RESUMO: Diante da onda de criminalidade que se opera sobre a sociedade brasileira, esta tem clamado por mais segurança, exigindo do Estado uma posição legiferante, de modo a alargar a punição penal, construindo o tipo inimigo. Essa ideia, idealizada pelo teórico Gunther Jakobs, apresenta uma dualidade penal, caracterizada pela presença do cidadão e do inimigo, presentes em um único regime político, que é o Democrático. Deve-se aceitar que é uma teoria coerente normativamente com a realidade de Jakobs, todavia, rompe com os ditames essenciais de um Estado Garantidor. Assim, mais que uma tese, essa teoria é apresentada no trabalho como uma política criminal expansionista, que contraria a ideia de ultima ratio da intervenção do Direito Penal. Logo, esta nova construção seria constitucional ou inconstitucional, dentro da vigência de um Estado que prima pelas garantias penais, trazidas essencialmente no artigo 5° da Constituição Federal?
Palavras chave: Direito Penal. Expansionismo penal. Direito Penal Mínimo. Inimigo e Cidadão. Garantias Penais.
INTRODUÇÃO
Este presente trabalho tem por escopo analisar criticamente a proposta idealizada por Gunther Jakobs, o Direito Penal do Inimigo, e diante desta apreciação explorar a incompatibilidade que existe entre essa teoria e a conjuntura do Estado Garantista.
O tema analisado possui extrema relevância no debate jurídico que se opera hodiernamente. Sabe-se que diante da megacriminalidade que se vê realizada na sociedade brasileira, muito tem se discutido sobre a verdadeira finalidade que deve possuir o Direito Penal. Diversas são as soluções apresentadas, e entre essas, mostra-se o Direito Penal do Inimigo como uma política de contenção ao crime, resguardando a segurança clamada popularmente.
O método científico no qual se pauta este presente estudo é formulado sob a concepção da dedução, tendo em vista que se passará a analisar regras e teses que são gerais, formulando premissas, para se chegar a uma conclusão para o fato específico, que se concentra na definição da constitucionalidade ou não do direito penal do inimigo no Estado de Direito.
Por sua vez, a pesquisa bibliográfica deste estudo é proposta sobre três capítulos. O capítulo inicial propõe analisar as políticas criminais contemporâneas, de modo que se possa reconhecer o fim a que se destina o Direito Penal para cada política adotada.
No segundo capítulo, apresentar-se-ão os argumentos dogmático-jurídicos defendidos por Gunther Jakobs, para a construção da Teoria do Direito Penal do Inimigo. Esta se fundamenta na segregação entre cidadão e inimigo, de modo que este é reconhecido como não pessoa, perdendo todos os seus direitos quando viola a norma jurídica, e rompe com a fidelidade ao sistema penal.
Nos últimos capítulos buscar-se-á confrontar o que é inicialmente proposto por Jakobs com as garantias penais taxadas no texto constitucional, de modo que se possa verificar se há ou não compatibilidade entre a construção da Teoria do Direito Penal do Inimigo com a formulação do Estado Garantista. Para tanto, é imprescindível analisar qual a relação que se apresenta entre o Direito Penal e a Constituição Federal, bem como a existente entre as teorias de Jakobs e de Freud. Sendo assim, por fim, será traçada uma argumentação exponencial a respeito da constitucionalidade ou não das ideias do inimigo dentro deste Estado Democrático de Direito, de modo que se possa trazer a conclusão deste presente trabalho.
1. Visões a respeito do papel do Direito Penal.
Da necessidade de configuração de um direito penal, surge o paradigma do abolicionismo, o qual recusa a consistência científica a todas as premissas do direito penal, e propõe não apenas a extinção da pena ou do direito penal, mas a imediata abolição de todo o sistema de justiça penal.[1] Sob esse paradigma, o direito penal é um problema social em si mesmo, devendo ser abolido para dar vida às comunidades.
O direito penal, para o abolicionismo, é por si só incapaz de prevenir, por meio da cominação e execução de penas, seja pelo seu caráter geral ou especial de prevenção de novos delitos. Assim, utiliza-se do argumento de que o direito penal não é meio apto a motivar comportamentos que impeçam o indivíduo de praticar determinado delito, tendo em vista que o indivíduo não é neutralizado pelo mero temor decorrente da pena imposta.[2]
Baratta argumenta que o controle penal atua apenas quando as consequências das infrações penais já ocorreram, mas não com o objetivo de evitá-las ou preveni-las. Ademais, afirma que o sistema penal intervém apenas quando já se produziu uma vítima, e não na prevenção de que outras vítimas sejam geradas, isto porque, as consequências da violência não conseguem ser eliminadas efetivamente, mas tão somente simbolicamente. [3] Justifica que este sistema penal utiliza-se de penas, em forma de violência, para compensar simbolicamente um ato de violência realizado, e por ser assim, não é legitimado.
O movimento que ora se apresenta busca a todo tempo estabelecer a deslegitimação que se encontra o sistema penal, sendo constituído pela demonstração de que o sistema penal encontra-se repleto de incapacidades – a pena não consegue mais prevenir novos crimes; a segurança já não é mais levada à sociedade; não se consegue evitar a megacriminalização, e sendo assim, bens jurídicos essenciais deixam de ser tutelados - e que não consegue se reverberar novamente, gerando a efetividade clamada hodiernamente.
Ademais, compreender esta deslegitimação é ter capacidade de verificar que o sistema penal encontra-se desprotegido. Entretanto, cabe ainda reconhecer que é neste crucial ponto histórico que surge a necessidade de uma nova, e talvez, mais arriscada forma de relegitimação, que se opera em desenvolvimento, e que poderá modificar toda a histórica dogmática até então já construída, tendo em vista que o novo discurso constrói-se na ideia do medo do inimigo, conforme a criminalidade que cresce a níveis massivos.
Posteriormente, faz-se necessário apresentar o que propõe a política criminal do minimalismo, de modo que Luigi Ferrajoli a estabelece como o único fim que o Estado pode legitimamente perseguir para promover a aplicação da pena, diante de um ilícito penal praticado. Isto quer dizer que por meio da prevenção geral negativa, busca-se a prevenção futura de novos delitos, como também, e essencialmente, a prevenção de penas informais, de possíveis reações públicas, que podem ser resultantes da omissão do sistema penal.[4]
Este modelo traz em sua essência o garantismo, que somente permite a intervenção do Estado quando houver um prévio cometimento de um delito, sendo este previamente previsto em lei, com a estrita necessidade de punição e havendo a prova empírica trazida no processo. Ademais, este modelo pugna pela prevalência das garantias penais fundamentais, como a legalidade, a ofensividade do ato, entre outras.[5]
Por fim, surge a política criminal, que ganha relevância na aplicação do direito penal, que é o expansionismo penal. Assim, pois, enquanto que o estado neoliberal utiliza-se do minimalismo na economia e no mercado, e ainda no desenvolvimento de políticas sociais, o direito penal volta-se para uma visão totalmente oposta, que é definida pelo intervencionismo, na aplicação da pena de morte e da dureza da pena privativa de liberdade.[6]
O que se apresenta no mundo globalizado neoliberal, não é apenas a preeminência dos movimentos minimalistas ou abolicionistas, mas a expansão e a relegitimação do direito penal, que se dá por meio do eficientismo penal, que é fundado nos ditames da Lei e da Ordem. Assim, o sistema penal apresenta-se como uma crise de eficiência, decorrente da operacionalização do poder punitivo. [7]
O novo discurso estabelece que o sistema não funciona, e por ser assim, não combate a criminalidade, uma vez que não é repressivo o suficiente. A sociedade, demanda por criminalizar mais, penalizar mais, aumentar os aparatos judiciais, policiais e penitenciários. Torna necessário suprimir cada vez mais os direitos e garantias dos indivíduos, rompendo com os ditames constitucionais, por uma necessidade que se mostra pela ineficiência do sistema penal, na sua conjuntura social.[8]
Dessa sorte, há o surgimento do Direito Penal do Inimigo, por intermédio de Gunther Jakobs, o qual se propõe a trabalhar acerca da globalização e do terrorismo, com vistas a romper dados questionamentos e dificuldade que se mostram intrínsecas ao novo processo de controle penal globalizado.
2. Direito Penal do Inimigo segundo Gunther Jakobs.
Nas ultimas décadas ocorreu uma latente alteração no campo da política criminal, de modo que diante da celeuma entre as políticas abolicionistas e minimalistas, passou-se a verificar um debate sobre o expansionismo do poder punitivo. E é nele que o tema do inimigo da sociedade ganhou o primeiro plano de discussão. [9]
Diante do Direito Penal da contemporaneidade, que clama por uma maior eficiência na penalização ou punição, como forma de gerar uma resposta a todo custo à sociedade, surge uma das mais controversas teorizações da atualidade, que é o Direito Penal do Inimigo, devidamente formulada pelo penalista alemão Gunther Jakobs, que pode ser configurada como um instrumento a promover a tranquilidade social, voltado à megacriminalização da sociedade de risco. [10]
Defende Jakobs uma reedição da prevenção especial negativa trazida à baila por Rafaele Garófalo, o qual partia de uma visão de mundo em que os sujeitos que não se adequam à realidade deveriam ser dela eliminados. O grande desafio de toda essa teorização, calcada no reconhecimento da ideia de inimigo, está na definição de quem se enquadraria dentro dessa conceituação e, portanto, seria objeto de tutela de um direito excepcional, no qual não se garante qualquer direto ou garantia.
A ideia de inimigo é mutante, já que, com o perpassar dos tempos, o Estado vai adquirindo novos inimigos, e os anteriores deixam de lhe ser importantes, o que se efetiva a partir das premissas principilógicas de seletividade, fragmentariedade, intervenção mínimo, características do Direito Penal. A busca pela definição deste inimigo está centrada no ideal de dever ser este eliminado em sua completude das esferas sociais.
Diferentemente do cidadão, o inimigo é aquele que se afasta do ordenamento jurídico de modo permanente, rompendo com toda a tranquilidade social. Não oferece nenhuma garantia à fidelidade da norma, o que é imprescindível para ser tratado como pessoa pelo direito.[11] É por ser assim, que o Direito Penal do Inimigo concebe a ideia de um inimigo que age de modo habitual.
Cumpre asseverar que a noção de inimigo remonta à cultura romana, que promovia a distinção entre o inimicus e o hostis, de forma que o inimicus era o inimigo pessoal, ao passo que o inimigo político era o hostis. Assim, o estrangeiro, o hostis, o estranho e o inimigo, careciam de direitos em termos absolutos, pois encontravam-se fora da realidade social. [12]
Não há que se pensar ser o conceito de inimigo privilégio da atualidade, mas, ao contrário, a presença de inimigos nos seios sociais é fato antigo nas comunidades de todo o mundo, destinando-se a eleição daqueles que devem figurar na categoria de inimigo a justificar e legitimar toda a ação coercitiva do Estado nesta luta interminável de combate à criminalidade.
O Direito Penal do Inimigo não busca, tão somente, compensar um dano causado à vigência da norma, como ocorre no Direito Penal do cidadão, mas prima essencialmente pela eliminação do perigo representado por indivíduos, tratados como não pessoas.
3. Direito Penal Do Inimigo v. Teorias Psicanalísticas de Freud frente às garantias constitucionais brasileiras
Há que se ter extrema cautela com a flexibilização de direitos e com a “despersonalização” de pessoas, pois o poder de punir de forma ilimitada poderá ensejar, em larga medida, uma atuação preventiva em toda a sociedade e não apenas contra os eleitos e rotulados inimigos do Estado, ou seja, corre-se o risco de generalizar as definições do inimigo.
Na medida em que o Direito Penal do Inimigo visa a eliminar do seio social os inimigos, como forma de resposta social à megacriminalização que assola a sociedade, Freud, por intermédio de suas teorias psicanalíticas, nega o princípio da legitimidade, na medida em que defende que a criminalidade não poderá ser eliminada, já que ela se faz necessária para manter a posição de honesto dos demais indivíduos.
A reação punitiva ao invés de promover a eliminação da criminalidade torna o desvio criminalizado como essencial e necessário à sociedade, na medida é necessário para manter a condição de honesta dos demais indivíduos; a sociedade não seria legítima para punir o delinquente para que transfere para os criminosos/repressão do mal as suas agressividades; com o fim de manter a sociedade na posição de íntegro.
É diante das teorias psicanalíticas da sociedade punitiva que Alessandro Baratta afirma que também o princípio da legitimidade é posto em causa, tendo em vista que:
A função psicossocial que atribuem à reação punitiva permite interpretar como mistificação racionalizante as pretensas funções preventivas, defensivas e éticas sobre as quais se baseia a ideologia da defesa social (princípio da legitimidade) e em geral toda ideologia penal. Segundo as teorias psicanalíticas da sociedade punitiva, a reação penal ao comportamento delituoso não tem a função de eliminar ou circunscrever a criminalidade, mas corresponde a mecanismos psicológicos em face dos quais o desvio criminalizado aparece como necessário e ineliminável da sociedade[13]
Em que pese a existências de entendimentos doutrinários dissonantes, a respeito do papel do direito penal na sociedade, todas as teorias convergem na busca pela redução da criminalidade e proteção de todo o corpo social. Contudo, tal objetivo não pode ser alcançado sem a busca por uma reforma profunda no sentido de que restabelecer as bases de aplicação da lei penal, a partir de estudos criminológicos a ser realizados em ambientes prisionais.
A busca pelo combate à criminalização deve se dar desde a sua origem e não apenas através de uma despersonalização do homem e, consequente, eleição de inimigos a serem tutelas por um Estado de exceção, até mesmo pelo fato de que tal prática já foi intentado por diversos países em épocas passadas, como, por exemplo, na Alemanha Nazista, não servindo para o efetivo controle da incidência criminal; mas, ao contrário, assolando ainda mais as diferenciações existentes entre os povos.
As garantias fundamentais, como se sabe, só podem ser mitigadas se assim for devidamente previsto no texto constitucional, pois, consoante o artigo 60 da Constituição, estas são inseridas no arcabouço das cláusulas pétreas, que não permitem qualquer restrição aos direitos fundamentais.
Portanto, admitir um Direito Penal do Inimigo é romper drasticamente com a noção de um Estado Democrático de Direito, pois ao promover a distinção entre cidadãos e inimigos, reconhecendo direitos diferentes a ambos, infringe-se com a igualdade de tratamento formal e material dos indivíduos. Posteriormente, ao determinar a construção do inimigo, caminha-se para a formação de um Estado absolutista, pois todo o poder é dado àquele que possui capacidade para isso.
CONCLUSÃO
O presente artigo teve por escopo central promover uma análise crítica das propostas definidas na política criminal idealizada por Gunther Jakobs, que é o Direito Penal do Inimigo, de modo que se chegou à conclusão de que há incompatibilidade deste instituto com os ditames do atual Estado Garantista Brasileiro.
Hodiernamente, existem três grandes propostas de políticas criminais, sendo que uma propõe o abolicionismo do sistema penal como um todo; a outra é apresentada pelo minimalismo, que defende a intervenção ultima ratio do Direito Penal; e a última é a defesa do expansionismo, que quer controlar a megacriminalidade, e para isso, utiliza-se de instrumentos que ampliam a esfera de atuação e intervenção do Direito Penal na sociedade, de modo a punir mais, estando devidamente sintetizada na Teoria do Direito Penal do Inimigo.
Sendo assim, foi necessário apresentar, no iniciar deste trabalho, o estudo das políticas criminais contemporâneas. Sabe-se que foi devido à globalização e a crescente onda de criminalidade e de violência que surgiu a política criminal ligada ao expansionismo penal e ao seu endurecimento, criando condições para o nascimento do inimigo, como forma de resguardar a segurança clamada pela sociedade.
O modelo do expansionismo confronta-se diretamente com o Direito Penal Mínimo, pois viola os ditames constitucionais ao retirar a essência de um Estado Democrático de Direito, que são as garantias fundamentais e a flexibilização da legalidade. Assim, a adoção de uma política criminal só pode ocorrer quando for capaz de promover a inclusão do outro, partindo da premissa de que a criminalidade nasce com a comunidade, e com esta deve ser solucionada, sendo, portanto, um problema social.
Sob este paradigma, tem-se que o presente artigo optou pela análise das propostas da teoria do Direito Penal do inimigo, tendo como seu maior pressuposto a política criminal voltada para o endurecimento do Direito Penal, isto é, como surgimento do expansionismo penal. Assim, a teoria foi idealizada pelo penalista alemão Günther Jakobs catedrático emérito de Direito Penal e Filosofia do Direito pela Universidade de Bonn na Alemanha.
Na definição de sua Teoria, Gunther Jakobs sedimenta todo o seu estudo na premissa do funcionalismo radical sistêmico, que se faz extremamente necessário compreender para poder analisar os postulados da Teoria do Inimigo. Assim, na análise da visão funcionalista, todos os conceitos jurídicos devem ser reunidos de forma a satisfazer as funções do próprio sistema penal, que para Roxin, volta-se para a tutela constitucional subsidiária de bens jurídicos, que são essenciais à vida social.
Todavia, Jaboks estabelece que o Direito Penal só se legitimará quando atuar na defesa do ordenamento jurídico, valorando a norma penal em si. Assim, seu objeto de proteção não são os bens jurídicos, mas a norma penal que é violada. Atua sobre condutas que não são apenas relevantes para o direito, mas que produzem um risco permanente para o convívio social, que rompem com o pacto de fidelidade firmado entre o indivíduo e o Estado.
Sendo assim, ao propor a dualidade do Direito, Jakobs definiu dois grandes grupos: os cidadãos, que são aqueles que cometem algum crime, mas que não rompem a barreira da permanência ou da habitualidade, podendo, portanto, receber a tutela de seus direitos e garantias, formando o Direito Penal do Cidadão; e os inimigos, que são aqueles que rompem drasticamente e permanentemente com a ordem jurídica, impondo um risco social em sua conduta, e que, por ser assim, não devem ter direitos e garantias penais a serem tutelados, devendo ser extirpados do convívio social, formando o que se denomina Direito Penal do Inimigo.
Para Jakobs, o inimigo deve ser tratado como não pessoa, sendo um sujeito que não possui direitos e garantias pelo simples fato de ter rompido com o ordenamento jurídico, ao cometer uma conduta que impôs risco a toda sociedade, e de forma habitual. Logo, o inimigo será punido pela sua periculosidade e não por um juízo de reprovação que pende sobre a sua conduta realizada – culpabilidade. Ademais, perderá a sua condição de cidadão, e terá o tratamento de ente daninho e perigoso, que deve ser eliminado da estrutura social.
Ainda sob este expansionismo penal, o legislativo vem atuando na feitura de normas que refletem imediatamente os postulados da teoria do inimigo, de modo que há restrição a garantias dos indivíduos, pelo simples fato de enquadrarem-se em certo tipo penal. Dessa forma, a lei 8.072/90 postula que os crimes hediondos (pelo simples fato de serem rotulados como hediondos ou crimes mais graves) são insuscetíveis de graça, indulto, anistia, fiança. Ademais, o Regime Disciplinar Diferenciado repercute a aplicação de uma pena injusta e desproporcional, pois pune o indivíduo não pelo fato cometido, mas por sua periculosidade, de modo que permite o seu isolamento celular por um período de até um ano, que pode ser prorrogado por um prazo igual a um sexto do que fora estabelecido anteriormente.
São diversos os outros exemplos de infiltração do conceito de inimigo no ordenamento jurídico brasileiro, podendo acrescentar a Lei 9.614/98, chamada Lei do abate, que possibilita a derrubada de aeronaves consideradas hostis dentro do estado brasileiro, pelo simples fato de não serem reconhecidas pelas Forças Armadas. Assim, violam-se os direitos à vida, à liberdade, à ampla defesa e ao contraditório. Ainda é por oportuno apresentar a Lei 10.826/2003, o Estatuto do Desarmamento, que ampliou as figuras típicas, passando a penalizar mais severamente as condutas de perigo decorrentes da posse e do porte ilegal de armas.
Sendo assim, foi necessário apresentar a relação que prepondera entre o Direito Penal e a Constituição Federal. Dessa forma, o Direito Penal só será validamente legitimado se gerar a proteção de direitos constitucionais, isto é, de direitos fundamentais. É pela existência destes direitos, que o ius puniendi do Estado encontra sua limitação, quando tiver que interferir na esfera da liberdade de cada indivíduo.
A dignidade penal está atrelada à identificação de bens passíveis de sofrerem tutela penal, e sendo assim, somente a Carta Magna pode determinar o que é a dignidade penal, ou seja, o conjunto de bens jurídicos relevantes para o Direito Penal. É esta noção que rompe imediatamente com o que apresenta a Teoria do Direito Penal do Inimigo, que não reconhece no inimigo a condição de sujeito de direitos, e conceber um Direito Penal fora dos ditames constitucionais, é formar um direito penal arbitrário, e consequentemente, inconstitucional.
Portanto, flexibilizar a legalidade, aplicar penas que são desproporcionais, alargar a punição penal, retirar garantias penais, antecipar a punição para os atos preparatórios, é romper com os dizeres de um Estado garantidor, infringindo a própria dignidade humana. Seguramente, somente com a implantação de um Direito Penal Mínimo e garantista, que esteja devidamente comprometido com os direitos fundamentais, é que se poderá produzir um sistema penal menos arbitrário, menos desigual, menos seletivo, mais justo e mais proporcional.
Para toda a sociedade e diante das atuais atrocidades, é mais do que urgente uma profunda mudança na órbita penal, e o meio adequado encontrado por esta sociedade tem sido pedir por mais punição, por uma norma mais dura, que reconheça no indivíduo a construção de um inimigo da sociedade. Todavia, não se pode acreditar que a única solução para a megacriminalidade apresentada seja a atuação da legislação penal, tendo em vista que esta só deverá atuar quando os demais meios falharem e conjuntamente com estes.
A Constituição Federal consagra o Estado Democrático de Direito como seu princípio constitucional, coadunando com a dignidade da pessoa humana. Logo, admitir a possibilidade de um Direito Penal do Inimigo é romper com todos os ditames básicos do Estado escolhido pela Carta Magna, para preponderar na órbita estatal.
Neste diapasão, torna-se necessária a intervenção do Supremo Tribunal Federal, resguardado como guardião da Constituição Federal, para declarar a inconstitucionalidade das normas legais formuladas, que se demonstram como atos atentatórios aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana – princípio matriz-, pois é este valor importante para tutela do Estado Democrático de Direito e para a promoção da validade do Direito Penal.
REFERÊNCIAS
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WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Medo e direito penal: Reflexos da expansão punitiva na realidade brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 62.
[1] QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do Direito Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 92.
[2] QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do Direito Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p.93.
[3] BARATTA, A. Direitos humanos: entre a violência estrutural e a violência penal, Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre: Fabris, 1993. p. 60-61.
[4] QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do Direito Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 72.
[5] QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do Direito Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p.77.
[6] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p.35.
[7]ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; ALOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, v.1. p. 68.
[8]ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; ALOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, v.1, p. 27.
[9] FRANÇA, Leandro Ayres; BUSATO, Paulo César. TIPO: Inimigo. Curitiba: Grupo De Pesquisa Modernas Tendências Do Sistema Criminal, 2011. p. 145. p. 13.
[10] WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Medo e direito penal: Reflexos da expansão punitiva na realidade brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 62.
[11] JAKOBS, Gunther. Direito penal do inimigo: noções e críticas. 4. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 19-70.
[12] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Evan, 2007, p. 22.
[13] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introduçao à Sociologia do Direito Penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011. 252 p.
Ensino Superior Completo - Universidade de Brasília (UnB). Cargo de Técnico Judiciário Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PIAU, Priscila Helena Soares. Direito Penal do Inimigo e as garantias penas do art. 5° da Constituição da República Federativa do Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jul 2016, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46980/direito-penal-do-inimigo-e-as-garantias-penas-do-art-5-da-constituicao-da-republica-federativa-do-brasil. Acesso em: 22 nov 2024.
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