RESUMO: Este artigo tem por intento abordar criticamente os institutos da conduta social e da personalidade do agente - delineados no artigo 59 do Código Penal Brasileiro - quando usados como critérios para a fixação da pena-base, apresentando-se como um retrocesso no que tange ao direito penal do ato, fundamental ao Estado Democrático de Direito. Nessa esteira, a utilização desses critérios autoriza a majoração da pena em razão do exame de condutas que não foram previamente tipificadas pelo legislador, equivalendo-se a uma incidência de pena sem anterior cominação legal. No tocante à majoração em virtude do exame da personalidade do agente, implica uma valoração não de sua conduta delituosa, mas de sua individualidade, representando uma suposta periculosidade social. Sendo assim, traz-se à baila a inconstitucionalidade dos mencionados critérios, haja vista ofender diretamente princípios consagrados na Constituição Federal, tais como: legalidade, culpabilidade, lesividade, presunção de inocência, devido processo legal, laicidade e amoralidade. Ademais, apontamos que a adoção desses critérios reporta ao direito penal do autor - fundado na tutela de valores morais - corroborando uma explícita confusão entre direito e moral e contrapondo-se os fundamentos do Estado de Direito, alicerçados no princípio da legalidade e na tutela de bens jurídicos. Assim, evidencia-se um sistema penal regressivo, emocional, simbólico, seletivo e antigarantista, fundamentado em valores subjetivos e na construção sistemática de inimigos públicos. Por fim, baseado em todo o exposto, defenderemos a retirada dos critérios de conduta social e personalidade do agente quando da fixação da pena-base, atribuindo maior coesão ao sistema criminal em seus moldes atuais.
Palavras-chave: Conduta social e personalidade do agente. Direito penal do autor. Inconstitucionalidade.
INTRODUÇÃO
A linha teórica positivista, em que pese se encontrar ultrapassada, instituiu suas raízes em nosso ordenamento jurídico. Várias reminiscências da Escola Positiva ainda são identificadas em nossa legislação atual, sendo aplicadas sem muitos questionamentos por parte da doutrina e, sobretudo, pelos Tribunais.
O positivismo, assim como o direito penal do autor, ofendem os princípios consagrados na Constituição Federal e norteadores do Direito Penal. Entretanto, ainda podemos encontrar resquícios de sua influência na legislação pátria, especialmente no art. 59 do Código Criminal.
Necessário se mostra, pois, a abordagem quanto à legitimidade dessas manifestações anacrônicas de positivismo e direito penal no autor, com todos os malefícios que lhe são inerentes.
O artigo 59 do Código Penal estipula os critérios que guiarão a fixação da pena-base, sendo denominados de circunstâncias judiciais. O objetivo dessas circunstâncias é possibilitar a formatação de penas individualizadas e proporcionais, de modo a se tornarem necessárias e suficientes para proporcionar a reprovação e a prevenção da conduta.
Neste artigo, em meio aos critérios assinalados pelo art. 59 do Código Penal, focalizaremos nossa atenção à conduta social e à personalidade do agente, procurando demonstrar a afronta que representam a inúmeros princípios constitucionais, assim como os resquícios que apresentam do temível direito penal do autor.
1. AS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DO ARTIGO 59 DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO
1.1 Dosimetria da pena
Inicialmente, antes de abordarmos os critérios que orientam a fixação da pena-base, mostra-se necessário uma breve análise sobre a dosimetria da pena.
No seu artigo 68, o Código Penal Brasileiro adotou o critério trifásico para a fixação das penas cominadas. Assim, a pena do acusado será definida passando-se por três fases diferentes. A primeira fase diz respeito ao exame das circunstâncias judiciais delineadas no artigo 59 do CP, fixando-se ao final uma pena-base.
Após, analisa-se as circunstâncias legais, que são as agravantes (artigos 61 e 62 do CP) e as atenuantes (artigos 65 e 66 do mesmo diploma legal). Existindo qualquer uma delas, a pena será devidamente agravada ou atenuada, e uma nova pena será fixada, a provisória.
Na última fase, sobre a pena provisória incidirá as causas de aumento ou diminuição de pena, localizadas na parte geral e na parte especial do Código Penal. Portanto, ao fim da dosimetria, resultará a pena final e definitiva, a qual será cumprida pelo condenado.
É imperioso frisar que, inexistindo agravantes ou atenuantes, causas de aumento ou de diminuição, a primeira fase será a única analisada. Assim, a pena-base pode vir a se tornar a sanção definitiva do infrator.
Ao nosso artigo interessa o estudo da primeira fase, a qual corresponde à fixação da pena-base, onde serão abordadas as circunstâncias judiciais utilizadas para tal fim, procurando assinalar os resquícios do direito penal do autor, bem como a inconstitucionalidade de alguns de seus critérios. Essa análise só será possível com a estrita observância das circunstâncias do artigo 59 do Código Penal (BRASIL, 1940).
Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;
II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;
III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;
IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.
Estas circunstâncias são nomeadas de circunstâncias judiciais, visto que a lei não as define, tocando ao juiz da causa a incumbência de mensurá-las concretamente – tornando-se frutos de uma apreciação quase sempre muito subjetiva por parte do julgador. Entretanto, referida subjetividade não se confunde com arbítrio e alguns elementos devem ser perfeitamente elucidados.
Cumpre mencionar que a culpabilidade citada no art. 59 do CP não é a elementar constitutiva do tipo penal. Destarte, não se trata de uma inexigibilidade de conduta diversa, mas sim do grau de reprovabilidade social do desvio punível.
Desse modo, depois de uma sucinta explanação sobre a aplicação da pena-base, passamos a uma análise aprofundada sobre os seguintes critérios delineadores da pena em comento: a conduta social e a personalidade do agente.
1.2 Conduta social do agente
Um dos critérios de fixação da pena-base é a conduta social do agente, a qual está relacionada aos comportamentos do réu em seu meio social, às atividades concernentes ao trabalho, ao relacionamento familiar ou qualquer outra forma de relação social.
Assim, o juiz da causa deve se informar sobre a pessoa que está sob julgamento, sobre seus laços sociais e a maneira como os conduz, com o intuito de apurar indícios de merecimento de uma maior ou menor censura. Percebe-se que o referido critério se ampara em uma culpabilidade de caráter ou, melhor dizendo, em uma culpabilidade pelos fatos da vida que possui, conspurcando notadamente o princípio da culpabilidade, o qual reza por um direito penal do fato.
Essa apreciação será conseguida por meio do trabalho cognoscitivo dos julgadores, que obterão provas através de perguntas realizadas no interrogatório e nos depoimentos das testemunhas, e se alicerçará em três pilares principais: família, trabalho e religião. Almeida (2002, p. 74) delineia exemplos do parâmetro perseguido, dentre os quais:
A vocação do acusado para o trabalho ou para a ociosidade; a afetividade do mesmo para com os membros que integram a sua família, ou o desprezo e indiferença que nutre por seus parentes; o prestígio e a respeitabilidade de que goza perante as pessoas do seu bairro ou da sua cidade, bem como o índice de rejeição de que desfruta entre os que o conhecem socialmente; o seu entretenimento predileto (…) ou se prefere a companhia constante de pessoas de comportamento suspeito e freqüenta, com habitualidade, locais de concentração de delinqüentes, casas de tolerância, lupanares ou congêneres; o seu grau de escolaridade, tal como a assiduidade e a abnegação pelo estudo ou o desinteresse pelo mesmo, assim como o respeito e o relacionamento com funcionários, professores e diretores do estabelecimento escolar.
Verifica-se que alguns dos exemplos elencados pela doutrina como de boa conduta social são típicos, tendo por base a realidade brasileira, de um segmento social economicamente favorecido. Portanto, em muitos casos, ao analisar a conduta social do réu, o magistrado utiliza como critérios os valores da classe social à qual pertence, que ordinariamente corresponde àqueles mais abastados economicamente. Essa postura fatalmente dirige o julgamento a ser mais severo com os acusados integrantes dos grupos sociais diametralmente opostos ao do julgador.
Observa-se que a conduta social traz a adoção de estereótipos sociais. E isso ocorre com respaldo na influência positivista, a qual tem a tendência de visualizar indivíduos como delinquentes em função do meio em que vivem. Portanto, morar em uma favela, por exemplo, pode ser visto como uma circunstância que aproxima o crime ao agente, o que não é obrigatoriamente verdade. Mostra-se presente, assim, o labelling approach, isto é, a teoria do etiquetamento de indivíduos que possuem estigmas sociais. Nessa direção, José Ricardo Ramalho (apud BARREIROS, 2006, p. 2) ensina que:
O delinquente é identificado pelo fato de ser favelado antes de sê-lo pelo ato de que é acusado. Na favela, habita boa parte das populações pobres dos grandes centros urbanos e que de forma alguma é composta por delinquentes. Não se pode negar que a maior parte dos presos procede de periferias, favelas, bairros pobres, mas a sutileza da argumentação está no fato de que isto não significa que haja uma relação necessária e natural entre ser favelado e ser delinquente: a relação é social. Na sua grande maioria, os moradores das favelas não são delinquentes, mas são tratados enquanto tais pela polícia e pela justiça.
O cerne da questão é que qualquer conduta do agente que seja oposta ao do juiz da causa, seja em uma área religiosa, social, sexual ou afetiva, será mal conceituada quando do julgamento, visto que o magistrado respalda sua conduta tomando por base as suas experiências sociais, e as tem como corretas. Outrossim, a dificuldade em entender valores sociais diversos aos próprios é praticamente intrínseco ao humano.
Desse modo, temos que a conduta social, como critério de fixação da pena-base, tem por fundamento elementos não tipificados por lei, atinentes unicamente aos costumes do acusado, o que não é constitucionalmente admitido, tendo em vista que o Estado não pode regular a vida privada dos cidadãos, somente tutelando-lhes a proteção dos bens jurídicos, sem qualquer imposição ou reforço de uma determinada moral.
1.3 Personalidade do agente
Sempre existiram discussões quanto à formulação de um conceito de personalidade. Dentre as várias tendências, sobressai-se a que a concebe como um sincretismo de fatores biológicos e suprabiológicos, em proporções totalmente insuspeitas. Os fatores biológicos dizem respeito à herança genética recebida, que define a maneira como o indivíduo conduziria suas interações sociais, seu temperamento, sua afetividade. Já os fatores suprabiológicos correspondem às características adquiridas por meio de sua vivência social no meio em que habita.
Por esse ângulo, a investigação da personalidade do agente responde à averiguação de sua índole, seu perfil moral e psicológico, que determinam ou influenciam seu comportamento social. Refere-se, assim, a um esquadrinhamento da consciência do acusado, de seu íntimo.
Nucci elenca algumas características que são aferidas quando da apreciação da individualidade consciente, tais como: agressividade, preguiça, frieza emocional, emotividade, passividade, maldade, bondade (NUCCI, 2006, p. 231).
Embasados na legislação, na jurisprudência e na doutrina majoritária, defende-se a fixação da pena-base do acusado de acordo com um juízo de censura sobre sua personalidade. Entretanto, consiste em um critério falho na fundamentação de seu uso, visto que nem psicólogos/psicanalistas/ psiquiatras – profissionais habilitados para esse fim – conseguem emitir um juízo satisfatoriamente seguro quanto a esta circunstância, evidentemente não serão os juristas os capazes de fazê-lo.
Não obstante existisse o conhecimento técnico para a práxis, os recursos materiais e humanos são parcos, o que impossibilita ao julgador a efetivação dessa avaliação. Ademais, a insuficiência de contato pessoal entre o juiz e o réu impede a construção adequada de qualquer parecer alusivo a aspectos pessoais do acusado.
Gilberto Ferreira (1995, p. 88) enumera quatro justos motivos para o afastamento da análise da personalidade do agente da competência judicial. In verbis, vejamos:
Primeiro, porque ele não tem um preparo técnico em caráter institucional. As noções sobre psicologia e psiquiatria as adquire como autodidata. Segundo, porque não dispõe de tempo para se dedicar a tão profundo estudo. Como se sabe, o juiz brasileiro vive assoberbado de trabalho. Terceiro, porque como não vige no processo penal a identidade física, muitas vezes a sentença é dada sem ter o juiz qualquer contato com o réu. Quarto, porque em razão das deficiências materiais do Poder Judiciário e da polícia, o processo nunca vem suficientemente instruído de modo a permitir uma rigorosa análise da personalidade". (FERREIRA, 1995, p. 88).
Além disso, o distanciamento do julgador para com os fatos a se comprovar e com a pessoa do acusado implica em uma tomada de decisão mais espinhosa, no que diz respeito ao julgamento e à aplicação da pena. Consequentemente, esta restará diretamente influenciada por suas convicções morais e políticas pessoais e pelos condicionamentos culturais e sociais exercidos sobre ele pelo ambiente onde vive e pela classe a qual pertence. Ora, diante disso ainda podemos falar sobre um julgamento imparcial? Claro que não.
Tendo por base o fato de que as regras de como se portar em sociedade são definidas pelas classes que detém qualquer tipo de poder – político, cultural, econômico -, temos que a moral que impera no meio social condiz com aquela dos grupos dominantes, e que padrões de normalidade possuem variáveis como o tempo e o lugar. Ainda podemos afirmar que, devido à mesma hierarquia sociocultural, os magistrados geralmente advêm dos grupos que ditam as normas. Então, poderia ele julgar, imparcialmente e sem prévios juízos de valor, pessoas provenientes de classes hipossuficientes ou com ideias diametralmente opostas as suas?
A questão é que certos comportamentos ou opiniões, quando não lesivos aos bens jurídicos de outrem e não tipificados pela lei penal, não podem ser vistos em detrimento do réu, mesmo que gere estranheza para aquele que julga. A aversão ou a surpresa que outro padrão de comportamento cause naquele que o observe se deve ao fato do choque entre culturas, o que não constitui crime algum.
Realmente, dosar a pena é, em suma, reconhecer inúmeros subjetivismos. Contudo, existem algumas esferas do ser humano que são impenetráveis, onde o direito não tem o condão de interferir, tendo em vista não ser correspondente com nenhuma importância da causa penal. Ferrajoli (2010, p. 448-449) corretamente observa que:
A pretensão kantiana de que o direito deveria castigar a “maldade humana” é, certamente, o reflexo de uma incorreta confusão entre direito e moral, e abre caminho a modelos anticognoscitivistas de inquisição e de punição referidos não ao que se fez, senão ao que se é. E a tese de que a alma humana é inescrutável não enuncia somente um limite às possibilidades de conhecimento e de prova, mas representa uma garantia de imunidade do cidadão diante de investigações sobre sua consciência tão incontroláveis como indiscretas.
2. INCONSTITUCIONALIDADE DA UTILIZAÇÃO DA CONDUTA SOCIAL E DA PERSONALIDADE DO AGENTE COMO CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS NA FIXAÇÃO DA PENA-BASE
Este artigo se arquiteta em uma abordagem crítica de dois critérios usados na fixação da pena-base. Em que pese a enorme importância da matéria, a doutrina penal, salvo raras exceções, tem negligenciado seu estudo; no que diz respeito aos órgãos encarregados de aplicar a legislação criminal, o mesmo acontece. Entretanto, algumas ponderações importantes precisam ser feitas.
Amparados no artigo 59 do Código Penal, e em seu cumprimento, é prática corriqueira nos tribunais a busca por conhecer os costumes, a profissão, as características pessoais, as práticas sociais e até mesmo a orientação sexual do acusado, sobretudo quando existem indícios de mau comportamento quando do convívio social, ou de que tenha qualquer característica em desacordo com os padrões em vigência.
Procedendo dessa forma, o magistrado indiscutivelmente se afasta de suas limitações legais, efetivando não somente uma pura análise dos fatos, mas também uma apreciação e julgamento de traços íntimos do réu, de seus tumultos interiores, bem como de conduta social, constituindo, por conseguinte, uma ofensa a diversos dispositivos constitucionais e um retrocesso ao temido direito penal do autor.
A conduta social e a personalidade do agente, que são dois dos critérios utilizados pelo ordenamento jurídico brasileiro como reitores para fixação da pena-base, delineados no artigo 59 do Código Penal, evidenciam um anacronismo jurídico, em virtude de remeterem ao já defasado positivismo jurídico, afastando-se das conquistas do direito penal do ato e da garantia de uso da culpabilidade do autor, permitindo, assim, uma punição pela manutenção do “eu” e pela conduta de vida.
Ademais, o uso desses critérios fomentam o substancialismo penal e o decisionimo processual, contrariando o modelo hodiernamente abraçado, qual seja, o cognitivismo processual.
Segundo já esposado, percebemos que a maioria dos juízes, em razão da realidade brasileira, advém das classes privilegiadas, as mesmas que ditam as regras sociais. Por conseguinte, uma considerável parcela da população, se for levada a julgamento por algum desvio penal punível, será julgada por um magistrado que tem padrões absolutamente diversos, e os tem como corretos, já que condizentes com o que está preestabelecido socialmente.
Nesse cenário, o julgador poderia proferir um julgamento imparcial no tocante à conduta social e a personalidade do agente, quando esses são totalmente opostos ao seu? Poderia ele alhear-se de seus valores e julgar outros que, por se enquadrarem a outra realidade, lhe são avessos?
Baratta nos ensina que pesquisas empíricas apontam para as temíveis “diferenças de atitude emotiva e valorativa dos juízes, em face de indivíduos pertencentes a diversas classes sociais”. Isso significa que os magistrados possuem, pelas razões expostas, uma tendência inconsciente de proceder com juízos diversificados segundo a posição social do réu (BARATTA, 2002, p. 177).
Consequentemente, o que sempre se viu e até hoje se constata na práxis diária dos tribunais, são pessoas sendo julgadas como portadoras de personalidades desviantes e socialmente inadequadas só porque possuem costumes e ideais religiosos e filosóficos distintos do socialmente aceito como apropriado. Realmente, boa parte desses indivíduos faz parte dos grupos mais desfavorecidos, ou aqueles que, independentemente de sua condição econômica, são historicamente discriminados, como os negros, os homossexuais e as prostitutas, não tendo prestígio social. Nessa senda, lembramos, mais uma vez, que:
As pessoas economicamente desfavorecidas, que, em conseqüência disso, não apresentam as exteriorizações dos valores hegemônicos, são percebidas como inimigos e despertam no agente aplicador do direito um mecanismo de rejeição que faz com que as regras de direito sejam a elas aplicadas com maior rigor, determinando um tratamento mais severo e violento (BARREIROS, 2006, p. 01).
Constatamos, sob esse ângulo, que a miséria e a desigualdade social são abordadas como fatores causadores do crime; as diferenças sociais e o antagonismo entre as classes geram, antes de tudo, um fenômeno negativo. Observa-se, porquanto, que o Estado revela a “preocupação dos nossos dias com a pureza do deleite pós-moderno” expressa “na tendência cada vez mais acentuada a incriminar seus problemas socialmente produtivos”. Ou seja, todas as disfunções advindas do nosso atual sistema econômico são vistas como problemas penais que necessitam ser neutralizados, no caso com uma pena que resultará, na pior hipótese, em perda da liberdade (BAUMAN, 1998, p. 25).
Ante essa conjuntura, o uso do exame da conduta social e da personalidade do agente, quando do julgamento, comumente deságua em um etiquetamento de indivíduos como criminosos, fundamentado não em fatos comprovadamente delituosos, mas em atitudes socialmente malvistas. Nota-se, pois, o infeliz uso do labelling approach, bem como a presença da seletividade penal em nosso sistema jurídico.
Não obstante, ante os pressupostos do Estado Democrático de Direito, temos que os órgãos jurídicos são impossibilitados de impor uma moral aos cidadãos. Nessa trilha, o reconhecimento de que a pena pode ser majorada em razão da personalidade desalinhada ou da conduta vista socialmente inapropriada do acusado significa autorizar que Estado possua o poder de moldar a moral das pessoas, conforme a estabelecida como adequada na sociedade, aniquilando o direito à diferença.
Realmente, é inaceitável, diante de um Estado Democrático de Direito, um modelo jurídico que possui um:
Um exercício de poder que priva da autoderminação, (...) que lhe impõe (...) sua religião, seus valores, que destrói todas as relações comunitárias que lhe pareçam disfuncionais, que considera seus habitantes como sub-humanos necessitados de tutela e que justifica como empresa piedosa qualquer violência genocida, com o argumento de que, ao final, redundará em benefício das próprias vítimas (ZAFFARONI, 2001, p. 74-75).
Acontece que ao Estado é atribuída a obrigação de exigir que seus membros humanos se orientem pelas regras por ele legalmente emanadas. Contudo, nunca lhe será autorizada a possibilidade de alterar os valores interiores dos cidadãos, como também suas próprias compreensões de vida. Portanto, não se é permitido vedar que os indivíduos sejam internamente ruins, tendo em vista que sobretudo se conserva o direito de continuar sendo aquilo que é; o que se pode, e se deve, é proibir que ofendam bens jurídicos alheios.
Essa confusão entre o campo do direito e da moral promove uma associação entre delito e pecado, entre antijuricidade e antissociabilidade. Tal prática demonstra uma atribuição de valor externo às leis penais em vigência, além de trazer à tona as teses jurídico-substancialistas, asseverando que o delito também se edifica através de suas características intrínsecas, que mistificam o direito penal vigente, reconhecendo-o de uma forma apriorística, conforme a moralidade média (FERRAJOLI, 2010, p. 344).
Acrescente-se que, mesmo que se hipoteticamente a conduta ou as opiniões do réu pudessem ser inquiridas e comprovadas reprováveis, certos atributos não poderiam ser considerados como fatores majorantes da pena, já que contrariam o direito penal do ato, direcionando-se a um juízo de culpabilidade no autor, consoante os ditames do positivismo, nefastamente enraizado no ordenamento jurídico pátrio.
Com maestria, Zaffaroni assevera que:
Para limitar a irracionalidade da violência seletiva, a agência judicial deve pautar seu plano decisório na exigência de requisitos objetivos. Para que esta exigência de dados objetivos resulte minimamente racional, tais dados devem ser selecionados de acordo com algum fundamento antropológico ou, pelo menos, não recusar uma base antropológica; por isso, não deve tomar como dados limitadores ou reguladores outras coisas que não seja uma conduta ou ação do criminalizado. Qualquer outro dado resultaria contrário ao conceito de homem como pessoa e, por conseguinte, claramente antijurídico (ZAFFARONI, 2002, p. 248-249).
Com o intuito de facilitar a compreensão da problemática, idealizemos o exemplo do mestre Túlio Vianna:
Dois indivíduos munidos de arma de fogo resolvem roubar um banco em concurso de agentes. Ambos realizam as mesmas condutas, rendem o caixa, apontam-lhe a arma, recolhem o dinheiro, dividem-no em partes iguais e saem em fuga. Durante a instrução criminal as testemunhas afirmam que o primeiro deles é ótimo pai de família, excelente vizinho, bom empregado e que trabalha durante os finais de semana em entidades beneficentes, tendo inclusive adotado cinco crianças de rua. O outro acusado, porém, tem personalidade e conduta social oposta: bate na esposa, briga constantemente com a vizinhança, chega bêbado no trabalho e há fortes comentários de que trafique drogas. Não é difícil imaginar que o juiz fixará a pena do primeiro no mínimo legal e aumentará a pena do segundo em cerca de um ano. Ao proceder desta forma, o magistrado, na prática, estará condenado ambos pelo roubo a banco e suplementarmente estará condenando o segundo a um ano de prisão por bater na esposa, brigar constantemente com a vizinhança, chegar bêbado no trabalho e supostamente traficar drogas (VIANNA, 2009).”
No caso proposto, ao prolatar a pena do segundo condenado, o julgador feriria o princípio constitucional da legalidade, visto que, a despeito de ser moralmente incorreto, ter desentendimentos com os vizinhos e chegar alcoolizado no trabalho não configuram nenhum crime, isto porque essas condutas não estão penalmente tipificadas.
No que tange ao fato de ser um marido violento, mesmo que seja uma conduta taxada como delito pelo Código Penal, é indispensável que o devido processo legal lhe seja garantido, assegurando-lhe o direito de que ninguém será privado de liberdade sem uma acusação formal, na qual será respeitado o contraditório e a ampla defesa. Quanto à suposição de tráfico de droga, esta resta em uma mera acusação, a qual não passa disso até que, eventualmente, transmude-se em sentença condenatória transitada em julgado. Nessa esteira, devido ao princípio da presunção de inocência, indubitavelmente não poderá ser usada para majorar pena em outro processo, sendo como conduta social, personalidade do agente ou antecedente.
Sendo assim, o acusado somente poderá ser condenado pelo fato que lhe foi formalmente imputado, contra o qual terá o pleno direito de defesa e do contraditório. Não lhe seriam concedidas essas garantias se sua pena fosse indevidamente majorada tendo como fundamentos uma personalidade e/ou conduta socialmente vistas como desajustadas, como também suposições de crimes cometidos, inexistindo uma acusação formal e legal.
Percebe-se que os critérios usados pelo juiz, quando da fixação da pena-base, extrapolam os limites da reprovação da ação. O ato de criminalizar condutas e aspectos pessoais do acusado – efeito de majorar a pena em virtude de condutas sociais e personalidade – por serem desabonadas pelo meio social, quando não ofendam nenhum bem jurídico alheio, podendo apenas ser objeto de apreciação moral, denota uma manifesta afronta aos princípios constitucionais da legalidade, da culpabilidade, da presunção de inocência, da lesividade e da amoralidade, ultrajando o direito penal do ato e fragilizando a tão cobiçada segurança jurídica. Assim, há uma supressão da liberdade pessoal e do direito à diferença, impondo a todos a obrigação de dirigir sua conduta, íntima e exterior, conforme a ordem social prevalecente, sob pena de ter sua sanção penal majorada se por acaso praticar algum crime.
De acordo com os dizeres de Bruno S. de Menezes, o que atualmente se almeja é “punir o agente pelo que cometeu e não mais pelo que pensa ou que é, sob pena de retornarmos ao medievo, quando pessoas eram queimadas porque divergiam em pensamento de quem detinha o poder”. Assim, admitir que a pena-base seja fixada ancorada em critérios como os em questão, constitui um inquestionável retrocesso em termos de política criminal e garantias de direitos humanos fundamentais (MENEZES, 2005, p. 81).
É importante salientar que autorizar que a conduta social e a personalidade do agente sejam consideradas como desfavoráveis, leva a compreensão de existência de valores superiores, os adotados pela maior parte do corpo social, constituindo um verdadeiro atentado contra a liberdade e a identidade dos indivíduos sociais.
Outrossim, os postulados do Estado Democrático de Direito asseveram que a sanção do desvio punível não deve possuir conteúdos nem desígnios de cunho moral. Nessa linha, frisamos o ensinamento de Ferrajoli (2010, p. 208):
A sanção penal, da mesma forma, não deve possuir nem conteúdos nem finalidades morais. Assim como a previsão legal e a aplicação judiciária da pena não devem servir nem para sancionar nem para individualizar a imoralidade, também a sua execução não deve tender à transformação moral do condenado. O Estado, além de não ter o direito de obrigar os cidadãos a não serem ruis, podendo somente impedir que se destruam entre si, não possui, igualmente, o direito de alterar – reeducar, redimir, recuperar, ressocializar etc – a personalidade dos réus. O cidadão tem o dever de não cometer fatos delituosos e o direito de ser internamente ruim e de permanecer aquilo que é.
Frente a esse contexto, percebemos nitidamente a existência de uma diluição do conceito de culpabilidade, visto que as normas penais dirigem suas amarras diretamente ao autor do delito, perquirindo suas características pessoais. Isto também porque a culpabilidade tem por norte a comissão ou omissão de um fato penalmente típico, não condicionando, para seu reconhecimento, a personalidade do acusado ou a maneira como se porta em seu meio social. Do esposado deriva, pois, uma certificação de que há uma “subjetivação ética e voluntarista do sistema, tanto penal quanto processual, já que a maldade subjetiva do réu não é perceptível, senão mediante a intuição subjetiva do juiz” (FERRAJOLI, 2010, p. 455).
Além disso, Bitencourt pondera que a apreciação de características como “o status pessoal ou profissional do autor, sua condição particular, a função que exerce na coletividade, que, aliás, não tem nenhuma relação com o fato delituoso” desemboca em uma
“orientação identificada com o mais autêntico direito penal de autor. (...) Quer dizer, julga-se pelo que o indivíduo é e não pelo que faz, como um verdadeiro “direito penal do inimigo”, que, de uma forma discriminatória, distingue entre “cidadãos” e “inimigos”, tratando-se, com efeito, da desconsideração de determinada “classe de cidadãos” como portadores de direitos não iguais aos demais a partir de uma classificação que se impõe desde as instâncias de controle formal, violando o sagrado princípio da igualdade (BITENCOURT, 2009, p. 632-633).
Observa-se que as instâncias formais de controle debruçam-se sobre o autor do delito, e não sobre o delito que foi praticado. Assim sendo, a punição não é aplicada em razão da execução do crime, mas sim por causa das características pessoais do réu, suas qualidades, seus defeitos, sua personalidade, seu caráter.
Percebemos, assim, uma posição dualista no que tange à culpabilidade. Duas espécies de culpabilidade estão insertas no nosso atual ordenamento jurídico, quais sejam, a do autor e a do ato. No entanto, não é possível referida combinação. Ou se inflige uma pena em virtude do ato concreto perpetrado, ou pelo fato advindo de uma conduta de vida. A combinação, e o uso, dos dois tipos de culpabilidade significam uma legitimação do direito penal do autor, mas sob uma roupagem democrática de direito penal do fato.
Desse modo, deparamo-nos diante de uma ululante ofensa ao direito penal do fato, estabelecido pelo nosso folheto constitucional, em detrimento do cruel direito penal do autor. Evidente também é a agressão ao princípio normativo da separação entre direito e moral, bem como aos princípios constitucionais alusivos à legalidade, lesividade, amoralidade e laicicidade, presunção de inocência, culpabilidade e devido processo legal.
Imperioso se mostra, em um Estado Democrático de Direito, a conduta respeitosa perante a autonomia do cidadão, que detém o direito constitucional de não sofrer uma sanção penal por algo não tipificado em lei, assim como à liberdade de expressão, opinião e pensamento, não incidindo sobre ele a obrigação de seguir quaisquer regras de comportamento definidas como retilíneas pela cultura dominante, em que pese se exima de praticar condutas legalmente consideradas como ilícitas.
Por fim, não obstante uma boa parte da doutrina não adotar o entendimento aqui explicitado, alguns autores vanguardistas coadunam com o mesmo, como é o caso de Ney Moura Teles (2011, capítulo 17, p. 9-11).
Dispõe o art. 59 que o juiz analisará também a conduta do condenado em seu meio social: se ele está ou não adaptado em seu ambiente social, vale dizer, se ele é ou não bem aceito por seus concidadãos, seus semelhantes, seus iguais. [...] Essa é outra circunstância que nada tem a ver com o fato criminoso praticado pelo agente e que diz respeito exclusivamente a seu passado anterior ao crime e à sentença. [...] a circunstância não deve ser levada em consideração no momento da fixação da pena, pois que representaria o julgamento do homem pelo que ele é, e não do homem pelo que ele fez. (...) Aqui, outra circunstância que não tem relação direta com o fato praticado, a personalidade, característica interna do homem, é incluída entre as circunstâncias judiciais. Deve o juiz, a teor do art. 59, considerá-la no momento da fixação da pena base? (...) Ora, a personalidade não é um conceito jurídico, mas do âmbito de outras ciências – Psicologia, Psiquiatria, Antropologia – e deve ser entendida como um complexo de características individuais próprias, adquiridas, que determinam ou influenciam o comportamento do sujeito. Considerá-la no momento da fixação da pena é considerar o homem, enquanto ser, e não o fato por ele praticado. (...) O exame da personalidade, de outro lado, não pode ser feito a contento pelo juiz, no âmbito restrito do processo penal, sem o concurso de especialistas – psiquiatras, psicólogos, etc. O magistrado não é formado e preparado para o exame aprofundado de características psíquicas do homem, e permitir-lhe exame apenas superficial, para um desiderato tão grave – perda da liberdade -, seria de uma leviandade inaceitável num ordenamento jurídico democrático e sério. Facultar ao juiz a consideração sobre a personalidade do condenado importa em conceder ao julgador um poder quase divino, de invadir toda a alma do indivíduo, para julgá-la e aplicar-lhe a pena pelo que ela é, não pelo que ele, homem, fez.
Ademais, alguns poucos magistrados, habilmente em suas fundamentações, evitam efetivar juízos de valor sobre o que não tange à matéria estritamente jurídica, como dispõe o Des. Aymoré Roque Pottes de Mello:
Deste modo, o simples fato de possuir processos em andamento não é suficiente para negativar tal operadora. Ainda no ponto, registro não há prova técnica que autorize juízo conclusivo (positivo ou negativo) sobre a operativa da personalidade do réu. Neste sentido, transcrevo a seguinte nota doutrinária: “(...) a personalidade, todavia, é mais complexa do que essas simples manifestações de caráter ou de temperamento, não sendo fácil determinar-lhe o conteúdo porque o trabalho exige conhecimento técnico-científico de antropologia, psicologia, medicina e psiquiatria e, de outro lado, aquele que se dispõe realizá-lo tendo a racionar com base nos próprios atributos de personalidade, que elege, não raro como paradigma. Urge revisarmos, portanto, a idéia de que os problemas relacionados à personalidade são fontes de maior periculosidade, como delineada pelo legislador na redação original do nosso Código, nesse ponto coerente, aliás, com as disposições que ensejavam imposição cumulativa de pena e de medida de segurança.” (BRASIL, Apelação Criminal nº 70014876551, 2006).
Quanto à conduta social e à personalidade do agente, conclui-se, pois, serem inaceitáveis como fatores determinantes para a fixação da pena-base, em virtude de sua discordância com princípios consagrados constitucionalmente e com os pilares do Estado Democrático de Direito.
Tendo em vista que o Código Penal constitui uma lei infraconstitucional, suas normas devem estar em perfeito acordo com os preceitos da Carta Magna; caso isso não aconteça, deverão ser declaradas inconstitucionais e extirpadas do nosso ordenamento jurídico. Sendo assim, propõe-se a exclusão desses critérios do âmbito jurídico, evitando a devastação dos benefícios do Estado Democrático de Direito e do modelo penal garantista, que lhe é correlativo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fato de majorar penas, quando da prática de um crime, em razão da análise da conduta social e da personalidade do agente apresenta uma incompatibilidade com fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Aumentar a pena tendo por base a conduta social do acusado pressupõe a análise de condutas que não foram previamente tipificadas pela lei, ofendendo claramente, entre outros, o princípio constitucional da legalidade, que preceitua que nenhuma pessoa será obrigada a fazer ou deixar de fazer alguma coisa que não esteja prevista em lei. Assim, qualquer majoração de pena, tendo esse critério como embasamento, equipara-se a uma imposição de pena sem anterior cominação legal, correspondendo, ainda, a uma condenação sumária e inquisitorial por fatos muitas vezes atípicos.
O que ocorre comumente, todavia, é a majoração da pena baseada em condutas vistas como anti-sociais pelo juiz, embora sejam atípicas para o nosso ordenamento jurídico, configurando evidente ultraje a diversos princípios inseridos em nossa Carta Magna.
Também se mostra possível a majoração da pena por meio do exame da personalidade do agente, o que implica uma apreciação e uma valoração não de sua conduta criminosa, mas sim de sua individualidade. O que representa uma eventual periculosidade social. Isso deságua em uma pena mais grave àquela pessoa que possui uma personalidade reprovada pela coletividade, mesmo que não venha a lesar bem jurídico alheio, mas que afronte apenas a moral socialmente imposta.
Desse modo, percebemos que os critérios usados pelo julgador, quando da fixação da pena-base, excedem os limites da reprovação da ação em si mesma. Criminalizar condutas e aspectos pessoais do réu, em virtude de não se coadunarem com o que as classes sociais dominantes ditaram como corretas, a despeito de não lesarem bem jurídico alheio, podendo somente ser objeto de apreciação moral, denota uma cristalina ofensa aos princípios constitucionais da legalidade, da culpabilidade, da presunção de inocência, da lesividade e da amoralidade, derivando em injuriar o direito penal do ato e em fragilizar a tão cobiçada segurança jurídica.
Notamos, ademais, uma subjetivação ética e voluntarista do sistema penal, tendo em vista que a maldade subjetiva do acusado somente é percebível através da subjetiva percepção do magistrado, evidenciando uma grave afronta às garantias individuais do cidadão, as quais prescrevem que ninguém será penalizado pelo que é, mas pelos atos que comete.
Contudo, segundo os preceitos do direito penal vigente, o Estado deve se mostrar respeitoso quanto à autonomia do cidadão, não o constrangendo a seguir condutas e pensamentos socialmente cominados como aceitáveis. Em outras palavras, deve-se conservar a liberdade individual de pensamento, crença, expressão, opinião e de modo de vida, desde que estes não lesem bens alheios juridicamente protegidos.
Nessa senda, visualizamos nitidamente, apesar de termos abraçado o direito penal do ato (aquele que inflige a pena em virtude da conduta praticada), os resquícios da influência do direito penal do autor em nosso Código Penal. Entretanto, as exigências de certeza e segurança jurídicas, próprias de um Estado Democrático de Direito, são inconciliáveis com o direito penal do autor, peculiar a um Estado totalitário e antigarantista.
Outrossim, é clara a presença da seletividade penal, da diferenciação punitiva, da teoria do Labelling Approach, do substancialismo penal e do decisionismo processual em nosso ordenamento jurídico atual. Demonstrando que, desde os primórdios até os dias hodiernos, o sistema criminal nacional é programado para a produção de vitimização e exclusão, com a consequente desqualificação jurídica de indivíduos, classes, grupos e segmentos sociais.
Desse modo, imperioso se mostra reconhecer a inconstitucionalidade das circunstâncias judiciais de personalidade do agente e sua conduta social para fixação da pena-base, já que afronta diretamente princípios consagrados na Constituição Cidadã, além de nos reportar ao direito penal do autor e ao positivismo, em uma clara ofensa aos pilares norteadores do direito penal e essenciais a um Estado Democrático de Direito.
Em razão de todo o esposado, conclui-se, pois, que a conduta social e a personalidade do agente são inaceitáveis como fatores determinantes para a fixação da pena-base. Sendo assim, e tendo em vista que o Código Penal é uma lei infraconstitucional, mostra-se demasiadamente necessário uma redução do conteúdo do artigo 59 do diploma penal, eliminando a conduta social e personalidade do agente como circunstâncias judiciais quando da fixação da pena.
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Técnico Judiciário. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-graduado em Direito do Estado pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Pós-graduado em Direito da Família pela Universidade Cândido Mendes (UCAM)<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CRUZ, Rodolfo Ferreira Lavor Rodrigues da. A conduta social e a personalidade do agente (artigo 59 do Código Penal) sob a ótica da Constituição Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 jul 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47000/a-conduta-social-e-a-personalidade-do-agente-artigo-59-do-codigo-penal-sob-a-otica-da-constituicao-federal. Acesso em: 22 nov 2024.
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