantes de crimes. Ao deparar com um flagrante delito, a Polícia Militar atua nas ações de captura e condução imediata à Autoridade Policial Judiciária para a Ratificação ou não da prisão em flagrante, tendo em vista a competência Constitucional do Delegado de Polícia (art. 144, § 4º da C. F./88).
Nesse ato complexo do momento do flagrante delito, figuram no polo passivo muitas das vezes, vítima e testemunha que, por uma questão de lógica, devem comparecer à delegacia de polícia no momento da apresentação do autor preso em flagrante, visto que serão necessários seus depoimentos e apresentação de provas para a correta confecção do procedimento de ratificação ou não do flagrante delito pelo Delegado de Polícia, conforme desprende-se do artigo 6º do Código de Processo Penal Brasileiro. Contudo, não raras vezes, o Policial Militar depara com vítimas e/ou testemunhas que não querem comparecer à delegacia de polícia apresentando desde motivos relevantes que realmente impossibilitam a ida, até a simples vontade de não comparecer, por desistência, incredibilidade no sistema de punição no Brasil ou até mesmo devido um compromisso particular que julga inadiável.
Assim, busca-se analisar a possibilidade de condução coercitiva destes envolvidos na prisão em flagrante delito do autor, feita pela Polícia Militar, e posterior apresentação à delegacia.
1. Da condução de vítima ou testemunha de crime flagrante que se recusem a comparecer a delegacia para prestar esclarecimentos.
As vítimas e testemunhas de um crime em flagrante devem ser arroladas e entrevistadas pelo Policial no momento que a Força Pública depara com sua ocorrência. Caso essas pessoas se neguem a identificar perante o policial, estarão sujeitas as penas previstas na contravenção penal descrita no artigo 68 da Lei de Contravenções Penais (Decreto Lei 3688/41), sendo presas em flagrante.
Nesse sentido, caso ocorra, a prisão em flagrante se dará em razão do cometimento de uma infração penal. Na situação em que testemunha ou vítima que tenha se identificado se recuse a acompanhar os policiais até a delegacia, não poderá advir qualquer prisão. Devidamente identificadas, devem ser liberadas, ficando sua condução coercitiva a posteriori, pela autoridade competente, caso permaneça na recusa. Não há previsão expressa do cometimento de crime nesses casos. O fato da testemunha ou vítima se negar a comparecer à delegacia não constitui ilícito penal. Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci (2014) nos diz:
“Se as Comissões Parlamentares de Inquérito, com poder investigatório, segundo a Constituição Federal (art. 58 § 3º), próprio das autoridades judiciais, não devem ter outro procedimento senão o de requerer ao magistrado a intimação e condução coercitiva da testemunha para prestar depoimento, logo, nenhuma autoridade pode prender a testemunha para conduzi-la à sua presença sem expressa, escrita e fundamentada ordem do juiz competente (art. 5º, LXI, CF).”
A condução coercitiva cabe apenas nos processos penais, quando lei especial não dispuser de modo diverso, conforme o art. 260, CPP. Portanto, como se trata de fase pré-processual não caberia a condução coercitiva de testemunha ou vítima que se recuse a acompanhar os policiais militares até a delegacia de polícia. Ainda que possa se cogitar um possível crime de desobediência, tal hipótese deve ser descartada, já que a lei processual penal regula as formas de inquirição de vítimas e testemunhas, ou seja, a recusa da vítima ou testemunha de comparecer à delegacia não inviabilizara a confecção do flagrante, pois o § 2º do art. 304 do Código de Processo Penal dispõe que a falta de testemunhas da infração não impedirá o auto de prisão em flagrante, devendo duas testemunhas da apresentação do preso à autoridade policial assinar o termo.
Conforme previsto na Constituição Federal, ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei (art. 5º, LXI). Conforme citado, a testemunha ou vítima que se recusa a comparecer a delegacia para prestar declarações relativas a crime ocorrido no qual a Polícia Militar atuou em flagrante, não se enquadra na hipótese de flagrante de crime, seja pela falta de tipificação legal (princípio da legalidade art. 5º, inciso XXXIX) seja pela não possibilidade do crime de desobediência no sentido de ausência de tipicidade quando a inexecução de ordem emanada de servidor público for punível com sanção de caráter administrativo prevista em lei (Habeas Corpus 88452). Nesse último sentido, A punição para a testemunha que não comparece a audiência injustificadamente está prevista no art. 219 c/c art. 458, ambos do Código de Processo Penal. O ato de testemunhar constitui obrigação legal, da qual ninguém pode eximir-se, senão nos casos admitidos por lei (art. 206 do CPP).
Destarte, esta obrigação legal da testemunha, passa a ser exigida em sede processual, não podendo ser evocada na fase pré-processual visto que o inquérito e o auto de prisão em flagrante têm valor relativo em relação as provas, pois ainda carecem de confirmação por outros meios colhidos durante a instrução processual. Nesse sentido no HC 96356-RS, de relatoria do Min. MARCO AURÉLIO, por maioria de votos, os ministros presentes à sessão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) concederam a ordem para J.C.M.B., que foi condenado no Rio Grande do Sul por latrocínio, apenas com base em depoimentos prestados na fase de inquérito policial. Com a decisão, os ministros cassaram a condenação imposta a J.C., e restabeleceram a decisão do juiz de primeira instância, que absolveu o acusado.
Portanto, a identificação das testemunhas e vítimas e encaminhamento delas à presença da autoridade policial judiciária, trata-se de colheita de provas para subsidiar o crime flagrante encontrado de modo que a recusa por parte destas pessoas só configura infração penal quando da negativa de se identificar, não podendo serem presas naquele instante por nada dizer, negar o que viu, relatar diversamente (desde que não constitua crime autônomo, como por exemplo falsa acusação de crime) ou recusar comparecer à delegacia. A falta de presença delas na delegacia, não impedirá o flagrante, conforme exposto neste texto, mas a relação dos nomes e dados colhidos na entrevista in loco devem constar no boletim de ocorrência que será encaminhado para a referida autoridade.
2. Do procedimento policial militar em relação aos envolvidos que se recusam a comparecer a delegacia.
A atuação policial no caso de recusa da vítima ou testemunha de crime flagrante que se recuse a comparecer na delegacia para depoimentos se limitará na colheita dos dados dessas pessoas, bem como de seus relatos preliminares naquilo que for dito. Nesse sentido, pode o policial fazer uso de equipamentos de gravação ambiental de depoimentos de pessoas que, no local de crime, digam algo relacionado à infração. Tal medida, poderá ser usada para fins de comprovação da atuação policial naquele local, nunca para divulgação de imagens de terceiros sem autorização, demonstrando que aquele envolvido se recusou a acompanhar a Policia Militar até a delegacia. Por ventura, caso haja solicitação fundamentada, a gravação pode ser fornecida ao delegado encarregado do auto de prisão em flagrante ou, ou posteriormente em sede de inquérito ou processo judicial, neste caso solicitado pelo magistrado. A recusa também pode ser comprovada por depoimento de outras testemunhas, vítimas, ou terceiros que tomaram conhecimento dos fatos.
Caso haja recusa de identificação, o policial militar deve advertir a pessoa solicitada a se identificar e, permanecendo na recusa, deve dar voz de prisão em flagrante pelo cometimento da contravenção penal descrita no artigo 68 da Lei de Contravenções Penais (Decreto Lei 3688/41). Salienta-se que a simples alegação de não possuir ou portar documento de identidade não elide a responsabilidade da pessoa se identificar por outros meios admitidos em direito, seja por outros documentos, seja pelos apontamentos de locais ou pessoas que possam corroborar a identificação fornecida. Não se trata de simples citação de nomes, mas dados que possam ser confirmados pelos policiais sob pena de considerar a pessoa não identificada. Diante da citação de dados de identificação conjugados com indícios de mentira ou ocultação de dados, claramente carentes de identificação, devem os policiais diligenciarem para comprovação, observando no que for pertinente a questão do transporte de pessoas em viaturas.
Se por ventura as pessoas aqui citadas atribuírem a si falsa identidade, estarão sujeitas a prisão em flagrante por cometimento do crime especificado no art. 307 do CP, ainda que o motivo seja ocultar seus antecedentes ou alegação de autodefesa. No RE 640139 RG, de Relatoria do Min. Dias Toffoli, julgado em 22/09/2011, o STF decidiu:
“O princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, inciso LXIII, da CF/88) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (art. 307 do CP). O tema possui densidade constitucional e extrapola os limites subjetivos das partes.”
Nesse sentido também o STJ no Resp. 1.362.524-MG, de Relatoria do Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 23/10/2013 (recurso repetitivo) estabeleceu:
“É típica a conduta do acusado que, no momento da prisão em flagrante, atribui para si falsa identidade (art. 307 do CP), ainda que em alegada situação de autodefesa. Isso porque a referida conduta não constitui extensão da garantia à ampla defesa, visto tratar-se de conduta típica, por ofensa à fé pública e aos interesses de disciplina social, prejudicial, inclusive, a eventual terceiro cujo nome seja utilizado no falso.”
O STJ consolidou seu entendimento na Súmula 522: é típica a conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial, ainda que em situação. de alegada autodefesa.
Conclusão.
O presente estudo não pretende esgotar o assunto tratado, tendo como principal objetivo fornecer informações àqueles que diariamente se deparam com as situações tratadas no exercício de sua profissão. Partindo da premissa de um direito penal mínimo (ultima ratio) as forças policiais devem possuir agentes instruídos no sentido de preservação dos direitos e garantias fundamentais de todo cidadão, evitando ao máximo tratar todos os casos simplesmente com detenção.
Não se pode ter a prisão realizada pela Polícia Militar como simples condução passível de ratificação pelo Delegado de Polícia, pois se trata de cerceamento de liberdade que deve estar pautada na legalidade, ainda que por breve momento, como por exemplo para deslocamento até a delegacia. A condução coercitiva é instituto admitido nas circunstâncias processuais, não cabendo antes da formalização da testemunha ou vítima como tais pela autoridade judiciária, exceto casos previstos para atuação da Polícia Judiciária.
Portanto, a recusa de deslocar até a delegacia para as vítimas ou testemunhas de crime em flagrante não autorizam por si só a condução delas até o referido local através do uso da força por parte da Polícia Militar, pelos motivos aqui expostos. A atuação policial ostensiva (polícia administrativa) limitar-se-á a identificação destas pessoas e encaminhamento do boletim de ocorrência ao Delegado de Polícia. Caso haja recusa no fornecimento de dados de identificação para os Policiais Militares, estará configurada a contravenção penal descrita no artigo 68 da Lei de Contravenções Penais (Decreto Lei 3688/41).
Por fim, foi exposto que não cabe a eventual prisão de vítima ou testemunha de crime em flagrante que se recuse a deslocar para delegacia para depoimentos pelo cometimento de crime de desobediência devido a própria ordem emanada da autoridade policial militar em determinar que a pessoa “desloque até a delegacia para ser testemunha” ou “vítima” , pois além de carecer de sentido legal, não há possibilidade do crime de desobediência no sentido de ausência de tipicidade quando a inexecução de ordem emanada de servidor público for punível com sanção de caráter administrativo prevista em lei (Habeas Corpus 88452). Nesse sentido, a punição para a testemunha que não comparece a audiência injustificadamente está prevista no art. 219 c/c art. 458, ambos do Código de Processo Penal.
2º SGT da Policia Militar de Minas Gerais e Acadêmico de Direito na FACTHUS (Faculdade Talentos Humanos).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARLOS, Leandro de Paula. Condução coercitiva de vítimas e testemunhas pela Polícia Militar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 jun 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46879/conducao-coercitiva-de-vitimas-e-testemunhas-pela-policia-militar. Acesso em: 22 nov 2024.
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