Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar um breve estudo sobre o instituto do habeas corpus e sobre a possibilidade jurídica de concessão do writ per saltum e de ofício no ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-chave: Habeas corpus. Per saltum. Ofício.
Abstract: This article aims to present a brief study of the institute of habeas corpus and the legal possibility of granting saltum per writ and craft in the Brazilian legal system.
Keywords: Habeas corpus. Per saltum. Craft.
Sumário: 1. Introdução. 2. Habeas corpus. 2.1. Antecedentes históricos. 2.2. Surgimento no Brasil. 2.3. Natureza Jurídica. Finalidade. Procedimento e cabimento. 3. A possibilidade jurídica da concessão de habeas corpus per saltum e de ofício na ordem jurídica brasileira. 4. Considerações finais.
1. Introdução
Na última semana do mês de junho do corrente ano, a comunidade jurídica reagiu com certa estranheza e espanto à decisão prolatada pelo Ministro Dias Toffoli do STF no bojo da Medida Cautelar na Reclamação nº 24.506/SP, em que foi concedido habeas corpus per saltum e de ofício em favor do ex-ministro do Planejamento, senhor Paulo Bernardo da Silva.
Diante das inúmeras divergências e do acalorado debate no meio acadêmico e na praxe jurídica sobre tema, tem-se que o presente artigo visa ao estudo da possibilidade jurídica de concessão de habeas corpus per saltum no ordenamento jurídico brasileiro.
Para tanto, far-se-á, de início, um breve relato sobre os principais antecedentes históricos do habeas corpus tanto no Direito alienígena quanto no Direito brasileiro.
Em seguida, discorrer-se-á sobre a natureza jurídica e a finalidade do habeas corpus no ordenamento jurídico pátrio.
Após, será realizado sintético apontamento acerca do procedimento e do cabimento do habeas corpus no Direito brasileiro.
Por fim, abordar-se-á sobre a possibilidade jurídica da concessão de habeas corpus per saltum e de ofício na ordem jurídica em vigor.
2. Habeas corpus
2.1. Antecedentes históricos
A palavra habeas corpus deriva do latim e significa literalmente “tome o corpo”, querendo, com isso, dizer que o paciente seja submetido à vista da autoridade judicial competente para que ela verifique a existência de coação e, se for o caso, o liberte.
Para Aury Lopes Jr., o habeas corpus tem sua raiz histórica no Direito Espanhol, no período de 1428-1592, com o recurso denominado de “manifestación de personas do Reino de Aragão”. Tratava-se de um procedimento rápido, submetido ao regime da ação popular, que transcorria ante uma jurisdição muito próxima à atual constitucional: a da Justiça de Aragão.
Consoante o mencionado autor, esse instrumento servia para “possibilitar que o detido fosse trasladado do cárcere para a ‘casa de los manifestados’ de Zaragoza ou outro domicílio, mediante um regime similar à atual liberdade provisória.” E, ainda, para “prevenir ou reprimir as detenções ilegais cometidas por qualquer autoridade posto que, sobre todas elas, inclusive do próprio Rei, alçava-se a jurisdição da Justiça de Aragão” (LOPES JR. 2012, p. 1337-1338). Não obstante o ensinamento de LOPES JR., para nós, ancorado em abalizada doutrina, o habeas corpus tem sua origem histórica na Inglaterra, mais precisamente no dia 15 de junho de 1.215, em que o monarca João sem Terra, por pressão do clero e dos nobres, editou a chamada Magna Charta Libertatum, que não admitia a prisão dos barões sem o julgamento dos seus pares (MOSSIM, 2008, p. 3).
Dispunha o artigo 48 da aludida carta que: “ninguém poderá ser detido, preso ou despojado dos seus bens, costumes ou liberdade, a não ser por julgamento dos seus pares, de acordo com a lei do país”.
Cumpre esclarecer, por oportuno, que a Magna Charta Libertatum não protegia o homem comum, que somente mais tarde teve esse direito garantido (SIQUEIRA JR, 2012, p. 239).
Mesmo após o advento da Carta do Rei João Sem Terra a afirmação da liberdade pessoal e de suas garantias enfrentou grande resistência, o que acabou por resultar na edição da Petition of Rights e do Habeas Corpus Act de 1679, no reinado de Carlos II.
Ensina PUCCINELLI JÚNIOR que: “tais conquistas foram complementadas com outro documento histórico, o Habeas Corpus Act de 1816”, que ampliou o campo “de incidência do instituto, até então restrito às pessoas acusadas de crimes, para autorizar a defesa rápida e eficaz da liberdade individual também em outras hipóteses” (2012, p. 310).
Para MOSSIM “a Carta de 1215 foi um grande marco para o homem e, via de consequência, para todo o corpo societário, já que, por meio dela, o respeito à liberdade física do indivíduo tornou-se uma realidade, deixando de ser esse sonho que sempre criptou a alma humana. Por meio dela fez-se nascer e proliferar uma nova era, consistente na conquista da liberdade, muitas vezes coarctada pelo abuso, pela tirania e pelo despotismo. O estado libertário do homem, conquistado na época citada, foi inexoravelmente o responsável por toda a atual estrutura jurídica que tende a tutelar e proteger o direito individual de ir, vir e ficar por meio dos diplomas maiores de todos os países civilizados. A sua importância e tão contundente e significativa que, no Brasil, a Constituição Federal em vigor insculpe norma expressa a respeito, mantendo, nesse particular, uma tradição legislativa” (2008, p. 5).
2.2. Surgimento no Brasil
Por sua vez, conforme leciona MOSSIM, o habeas corpus foi introduzido no sistema jurídico brasileiro por meio do Decreto de 23 de maio de 1821, após a partida de D. Joao VI para Portugal, o qual tinha o objetivo de assegurar o direito de liberdade que constava nos dispositivos da Constituição da Monarquia portuguesa e das Ordenações do Reino, bem como ordenar o arbítrio e a prisão ilegal e injusta.
O Decreto de 23 de maio de 1821 encontrava-se assim redigido: “vendo que nem a Constituição da Monarchia Portugueza, em suas disposições expressas na Ordenação do Reino, nem mesmo a Lei da Reformação da Justiça de 1582, com todos os outros Alvarás, Cartas Régias, e Decretos de Meus augustos avós tem podido affirmar de um modo inalterável, como é de Direito Natural, a segurança das pessoas; e Constando-Me que alguns Governadores, Juízes Criminaes e Magistrados, violando o Sagrado Deposito da Jurisdicção que se lhes confiou, mandam prender por mero arbitrio, e antes de culpa formada, pretextando denuncias em segredo, suspeitas vehementes, e outros motivos horrorosos à humanidade para ipunimente conservar em masmorras, vergados com o peso de ferros, homens que se congregaram convidados por os bens, que lhes offerecera a Instituição das Sociedades Civis, o primeiro dos quses é sem duvida a segurança individual; E sendo do Meu primeiro dever, e desempenho de Minha palavra o promover o mais austero respeito à Lei, e antecipar quanto ser possa os beneficios de uma Constituição liveral: Hei por bem excitar, por a maneira mais efficaz e rigorosa, a observancia da sobre mencionada legislação, ampliando-a, e ordenando, como por este Decreto Ordeno, que desde a sua data em diante nenhuma pessoa livre no Brazil possa jamais ser presa sem ordem por escripto do Juiz, ou Magistrado Criminal do territorio, excepto sómente o caso de flagrante delicto, em que qualquer do povo deve prender o delinquente. Ordeno em segundo logar, que nenhum Juiz ou Magistrado Criminal possa expedir ordem de prisão sem preceder culpa formada por inquirição summaria de tres testemunhas, duas das quaes jurem contestes assim o facto, que em Lei expressa seja declarado culposo, como a designação individual do culpado; escrevendo sempre sentença interlocutoria que o obrigues a prisão e livramento, a qual se guardará em segredo até que possa verificar-se a prisão do que assim tiver sido pronunciado delinquente. determino em terceiro logar que, quando se acharem presos os que assim forem indicados criminosos se lhes faça immediata, e successivamente o processo, que deve findar dentro de 48 horas peremptorias, improrrogaveis, e contadas do momento da prisão, principiando-se, sempre que possa ser, por a confrontação dos réos com as testemunhas que os culparam, e ficando alertas, e publicas todas as provas, que houverem, para assim facilitar os meios de justa defesa, que a ninguem se devem difficultar, ou tolher, exceptuando-se por ora das disposições deste paragrapho os casos, que provados, merecerem por as Leis do Reino pena de morte, acerca dos quases se procederá infallivelmente nos termos dos §§ 1º e 2º do Alvará de 31 de março de 1742. Ordeno em quarto logar que, em caso nenhum possa alguem ser lançado em segredo, ou masmorra estreita, ou infecta, pois que a prisão deve só servir para guardar as pessoas, e nunca para adoecer e flagellar; ficando implicitamente abolido para sempre o uso de correntes, algemas, grilhões, e outros quesquer ferros inventados para martyrisar homens ainda não julgados a soffrer qualquer pena afflictiva por sentença final; entendendo-se todavia que os Juizes, e Magistrados Criminaes poderão conservar por algum tempo, em casos gravissimos, incomunicaveis os delinquentes, contanto que seja e casa arejadas e commodas, e nunca manietados, ou soffrendo qualquer especie de tormento. Determino finalmente que a contravenção, legalmente provada, das disposições do presente Decreto, seja irremissivelmente punida com o perdimento do emprego, e inhabilidade perpetua para qualquer outro, em que haja exercicio de jusrisdicção. O Conde dos Arcos, do Conselho de sua Magestade, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios do Reino do Brazil e Estrangeiros, o tenha assim entendido e faça executar com os despachos necessarios. Palacio do Rio de Janeiro em 23 de Maio de 1821.
Com a rubrica do Principe Regente.
Conde dos Arcos”.
Sem dúvida, tal diploma legislativo introduziu o habeas corpus no ordenamento jurídico pátrio, muito embora não tenha utilizado tal nomen juris.
Oportuno frisar que a constituição de 1824 não se referiu expressamente ao habeas corpus, muito embora tenha assegurado algumas liberdades individuais.
A expressão habeas corpus foi inserida no ordenamento jurídico pátrio no ano de 1832 com o advento do Código de Processo Criminal, que prescrevia em seu artigo 340 que: “todo cidadão que considere que ele ou outra pessoa sofre uma prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade tem o direito a solicitar uma ordem de habeas corpus em seu favor”.
Na Constituição de 1891 o habeas corpus foi consagrado como um instrumento processual de fundamental importância para a proteção da liberdade de locomoção ambulatória. Desde então, vem sendo mantido em todas as Constituições.
A Carta de Outubro de 1988 prescreve em seu artigo 5°, inciso LXVIII, que: “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
2.3. Natureza jurídica. Finalidade. Procedimento e cabimento.
O habeas corpus possui natureza jurídica de ação constitucional, muito embora tenha sido incluído no Código de Processo Penal no capítulo dos recursos, o que configura um equívoco do legislador pátrio.
Boa parte da doutrina costuma denominá-lo de “remédio heroico”, destinado a garantir o direito fundamental à liberdade individual.
Costuma-se denominá-lo, ainda, de writ, que é uma expressão inglesa que significa exatamente um mandamento judicial.
Trata-se de ação constitucional, pois se invoca a tutela jurisdicional do Estado para a proteção da liberdade de locomoção e tem previsão no texto constitucional, conforme inciso LXVIII do artigo 5º da Constituição Federal acima transcrito.
Segundo ensina LOPES JR. “o habeas corpus brasileiro é uma ação de natureza mandamental com status constitucional, que cumpre com plena eficácia sua função de proteção da liberdade de locomoção dos cidadãos frente aos atos abusivos do Estado, em suas mais diversas formas, inclusive contra atos jurisdicionais e coisa julgada. A efetiva defesa dos direitos individuais é um dos pilares para a existência do Estado de Direito, e para isso é imprescindível que existam instrumentos processuais de fácil acesso, realmente céleres e eficazes” (LOPES JR., 2012, p. 1342).
Portanto, o habeas corpus é o instrumento constitucional apto a remover a coação ou a sua ameaça decorrente de ilegalidade ou de abuso de poder ao direito subjetivo da liberdade individual, consubstanciado no direito de ir, vir e ficar.
Neste sentido dispõe o artigo 647 do Código de Processo Penal que será concedido habeas corpus: “sempre que alguém sofra ou se encontre na iminência de sofrer violência ou coação ilegal em sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar”, valendo ser ressaltado que a exceção da punição disciplinar é aplicável tão somente às transgressões disciplinares militares, conforme estabelece o artigo 142, § 2º, da Constituição Federal.
Nunca é demais sublinhar, consoante ensina LOPES JR., que “o processo penal e o habeas corpus em especial são instrumentos a serviço da máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo submetido ao poder estatal. A forma aqui é garantia, mas garantia do indivíduo” (2012, p. 1343).
A finalidade do habeas corpus, portanto, é proteger a liberdade deambulatória, sendo que quando se destina a atacar uma ilegalidade já consumada, um constrangimento ilegal já praticado, denomina-se habeas corpus liberatório, cuja função é de liberar da coação ilegal. Todavia, o instrumento constitucional também pode ser manejado para evitar a violência ou coação ilegal em uma situação de iminência ou ameaça, quando será denominado de habeas corpus preventivo.
O habeas corpus pode ser impetrado por qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério Público, consoante dispõe o artigo 654 do Código de Processo Penal.
“Ao legitimar qualquer pessoa, o legislador cria uma ação popular de habeas corpus, pois, como dizia Rui Barbosa, ‘a liberdade de locomoção não entra no patrimônio particular, como as cousas que estão no comércio, que se dão, trocam, vendem ou compram; é um verdadeiro condomínio social; todos o desfrutam, sem que ninguém o possa alienar; e, se o indivíduo, degenerado, a repudia, a comunhão, vigilante, a reivindica’” (RANGEL, 2011, p. 967), inclusive por juízes e tribunais no curso do processo, sempre que verificarem ocorrência de violência ou coação ilegal, podem conceder a ordem de ofício.
O habeas corpus, cuja tramitação é gratuita (CF/88, art. 5º, LXXVII), independe de forma e pode ser formulado sem advogado, havendo relatos na praxe forense de casos de mandamus impetrado por presos em papelão e até papel higiênico.
Destarte, para concessão de habeas corpus basta a existência de ato lesivo ou de sua ameaça à liberdade de locomoção, devendo a insurgência ser direcionada à autoridade judiciária competente, nos termos dos artigos 92 e seguintes da Constituição Federal e dos respectivos regimentos internos dos tribunais.
3. A possibilidade jurídica da concessão de habeas corpus per saltum e de ofício na ordem jurídica brasileira
Consoante dito alhures, na última semana do mês de junho do corrente ano, a comunidade jurídica reagiu com certa estranheza e espanto à decisão prolatada pelo Ministro Dias Toffoli do STF no bojo da Medida Cautelar na Reclamação nº 24.506/SP, em que foi concedido habeas corpus “per saltum” e de ofício em favor do ex-ministro do Planejamento, senhor Paulo Bernardo da Silva.
A aludida reclamação, com pedido de liminar, foi ajuizada por Paulo Bernardo Silva, que alegava usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal pelo Juízo Federal da 6ª Vara Criminal Especializada em Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional e em Lavagem de Valores da Seção Judiciária de São Paulo.
Ao apreciar o pleito liminar, o Ministro Dias Toffoli do STF entendeu que não se encontrava latente a usurpação da competência da Corte Suprema e, por isso, denegou a liminar pleiteada.
Não obstante, vislumbrou, na espécie, manifesto constrangimento ilegal, passível de ser reparado mediante a concessão de habeas corpus de ofício.
Conforme veiculado na decisão proferida na RCL 24506 MC / SP, o Juízo de primeiro grau teria justificado a necessidade da prisão preventiva do ex-ministro do Planejamento, senhor Paulo Bernardo, para garantia da ordem pública, ancorado no fato de não ter sido localizada “expressiva quantia em dinheiro desviada dos cofres públicos”, e que isso representaria “risco evidente às próprias contas do País, que enfrenta grave crise financeira, a qual certamente é agravada pelos desvios decorrentes de cumulados casos de corrupção”.
Para o Ministro Toffoli, o fato de “não haver sido localizado o produto do crime não constitui fundamento idôneo para a decretação da prisão preventiva para garantia da ordem pública, haja vista que se relaciona ao juízo de reprovabilidade da conduta, próprio do mérito da ação penal.”
Aduziu, ainda, que “o alegado ‘risco evidente às próprias contas do País, que enfrenta grave crise financeira’, por se tratar de mera afirmação de estilo, hiperbólica e sem base empírica idônea. A prisão preventiva não pode ser utilizada como instrumento para compelir o imputado a restituir valores ilicitamente auferidos ou a reparar o dano, o que deve ser objeto de outras medidas cautelares de natureza real, como o sequestro ou arresto de bens e valores que constituam produto do crime ou proveito auferido com sua prática.”
De fato, primo ictu oculi (expressão latim que significa: ao primeiro relance da vista), a decisão proferida pelo MM. Juiz da 6ª Vara Criminal Especializada em Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional e em Lavagem de Valores da Seção Judiciária de São Paulo carece de fundamentação idônea para a decretação da medida extrema. É dizer, faltava justa causa no cerceamento da liberdade do reclamante, o que constitui um dos requisitos autorizadores para a concessão de habeas corpus, conforme determina o inciso I do artigo 648 do Código de Processo Penal.
Por outro lado, dispõe o artigo 654, § 2º, do Código de Processo Penal que: “art. 654. O habeas corpus poderá ser impetrado por qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério Público (...) § 2º Os juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal”.
Da leitura do dispositivo acima transcrito não resta dúvida da possibilidade de concessão de habeas corpus de ofício por parte da autoridade judiciária.
Ocorre, porém, que essa autoridade judiciária deve ser competente para a prolação da decisão concessiva de habeas corpus.
Com efeito, é comezinho que para que uma ordem de habeas corpus possa ser conhecida por uma instância superior, é necessária a provocação dos juízes inferiores acerca da matéria que se pretende impugnar, sob pena de indevida supressão de instância, salvo em situações teratológicas ou de manifesta ilegalidade.
Não se está, com isso, defendendo que para a concessão de habeas corpus haja a necessidade do esgotamento das vias ordinárias. Todavia, é decorrência da própria ordem constitucional em vigor que para o conhecimento do remédio heroico nas instâncias superiores, faz-se necessário a observância da condição da autoridade coatora, donde se conclui que na ausência de apreciação da matéria pelos juízos inferiores, não será possível considerar o órgão judiciário como responsável pelo constrangimento ilegal à liberdade de locomoção.
Em outras palavras, tem-se que o conhecimento de habeas corpus pela instância superior exige a manifestação prévia do órgão inferior, ainda que em decisão singular de negativa de liminar pleiteada pelo paciente no órgão a quo, caso em que seria possível ao órgão ad quem a concessão do writ nos casos de manifesta ilegalidade, conforme já decidiu incontáveis vezes o Supremo Tribunal Federal ao afastar o entendimento jurisprudencial insculpido no verbete sumular 691 daquela Excelsa Corte, assim redigido: “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar.”
Neste sentido: “Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. ATO COATOR. DECISÃO MONOCRÁTICA. NÃO CONHECIMENTO. PRISÃO PREVENTIVA. GRAVIDADE CONCRETA. HIGIDEZ DO DECRETO PREVENTIVO. RISCO À INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. 1. A teor da Súmula 691/STF, ‘não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar’. 2. Paciente policial civil que, acusado da prática dos crimes de corrupção passiva, violação de sigilo funcional e falsidade ideológica, supostamente solicitava vantagem indevida a fim de condescender com a prática habitual de exploração sexual e jogos de azar. 3. Menção à diversidade dos destinatários das solicitações e às consequências concretas da suposta inação do agente público, inclusive com possível submissão de mulheres à exploração com privação de liberdade. 4. Se as evidências sugerem que o acusado violou sigilo funcional para favorecer investigado em apuração criminal, razoável prever que, se tiver a oportunidade, poderá prejudicar a investigação em benefício próprio. 5. Impetração não conhecida, com extinção sem resolução de mérito e sem concessão da ordem de ofício.
(HC 128984, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 06/10/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-252 DIVULG 15-12-2015 PUBLIC 16-12-2015)”.
No mesmo sentido é a lição de MOSSIM, para quem: “se vislumbrado de plano que o indeferimento da medida liminar quebra a garantia da eficácia da decisão final em sede do writ, colocando em risco de lesão grave ou de difícil reparação a liberdade corpórea do paciente, nada mais eloquente do que essa decisão monocrática ser impugnada por intermédio de recurso regimental ou combatida com a impetração do mandamus” (2008, p. 335).
Portanto, o conhecimento de habeas corpus pela instância superior decorre, necessariamente da manifestação da instância inferior, com vistas a se resguardar a ordem constitucional vigente, especialmente no tocante a competência jurisdicional.
Ao discorrer sobre o tema BRASILEIRO aduz que: “revela-se inviável, portanto, o pedido de julgamento de habeas corpus per saltum, ou seja, o julgamento do remédio heroico pelas instâncias superiores sem prévia provocação das instâncias inferiores acerca do constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, sob pena de verdadeira supressão de instância e consequente violação do princípio do duplo grau de jurisdição” (2016, p. 2470).
4. Considerações finais
Nessa seara, é possível concluir que a decisão proferida pelo Ministro Dias Toffoli afrontou a ordem constitucional vigente, na medida em que não houve manifestação nem do Tribunal Regional Federal da 3ª Região nem, por consectário lógico, do Superior Tribunal de Justiça. O que acabou por macular o duplo grau de jurisdição.
Deveria o nobre ministro ter indeferido a medida cautelar da reclamação, como de fato o fez e, em seguida, determinar o traslado de cópias dos autos para que o Tribunal Regional Federal da 3ª Região pudesse apreciar a ilegalidade da prisão do ex-ministro do planejamento, tudo em homenagem ao preceito do duplo grau de jurisdição e em prestígio às instâncias ordinárias, que tem sua competência definida pela Constituição Federal, que acabou por ser malferida por aquele que deveria guardá-la.
Frise-se que não se trata de apego ao formalismo, mas sim de respeito ao Estado Democrático de Direito e à ordem constitucional vigente, mormente se considerarmos que o reclamante não estava à beira de uma execução de uma sentença condenatória à pena de morte, que no regime vigente somente é possível em caso de guerra declarada, o que afasta a alegação de urgência na soltura do paciente.
Portanto, na Ordem Jurídica Pátria é possível a concessão de habeas corpus de ofício, desde que a autoridade judicial seja competente para o conhecimento do mandamus, competência esta que se exsurge com a qualidade da autoridade coatora ou do paciente, conforme dispõe os artigos 102 e seguintes da Constituição Federal, não estando as instâncias superiores habilitadas à concessão do writ de ofício sem a prévia provocação das instâncias ordinárias, ressalvados os casos de competência originária. Veda-se, pois, a concessão de habeas corpus per saltum. Tudo em homenagem aos ditames da Constituição da República Federativa do Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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LIMA, Renato Brasileiro. Manual de processo penal: volume único – 4. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.
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MOSSIN, Heráclito Antônio. Habeas corpus: antecedentes históricos, hipóteses de impetração, processo, competência e recursos, modelos de petição, jurisprudência atualizada. – 8. ed. (revista e atualizada). – Barueri, SP: Manole, 2008.
PUCCINELLI JÚNIOR, André. Curso de direito constitucional – São Paulo: Saraiva, 2012.
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Analista Judiciário. Pós Graduado em Direito Tributário pelo Instituto Fortium do Distrito Federal. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Brasília.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Ivanildo Ferreira dos. Da (im)possibilidade jurídica do habeas corpus per saltum no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jul 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46993/da-im-possibilidade-juridica-do-habeas-corpus-per-saltum-no-ordenamento-juridico-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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