RESUMO: Objetiva-se com o presente estudo uma análise critica sobre as deletérias consequências geradas pela maximização do sistema repressivo, defendendo-se a necessária observância dos limites ditados pelos princípios constitucionais penais, de modo a restringir a atuação do direito penal, com uma mudança de postura na adoção de mecanismos de combate à criminalidade nas três esferas de Poder: a) Legislativo, como forma de contenção à inflação do Sistema Repressivo; b) Judiciário, a fim de que este exerça um controle mais enérgico sobre a constitucionalidade da legislação já existente e c) Executivo, como forma de estímulo à adoção de outros mecanismos de controle social, compatíveis com nosso Estado Democrático de Direito.
Palavras-Chave: Hipertrofia do Direito Penal. Estado democrático de direito. Controle social. Sistema repressivo. Princípios constitucionais penais.
1 INTRODUÇÃO
O Direito Penal, dentre os vários instrumento de controle social formal colocados à disposição do Estado, constitui a forma mais aguda de intervenção no comportamento coletivo. A rigidez dos meios através dos quais atua impõe a utilização da norma penal como ultima ratio, ou seja, o Estado só pode a ela recorrer quando esgotados os meios menos lesivos de proteção a direitos. Não obstante seu caráter subsidiário, tem ele sido utilizado de forma desenfreada, ampliando-se seu campo de atuação para além dos limites permitidos constitucionalmente.
A hipertrofia das normas penais é um fenômeno ocasionado pela ineficiente atuação estatal no combate ao crescente aumento da criminalidade. Com efeito, verificada a ocorrência de fato de relevante repercussão social, passa a mídia a realizar constante pressão, potencializando a insatisfação do povo, o Estado, por sua vez, em resposta aos reclamos da sociedade por imediatas e enérgicas soluções, recorre à intervenção penal como alternativa mais rápida e barata ao aparente combate a todos os tipos de conflitos sociais.
O aumento do controle punitivo não é mero reflexo do aumento da violência, mas, antes de tudo, o retrato da construção social de um poder enfraquecido, composto por protagonistas políticos descompromissados com seu povo. A constatação da ineficiência do Sistema Penal em combater os conflitos que ele se propõe, através da diária elaboração de leis penais, só vem a aumentar o descrédito da população nas instituições estatais, fomentando a sensação de impunidade e a insegurança da coletividade.
O ordenamento jurídico não pode recepcionar normas penais que afetem a dignidade do homem em nome da pacificação social, devendo as normas legais infraconstitucionais, para que sejam legítimas, apresentarem-se como espelho dos valores contidos em nossa carta constitucional. Busca-se, portanto, um Direito Penal que se coadune com os princípios constitucionais, conferindo legítima proteção tanto ao direito de liberdade quanto aos demais bens jurídicos tutelados por nossa Carta Magna.
2 CONTROLE SOCIAL E SISTEMA PENAL
2.1 INSTRUMENTOS FORMAIS E INFORMAIS DE CONTROLE SOCIAL
Para a manutenção da ordem e dos valores vigentes, espera-se que o comportamento humano se dê de determinada forma, respeitando as regras e limites – ínsitos ao Estado Democrático de Direito – impostos pelo ordenamento jurídico. Quando a conduta do indivíduo vai de encontro às expectativas da coletividade, surge a insegurança social.
A fim de disciplinar a conduta humana, conta-se com a atuação conjunta do Estado, da Família, da Escola, da religião etc. Quando o próprio Estado realiza o controle social, será este considerado formal; considera-se informal quando exercido através de recursos utilizados por outros agrupamentos.
Compreende-se por controle social o conjunto de instituições, estratégias e sanções sociais destinadas a promover e garantir a sujeição dos indivíduos aos modelos e às normas comunitárias.
Nas sociedades contemporâneas, cada vez mais complexas e dominadas pela multiplicidade de conflitos, há a crescente demanda pela multiplicação de instrumentos de controle, que auxiliem na difícil tarefa de impor aos indivíduos sua submissão aos padrões de conduta estabelecidos pelo corpo social, assegurando, pois, que os mesmos atuem de acordo com as normas legais.
Segundo Zaffaroni e Pierangeli, os conflitos entre grupos são solucionados de forma a se chegar a uma estabilização, que resulta na configuração da estrutura de poder de uma sociedade, a qual se divide em institucionalizada (polícia, tribunais, escola, universidade etc.) e difusa (meios de massa, família, preconceitos, modas etc.) – “Investigando a estrutura de poder explicamos o controle social e, inversamente, analisando este, esclarecemos a natureza da primeira”. Esclarecem que “a enorme extensão e complexidade do fenômeno do controle social demonstra que uma sociedade é mais ou menos autoritária ou mais ou menos democrática, segundo se oriente em um ou outro sentido a totalidade do fenômeno e não unicamente a parte do controle social institucionalizado ou explicito”. [1]
O controle social exercido pelo Estado deve estar em sintonia com as diretrizes traçadas pela Constituição Federal, devendo atuar de modo a promover e proteger aos direitos, liberdades e garantias consagrados constitucionalmente. A Constituição Federal estabelece limites a serem obrigatoriamente observados pelo legislador ordinário, o qual jamais poderá produzir atos normativos que estabeleçam restrições despropositadas, impondo ao ser humano gravames superiores ao estritamente necessário para a proteção dos interesses públicos.
O Estado dispõe de diversos instrumentos de controle social. O Direito Penal é uma das formas mais pesadas de controle social formal, uma vez que sua aplicação acarreta, quase sempre, a restrição de um dos bens jurídicos mais caros do ser humano: o direito à liberdade. Entende Mariângela Gomes que, para proteger bens jurídicos, deve o Estado primeiramente esgotar os meios menos lesivos antes de recorrer à norma penal, que deve constituir uma arma subsidiária, uma ultima ratio. [2]
No combate aos conflitos sociais, deve o Estado, em primeiro lugar, se valer de meios desprovidos de caráter sancionatório, como uma adequada política social; mostrando-se insuficientes tais meios, deve recorrer a sanções não penais, tais como civis ou administrativas; apenas em último caso, quando nenhum dos meios anteriores for suficiente, estará legitimado o recurso ao direito penal.
2.2 O CONTROLE SOCIAL FORMAL EXERCIDO PELO SISTEMA PENAL
O Sistema Penal, conforme ensinamentos de Zaffaroni e Pierangeli, constitui-se num controle social punitivo institucionalizado, que atua desde a suspeita da prática de um crime até o momento de imposição e execução de uma pena, englobando a atividade “do legislador, do público, da polícia, dos juízes e funcionários e da execução penal”. [3] Segundo os autores, esta é a idéia geral de Sistema Penal em sentido limitado, enquanto que em um sentido amplo incluem-se no controle ações controladoras e repressoras aparentemente alheias ao Sistema Penal.
Para eles, o Sistema Penal é dividido em segmentos, a saber: o policial, o judicial e o executivo, tratando-se de grupos humanos que atuam de forma convergente na condução do Sistema, os quais têm um predomínio determinado em cada etapa cronológica. Também incluem nesse Sistema os legisladores e o público, atribuindo aos primeiros o encargo de estabelecer “padrões de configuração”, e ao segundo o poder de por em funcionamento o Sistema através da denúncia.
No Brasil, os denominados “segmentos estáveis do Sistema Penal” encontram-se assim representados: a) segmento policial: do qual faz parte a polícia judiciária estadual e federal; b) segmento judicial: formado por um órgão de persecução penal (Ministério Público) e pelo Poder Judiciário e c) segmento de execução: constituído por órgãos judiciais (varas de execuções penais), órgãos administrativos (secretarias de justiça) e por um sistema carcerário (presídios, cadeias públicas, penitenciárias, colônias agrícolas e industriais, casas de albergado etc). [4]
A ineficiência do Estado na adoção de mecanismos que promovam o efetivo combate à criminalidade vem acarretando o descrédito desses segmentos, aumentando, por conseqüência, a sensação de impunidade e o sentimento de insegurança social, conforme veremos a diante.
2.2.1 Missão e limites do Direito Penal
O Sistema Penal aspira contribuir com a construção de uma sociedade mais justa e pacífica, tendo como missão, no dizer de Fernando Capez, “proteger os valores fundamentais para a subsistência do corpo social, tais como a vida, a saúde, a liberdade, a propriedade etc., denominados bens jurídicos” [5].
A finalidade maior do direito penal é a “luta contra o crime”, todavia essa missão não é exclusivamente sua, representando o Sistema Penal, como visto linhas acima, apenas uma das formas de controle social, dentre muitas colocadas à disposição do Estado e da sociedade. Dessa forma, a prevenção contra o crime também é papel a ser desempenhado por importantes setores da vida privada, como a família, a escola, a igreja, grupos assistenciais etc., os quais devem atuar em conjunto com o Estado na busca da pacificação social.
A norma penal se destina a tutelar bens jurídicos que, por sua magnitude, estão a exigir uma proteção especial, quando se revelarem insuficientes as garantias oferecidas pelas demais áreas do direito. O direito penal atua “onde a proteção de outros ramos do direito possa estar ausente, falhar ou se revelar insuficiente, se a lesão ou exposição a perigo do bem jurídico tutelado apresentar certa gravidade, até aí deve se estender o manto da proteção penal, como ultima ratio regum. Não além disso” [6]. Eis o caráter fragmentário do ordenamento penal.
Pondera Fernando Capez:
A ciência penal (...), busca a justiça igualitária como meta maior, adequando os dispositivos legais aos princípios constitucionais sensíveis que os regem, não permitindo a descrição como infrações penais de condutas inofensivas ou de manifestações livres a que todos têm direito, mediante rígido controle de compatibilidade vertical entre a norma incriminadora e princípios como o da dignidade humana. [7]
Não se coaduna com os objetivos do direito penal a existência de um sistema normativo que exceda aos limites constitucionais de ingerência à vida privada. Assim, para se evitar intervenções desnecessárias, causadoras de males irreparáveis, ante à rigorosidade de seus métodos, seu campo de atuação é extremamente limitado, encontrando no texto constitucional suas balizas.
2.2.2 Finalidades da Pena
Conforme a opção do legislador, adota-se no Brasil a teoria unificada da pena que, partindo da crítica às soluções monistas (teorias absolutas e teorias relativas) [8], atribui a esta o caráter de retribuição e prevenção ao crime, o que se evidencia através do artigo 59 do Código Penal. [9]
A pena é a conseqüência jurídica principal que deriva da infração penal, dela se valendo nosso Sistema Penal, conforme mencionado, como forma de retribuição e prevenção da prática delitiva; representa ela a privação de bens jurídicos do autor do delito com o objetivo de garantir os bens jurídicos de toda a coletividade. Entende Frederico Marques que a pena “é a sanção aflitiva imposta pelo Estado, através de processo, ao autor de um delito, como retribuição de seu ato ilícito e para evitar novos crimes” [10].
A atividade RETRIBUTIVA da sanção penal consiste em punir todo aquele que, desrespeitando direito alheio, viole bem jurídico penalmente tutelado, visa, portanto, impor castigo ao delinqüente pelo mal por ele praticado.
Seu caráter PREVENTIVO tenciona evitar novos atentados à coletividade através da reeducação e ressocialização do condenado (PREVENÇÃO ESPECIAL), atuando, ainda, de forma social-pedagógica sobre toda a coletividade (PREVENÇÃO GERAL), visando salvaguardá-la de futuras violações. Diz Beccaria que “o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um delito já cometido”, mas tão-somente impedir que o réu continue a delinqüir, e que o castigo a ele imposto se preste a dissuadir seus concidadãos a fazer o mesmo.[11]
Ensina-nos Assis Toledo que, através da cominação de penas aos comportamentos típicos, visa o legislador atingir o sentimento de temor (intimidação) ou o sentimento ético das pessoas, a fim de evitar a conduta proibida (prevenção geral). Falhando essa ameaça exercida pelo Estado, transforma-se a pena abstrata em realidade concreta através da sentença penal, passando a sanção a atuar sobre a pessoa do condenado como “verdadeira expiação, meio de neutralização da atividade criminosa potencial ou, ainda, ensejo para recuperação, se possível, do delinqüente, possibilitando o seu retorno à convivência pacífica na comunidade dos homens livres” (prevenção especial).[12]
A principal característica do ordenamento jurídico penal é sua finalidade preventiva, ou seja, “antes de punir, ou com o punir, quer evitar o crime” [13]. Não obstante, o caráter intimidativo-pedagógico da pena exercido pela mera existência da cominação legal é de questionável eficácia. Com efeito, é indiscutível que criminosos potenciais não se deixam intimidar pela simples previsão legal de uma sanção penal, por mais rigorosa que esta possa ser.
Na criminologia, contesta-se veementemente a capacidade preventiva da pena, todavia, por mais que sua eficácia neste ponto seja, de fato, discutível, não se pode subestimar o poder intimidador exercido pelos tipos penais quando estes se fazem acompanhar por atuantes organismos estatais, efetivamente empenhados na persecutio criminis e adequadamente aparelhados para bem aplicar as sanções penais respectivas. Nesses casos, quando os tipos e suas penas deixam o campo da abstração, e passam a ser aplicados de forma efetiva e proporcional pelos órgãos estatais, seu caráter intimidativo também deixa o campo da ficção, para se tornar um poderoso meio de auxílio no combate à criminalidade. Enfim, não obstante justas, as sanções penais, como ensina Frederico Marques, “devem ser temidas para que a pena consiga atingir suas finalidades de prevenção geral”. [14]
2.3 O INEFICIENTE CONTROLE SOCIAL EXERCIDO PELO ESTADO
2.3.1 A ineficiência do Sistema Penal oficial
As crises enfrentadas pelo Sistema Penal do Brasil, bem como dos demais países da América Latina, não é nenhuma novidade. A deficiência dos três segmentos que o compõem (policial, judicial e de execução), com severas conseqüências para os direitos humanos, é relatada na crítica de Zaffaroni apud Alberto Lima[15], por meio de três características:
1) Seletividade do Sistema: o Sistema só atinge os estratos economicamente mais desfavorecidos da população;
2) Repressividade do Sistema: a intensidade das conseqüências opressoras vai além das previstas nas normas penais. O Sistema produz, no plano fático, violência, maus tratos, degradação da saúde física e psicológica aos aprisionados, violações estas que não decorrem das conseqüências legais da pena, mas sim da falta de cumprimento e ofensa das próprias normas. O Estado é ineficiente na administração e fiscalização do sistema penitenciário; não há a adoção de mecanismos que auxiliem na adequada execução de penas, de modo a mitigar o problema da reincidência;
3) Estigmatização do apenado: o Sistema impõe a toda sua clientela um sinal infamante, produzindo conseqüências que negam os princípios objetivos do próprio Sistema.
A manifesta ineficiência estatal na gestão do Sistema Repressivo no Brasil torna seus segmentos completamente desacreditados, o que acarreta o aumento da sensação de impunidade e do sentimento de insegurança da sociedade.
Outro fator que tem contribuído sobremaneira com o desmantelamento do Sistema é o aumento desenfreado das normas penais incriminadoras. Em qualquer situação de conflito social, a solução punitiva é somente uma das alternativas possíveis, só podendo ser aplicada quando a questão não possa ser solucionada por nenhuma outra via. Não obstante, o Estado, em resposta aos reclamos da sociedade por imediatas e enérgicas soluções aos conflitos sociais instalados, tenta demonstrar diligência por meio da mera feitura de normas incriminadoras – acontece um crime que mobiliza a opinião pública e, demagogicamente, exasperam-se as penas ou criam-se novos delitos (“técnica legislativa casuística”). Enfim, o Sistema Repressivo não atua de modo a combater efetivamente às causas do problema, agindo tão-somente sobre suas conseqüências, razão da frustração de seus objetivos.
O Direito Penal tem sido utilizado, de forma desmedida, como alternativa mais rápida e barata ao aparente combate a todos os tipos de conflitos sociais. Essa meta a ele atribuída está além de seus limites operativos. A constatação da ineficiência do Sistema Penal em combater todos os conflitos que ele se propõe, através da diária elaboração de leis penais, só vem a aumentar o descrédito da população nas instituições estatais, fomentando a sensação de impunidade e a insegurança da coletividade.
Assis Toledo leciona que:
O crime é um fenômeno social complexo que não se deixa vencer totalmente por armas exclusivamente jurídico-penais. Em grave equívoco incorrem, frequentemente, a opinião pública, os responsáveis pela Administração e o próprio legislador, quando supõem que, com a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se o problema da criminalidade crescente. Essa concepção do direito penal é falsa porque o toma como uma espécie de panacéia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, apesar do delírio legiferante de nossos dias.
Não percebem os que pretendem combater o crime com a só edição de leis que desconsideram o fenômeno criminal como efeito de muitas causas e penetram em um círculo vicioso invencível, no qual a própria lei penal passa, frequentemente, a operar ou como importante fator criminógeno, ou como intolerável meio de opressão. [16]
A utilização do Direito Penal como solução, a curto prazo, a todos os conflitos instalados, vem acarretando a hipertrofia do Sistema Penal no Brasil, fator este que reforça na mente da população a idéia de um direito penal meramente simbólico, motivando um comprometimento ainda maior da confiança da coletividade nas agências penais.
Inúmeras são as criticas ao atual Sistema Penal, no entanto, a adoção do abolicionismo, como proposto por alguns, não se revela uma medida coerente. Ainda que extremamente comprometida a eficácia do direito penal, face a todos os problemas que vem enfrentando o Sistema, conforme acima relatado, sua capacidade de contenção das tensões ocasionadas por comportamentos sociais inadequados é incontestável, o que recomenda que se ponha em prática medidas para seu aperfeiçoamento e não para sua extinção.
2.3.1.1 A seletividade do Sistema Penal
Como efeito da seletividade social, o Sistema Repressivo escolhe sua clientela entre as classes mais humildes. Os delinqüentes (opositores dos “homens de bem”) são os excluídos, aqueles que enfrentam problemas das mais variadas ordens – famílias desestruturadas, educação precária, falta de emprego, fome etc. –, e que, por conseqüência, estão mais propensos a ingressar ou se manter no submundo do crime. A guerra contra o crime se transforma na guerra contra os excluídos.
Pondera Valdomiro Vieira:
A etiquetagem, seletiva, pelo sistema penal (lei, polícia, justiça) atinge, principalmente àqueles que não tiveram acesso à educação, ainda que formal e, sempre estiveram fora da sociedade, marginalizados. A falácia dos meios de execução de penas, consiste paradoxalmente em reeducar, quem nunca teve acesso à educação e a ressocializar quem sempre esteve à margem da sociedade. [17]
Essa característica impregnada em nosso Sistema Repressivo, enquanto não combatida de forma enérgica pelo Estado através da implementação de políticas públicas básicas, continuará a representar um obstáculo intransponível na luta contra a criminalidade.
2.3.2 A ineficiência do Poder Executivo
O crescente aumento da criminalidade revela a crise da justiça na atualidade. Diversos fatores têm contribuído com este quadro; além daqueles já mencionados (seletividade, repressividade e hipertrofia do Sistema Penal, estigmatização do apenado, ineficiência do sistema carcerário etc.), podemos acrescentar ainda:
1. A omissão do Estado na implementação de políticas públicas básicas;
2. Ausência de ações estatais destinadas ao aparelhamento e estruturação dos órgãos que integram o Sistema Repressivo, de modo a viabilizar a completa e adequada aplicação das leis penais existentes.
2.3.2.1 Exclusão social e omissão estatal
A desorganização do Estado e a falência de seus serviços são altamente responsáveis pelo clima de guerra social vivido no país. Os protagonistas políticos, descompromissados com as causas sociais, pouco se empenham na efetiva resolução dos problemas estruturais que assolam nosso Brasil.
A marginalização econômica do país é extrema, sendo o oitavo no mundo em desigualdade social. Não é diferente com a marginalização do poder político. Presenciamos a decadência da democracia representativa, concentrando-se o poder nas mãos dos detentores do capital.
Em nosso país, os delinqüentes são em sua maioria quase absoluta pertencentes aos grupos mais atingidos pelo desemprego e mais marginalizados pelo sistema. O maior número de vítimas da violência, igualmente, encontra-se abaixo da linha da pobreza.
Os membros das classes sociais mais baixas não têm lugar no espaço público. A eles não são disponibilizados mecanismos eficientes de garantia a necessidades fundamentais e direitos sociais básicos. Sem acesso à moradia, saúde, educação e lazer, excluídos das relações de produção e consumo, encontram no crime a solução “eficiente” para sua sobrevivência.
Merton apud Grégore Moura, em estudo sobre as fontes sociais e culturais, motivadoras de comportamentos transviados (Teoria sobre a criminalidade), prega que a conquista aos objetivos culturais preconizados pelo sistema social não é disponibilizada aos membros das classes sociais mais baixas, os quais, por terem pouco acesso aos meios legítimos que conduzam ao êxito, acabam se utilizando de expedientes ilegítimos, porém mais ou menos eficientes. Imperiosa a transcrição de seus ensinamentos:
As estatísticas oficiais a respeito dos crimes mostram uniformemente proporções maiores nos estratos inferiores, (...) resulta da nossa análise que as maiores pressões para o comportamento transviado são exercidas sobre as camadas inferiores. Casos que podemos apontar nos permitem descobrir os mecanismos sociológicos responsáveis por essas pressões. Diversas pesquisas têm mostrado que áreas especializadas de vícios e crimes constituem uma reação ‘normal’ contra uma situação em que a ênfase cultural sobre o sucesso pecuniário tem sido assimilada, mas onde há pouco acesso aos meios convencionais e legítimos para que uma pessoa seja bem-sucedida. (...) É a falta de entrosamento entre os alvos propostos pelo ambiente cultural e as possibilidades oferecidas pela cultura social que produz intensa pressão para o desvio de comportamento. O recurso a canais legítimos para ‘entrar no dinheiro’ é limitado por uma estrutura de classe a qual não é inteiramente acessível em todos os níveis a homens de boa capacidade. Apesar de nossa persistente ideologia de ‘oportunidades iguais para todos’, o caminho para o êxito é relativamente fechado e notavelmente difícil para os que têm pouca instrução formal e parcos recursos. A pressão dominante conduz à atenuação de utilização das vias legais, mas ineficientes, e ao crescente uso dos expedientes ilegítimos, porém mais ou menos eficientes. [18]
Valdomiro Vieira, ao estudar esse fenômeno, pondera que o Estado vem utilizando o direito penal como resposta “às desordens causadas pela desregulamentação da economia, pela dessocialização do trabalho assalariado e pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes do proletariado urbano”, causando o aumentando da intervenção do aparelho policial e judiciário, “o que equivale a restabelecer uma verdadeira ditadura sobre os pobres”.[19]
A exclusão social é, conhecidamente, uma das principais causas do aumento desenfreado da criminalidade. Diante dessa realidade, o Estado, em vez de atuar na implementação de políticas públicas básicas, que representariam uma eficiente arma no combate a uma das CAUSAS desse mal, age apenas sobre suas CONSEQUÊNCIAS, tentando remediá-lo através da simples edição de novas normas repressivas, mais abrangentes ou mais severas. Essa postura vem contribuindo com a instalação de um Estado mais policial e penitenciário e menos social e igualitário, violador de preceitos basilares do Estado Democrático de Direito.
2.3.2.2 Negligência estatal no adequado aparelhamento e estruturação dos órgãos que integram o Sistema Repressivo
A completa desestruturação dos mecanismos que envolvem a Segurança Pública é uma realidade flagrante em nosso país, o que acarreta o comprometimento da adequada aplicação das normas penais, com a conseqüente frustração dos fins perseguidos pelo Direito Penal.
As Polícias não possuem estrutura mínima de atuação. Faltam armas, munições, viaturas, pessoal técnico, salário condigno, etc.
Os órgãos de execução penal são deficientes, insuficientes, inclusive, na realização do adequado acompanhamento e fiscalização do sentenciado.
O Sistema carcerário está a reclamar estabelecimentos penais adequados para o cumprimento das penas nos três regimes. No REGIME FECHADO e no SEMI-ABERTO não há vagas, em compensação, os estabelecimentos existentes encontram-se superlotados. Em geral as unidades policiais acomodam condenados que dividem entre si, e com presos cautelares, espaço físico onde sentar é quase impossível; sem contar que aproximadamente noventa por cento desse universo carcerário não têm garantido o acesso ao trabalho interno (embora assegurado em lei), permanecendo diuturnamente ocioso, com isso, inviabilizando o direito à remição. O REGIME ABERTO, por sua vez, inexiste na prática, uma vez que não há estabelecimentos próprios.
O ambiente degradante e estigmatizante dos estabelecimentos prisionais torna nula a possibilidade de ressocialização, servindo mais como ponto de reunião de cultura da delinqüência.
A absoluta falta de estrutura, de meios e de aparelhamento do Poder Público, conduz-nos à inarredável constatação de que a principal finalidade da execução penal – a ressocialização – de fato tornou-se uma utopia em nosso país. Ora, tratar o delinqüente é importante; sua ressocialização deve ser meta do Estado Democrático de Direito.
O caos da segurança pública brasileira não pode ser atribuído à falta de normas legais que tutelem os bens jurídicos alvo de violação; leis aqui existem aos montes, todavia, restam elas inviabilizadas pela ineficiência do Poder Executivo. Dessa forma, o Poder Executivo deve se preocupar com a eficácia das leis já existentes, e não com a elaboração de novas. Deve implantar mecanismos de efetivação das normas.
Renato Marcão, ao discorrer sobre a ineficiente atuação do Poder Executivo, argumenta que mesmo que as leis sejam boas, o Poder Executivo não vem disponibilizando os necessários mecanismos e estrutura para a completa aplicação das mesmas. Como exemplos disso, menciona o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Execução Penal e a Lei de Proteção a Testemunhas, os quais, não obstante se tratarem de legislação reconhecidamente avançada, tiveram sua eficácia comprometida pela omissão Estatal. Diz o ilustre Promotor paulista:
Antes de se implantar o necessário para a efetivação das Leis, muda-se o texto legal que está a exigir estrutura administrativa, protelando-se para nunca os investimentos indispensáveis à efetivação das disposições normativas.
Anos e anos depois, sem estrutura básica, hábil a proporcionar a aplicação da Lei, condena-se o Diploma, total ou parcialmente, justificando-se que ele "não tem alcançado seus objetivos". Ora, é pretender que um automóvel último modelo, da mais avançada tecnologia, funcione e atinja seu desiderato sem combustível.
E conclui ele:
Mesmo diante de uma boa legislação, o que a rigor não se tem produzido na última década, há o problema da inércia do Poder Executivo na estruturação dos mecanismos que envolvem a Segurança Pública em sentido amplo, e que passam pela desestruturação das Polícias; do Poder Judiciário e seus órgãos técnicos; do Ministério Público; do Sistema Carcerário a reclamar estabelecimentos penais adequados para o cumprimento das penas nos 03 (três) regimes, já que o fechado e o semi-aberto apresentam sérios problemas decorrentes da ausência de vagas, e o aberto inexiste na prática (não conta com estabelecimentos); a falta de pessoal técnico especializado etc, etc. etc.[20]
A morosidade, ineficiência e lentidão do Estado, conforme observado por Fernando Capez, “acaba por incutir na consciência coletiva a pouca importância que dedica aos valores éticos e sociais, afetando a crença na justiça penal e propiciando que a sociedade deixe de respeitar tais valores, pois ele próprio se incumbiu de demonstrar sua pouca ou nenhuma vontade no acatamento a tais deveres”.[21]
3 O AGIGANTAMENTO DO SISTEMA PENAL COMO AMEAÇA AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
3.1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A Constituição Federal estabelece em seu art. 1º, caput, constituir o Brasil um Estado Democrático de Direito. Este é o mais importante dispositivo de nossa Carta Magna, porquanto dele defluir todos os princípios fundamentais de nosso Estado.[22]
O Estado Democrático funda-se no princípio da soberania popular, segundo o qual todo o poder emana do povo, ou seja, o povo é o verdadeiro titular do poder, impondo-se sua participação efetiva e operante na coisa pública.
Segundo Canotilho, são princípios do Estado Democrático de Direito, dentre outros: a) princípio democrático; b) sistema de direitos fundamentais; c) princípio da justiça social; d) princípio da igualdade; g) princípio da legalidade; h) princípio da segurança jurídica.[23]
No Estado Democrático de Direito os direitos de liberdade e igualdade são tidos como direitos individuais fundamentais, os quais, por serem essenciais, necessariamente, são garantidos não apenas em lei, como os demais direitos, mas descritos na Lei Fundamental do país, fato que confere maior rigidez a sua disposição formal e, teoricamente, maior segurança ao seu exercício.
O direito de liberdade deve ser compreendido em seu aspecto político, sustentando-se uma liberdade individual em harmonia com a vontade coletiva, expressa na ordem social. O direito de igualdade, por sua vez, não se contenta com a mera igualdade jurídica, devendo esta vir acompanhada da igualdade de oportunidades.
A democracia há de buscar distribuir a todos, indistintamente, saúde, moradia, cultura, educação, trabalho, enfim, um nível de vida digno; não tolera a extrema desigualdade entre trabalhadores e classe dominante. Bem o disse Claude Julien apud José Afonso da Silva: “A democracia não pode resignar-se com os bidonvilles [24], os alojamentos insalubres, os salários miseráveis, as condições de trabalho miseráveis (...). A democracia pressupõe luta incessante pela justiça social”. [25]
Leciona o mestre José Afonso da Silva:
A Constituição brasileira de 1988 possui um regime fundado no princípio democrático, instituindo um Estado Democrático de Direito destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, livre, justa e solidária e sem preconceitos (art. 3º, II e IV), com fundamento na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político. Trata-se assim de um regime democrático fundado no princípio da soberania popular, segundo o qual todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes, ou diretamente (parágrafo único do art. 1º).[26]
Sendo o Brasil um Estado Democrático de Direito, conforme ensina Fernando Capez, seu direito penal há de ser “legítimo, democrático e obediente aos princípios constitucionais que o informam”, devendo o conteúdo dos tipos penais ser estabelecido em consonância com tais preceitos. [27]
No Brasil, o abismo social que separa pobres e ricos [28] causa nefastas conseqüências sociais, desde a violação aos direitos humanos até a vulnerabilidade da segurança pública. Os governantes, por sua vez, completamente alheios a essa problemática e descompromissados com o povo que os elegeu, omitem-se na adoção de mecanismos eficientes de combate às causas dessas moléstias sociais. O agente público, especialmente o agente policial, que trata com duas distintas realidades sociais, não se sente compromissado com o Brasil dos pobres, e, apesar de muitas vezes estar sujeito às mesmas dificuldades econômicas, reverte o descaso das elites em violência gratuita contra os excluídos.
Esse ambiente representa um terreno fértil à casuística e esquizofrênica atuação legiferante. Como visto alhures, a ineficiência do Estado na resolução dos conflitos sociais instalados, através de medidas de efetivo combate à exclusão social e à criminalidade, reflete-se no agigantamento do sistema repressivo; apela-se para o direito penal como remédio para todos os males – afinal de contas, como observado pelo Mestre Zaffaroni, fazer projetos de leis penais é mais barato, “a lei não custa”.[29] –, passando esse a atuar em situações que não lhe são autorizadas. Essa postura representa manifesta afronta aos princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito.
3.2 A HIPERTROFIA DO DIREITO PENAL
A hipertrofia ou inflação das normas penais é uma tendência comumente verificada nos Sistemas Penais contemporâneos, principalmente nos países periféricos. O direito penal passa a invadir campos da vida social antes não alcançados pelas sanções penais, as quais passam a ser utilizadas pelo Estado como resposta para quase todos os tipos de conflitos e problemas sociais.
Presenciamos no Brasil uma vertiginosa expansão das leis penais, que são produzidas, muitas vezes, sem seguir qualquer critério técnico-dogmático ou de política criminal. Leis incriminadoras vêm ao mundo, na maioria das vezes, de forma casuística, em resposta à pressão da sociedade e da mídia, quando, por exemplo, o cometimento de algum crime bárbaro causa grande comoção social. Um exemplo claro dessa situação é o caso da lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/90) [30], cujo art. 2º, § 1º, que vedava a progressão de regime aos crimes por ela regulados, acabou sendo extirpado do nosso ordenamento jurídico depois de declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal por afronta a princípios constitucionalmente consagrados. [31]
A missão do direito penal é tutelar os principais bens jurídicos da humanidade. A partir do momento em que a legislação criminal passa a ser tratada como um “remédio para todos os males”, abre-se espaço para o agigantamento do Sistema Penal. O impulso à maximização do sistema repressivo, como observa Salo de Carvalho, ocorre quando o direito penal passa a se preocupar “com outros bens jurídicos que não aqueles individuais que caracterizam o seu sistema minimalista originário”[32], passa-se a tentar justificar a intervenção penal não apenas para a proteção dos principais interesses do corpo social, estendendo-se esta às mais comezinhas querelas interindividuais.
Com os olhos voltados à preocupante realidade acima evidenciada, a Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (através do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira - CACO), em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim e com o Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia – MMFD, promoveu, em junho de 2004, em comemoração ao 40º aniversário da resistência ao golpe militar de 1964, o Seminário Globalização, Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito[33], que contou com a presença do grande jurista e pensador argentino Eugênio Raúl Zaffaroni.
Este importante evento jurídico, realizado na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mais precisamente no Largo do CACO [34], pautou-se pela declarada proposta de convocação da sociedade para a luta pela contenção do poder do Estado de punir, pela inversão dos rumos repressivos e autoritários das formações sociais do capitalismo pós-industrial e globalizado, pela preservação do Estado Democrático de Direito, pela redução dos danos e das dores provocados pelo sistema penal, pela reafirmação de um permanente compromisso com a liberdade. [35]
Com o brilhantismo e percuciência que lhe são peculiares, Zaffaroni, em incursão aos problemas sociais vivenciados pelos países periféricos, aponta a exclusão social como um dos principais fatores responsáveis pelo aumento desenfreado da criminalidade. Severas e merecidas críticas são lançadas sobre a postura nada compromissada adotada pelos políticos, diante de tal realidade. Observa ele que os protagonistas da política, ao se depararem com os crescentes reclamos do povo, tendem a simular que estão providenciando soluções para os grandes problemas sociais, e a forma mais simples que encontram para fazê-lo é através da edição de leis penais; todos os problemas sociais – a droga, a violência, a psiquiatria - tornam-se problemas penais. Diz o festejado penalista:
Nada acontece sem que algum legislador, algum deputado, algum senador não faça um projeto de lei penal. Não vão fazer projetos de leis administrativas. É mais complicado. Mas, lei penal qualquer idiota faz um projeto e uma mensagem ainda mais idiota que o projeto. Isso é muito barato. A lei não custa. E o sujeito tem cinco minutos na televisão. Para a vida e para a presença de um político isso é imprescindível. [36]
Em comentário ao desastroso fenômeno da maximização do sistema repressivo, acrescenta o insigne doutrinador portenho que:
A novíssima legislação penal que vai surgindo, por força da televisão, das mídias, dos jornais, daqueles que estão reclamando maiores penas, é uma legislação cada vez mais absurda, que vai criando um novo autoritarismo, que não é o velho autoritarismo de entre guerras. Não. Não é o fascismo, não é o nazismo, não é o stalinismo. (...) É um autoritarismo bobo, é um autoritarismo descolorido, é um autoritarismo que está se produzindo quase por inércia. É a expressão mais clara da pulsão de morte, se falarmos em termos freudianos. É muito mais clara do que as dos velhos autoritarismos. [37]
O aumento do sistema repressivo, através do agravamento de penas e da criação de novos tipos penais, não é solução para a pacificação de conflitos sociais. Essa concepção é defendida por Beccaria, segundo o qual :
Um dos maiores freios aos delitos não é a crueldade das penas, mas sua infalibilidade e, em conseqüência, a vigilância dos magistrados e a severidade de um juiz inexorável, a qual, para ser uma virtude útil, deve vir acompanhada de uma legislação suave. A certeza de um castigo, mesmo moderado, causará sempre a impressão mais intensa que o temor de outro mais severo, aliado à esperança de impunidade; pois os males, mesmo os menores, se são inevitáveis, sempre espantam o espírito humano, enquanto a esperança, dom celestial que frequentemente tudo supre em nós, afasta a idéia de males piores (...).[38]
O incremento da intervenção penal revela, em verdade, uma sociedade incapaz de lidar com o problema da criminalidade, por ausência de políticas públicas de inclusão social, aptas a diminuir a desigualdade e oportunizar ao povo condições dignas de sobrevivência.
Estamos vivenciando no Brasil a instalação de um Estado Punitivo Máximo e de um Estado Social Mínimo, os quais vêm acompanhados por mazelas sociais inconciliáveis com as garantias asseguradas constitucionalmente a todos os brasileiros. Somente com a reversão desse quadro, através da implementação de políticas públicas de inclusão social e com a limitação do poder repressivo estatal, encontraremos a reafirmação de um Estado Democrático de Direito.
Aos cidadãos brasileiros cabe o dever de lutar contra os excessos praticados pelo Estado em nome da pacificação social, fiscalizando seus representantes legalmente constituídos e deles cobrando uma postura atuante em prol do interesse coletivo. A nós estudiosos do direito, além das obrigações como cidadãos, cabe a missão de defender a adoção de mecanismos jurídicos que se prestem a deslegitimar a atuação desarrazoada e arbitrária dos poderes políticos – eis o mister dos princípios penais constitucionais, dos quais passaremos a tratar doravante.
4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS LIMINATORES DA INTERVENÇÃO PENAL
4.1 A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
A República Federativa do Brasil é regida por uma Constituição escrita (consubstanciada por um documento organizado e sistematizado) e rígida (que exigem um processo legislativo qualificado para que sejam alteradas). Dessa rigidez deflui o princípio da supremacia, segundo o qual o Texto Maior constitui-se em fundamento de validade das demais normas jurídicas, ocupando o ápice da pirâmide jurídica.
Nesse contexto, imperioso que as leis ordinárias obedeçam aos limites estabelecidos pela Constituição Federal, com destaque aos princípios dela emanados. Com efeito, como ensina José Frederico Marques, “o legislador ordinário, quando revela pela fonte formal da lei promulgada as normas penais, deve obedecer ao sentido político da Constituição vigente e obedecer às limitações que esta fixa e estabelece”. “Essa subordinação do Direito Penal aos mandamentos constitucionais é indeclinável, pois do contrário a lei promulgada será nula e ineficaz”. [39]
Mariângela Gomes defende que para o Poder Legislativo, no momento da elaboração das leis, surge a obrigação de observância aos direitos e garantias individuais constitucionalmente positivados. Isso não quer dizer que ao legislador seja vedada a elaboração de leis que limitem tais direitos; significa apenas que essas limitações devem encontrar respaldo no texto constitucional, “sob pena de um interesse hierarquicamente inferior do Estado se sobrepor a um direito individual constitucionalmente assegurado” [40]
4.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS
As normas jurídicas que compõem um ordenamento jurídico não convivem de forma isolada, devendo ser compatíveis umas com as outras, a fim de formar um todo, uno e harmônico. Tal Sistema possui como alicerces os princípios, que representam seu núcleo fundamental, servindo os mesmos de sustentáculo a toda construção normativa.
Os princípios representam a base de todo o ordenamento jurídico, instituindo disposições fundamentais definidoras da lógica e racionalidade do sistema legal. Servem de guia à elaboração das normas legais, bem como de critério interpretativo à compreensão das leis já existentes. Os princípios gerais de direito são, segundo Miguel Reale, as “bases teóricas ou as razões lógicas do ordenamento jurídico, que deles recebe o seu sentido ético, a sua medida racional e a sua força vital ou história”.[41]
Conforme lição de Celso Antônio Bandeira de Mello apud Fernando Capez:
Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa ingerência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”. [42]
Grégore Moura enfatiza a importância dos princípios jurídicos na atuação dos operadores do direito, atribuindo-lhes papel de destaque na contenção da inflação legislativa. Observa que “os princípios dão ao jurista a formação humana necessária para aplicar, interpretar, criar, isto é, fazer o verdadeiro Direito. Com efeito, o jurista deixa de ser mero burocrata do Direito (um matemático das leis)”. [43]
Os princípios constitucionais representam uma exigência de racionalização e legitimação imposta pela Constituição Federal para a elaboração e operacionalização do Direito Penal, ou seja, são balizas limitadoras da intervenção penal e norteadoras da adequada interpretação e da justa aplicação das normas penais. Imperiosa a obediências aos preceitos deles emanados a fim de se ter um Direito Penal efetivamente conformado nos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Os princípios fundamentais do Direito Penal podem ser encontrados expressa ou implicitamente no texto constitucional, impondo-se que a elaboração e a aplicação das normas penais estejam em consonância com o sentido de justiça e liberdade proposto pela Constituição Federal.
A doutrina pátria, seguindo as bases constitucionais, apresenta vários princípios penais, adotando cada autor uma enumeração distinta. Vejamos os princípios: 1) proporcionalidade; 2) intervenção mínima; 3) dignidade da pessoa humana (ou humanidade); 4) co-culpabilidade; 5) legalidade; 6) pessoalidade; 7) individualização da pena; 8) lesividade; 9) culpabilidade; 10) adequação, dentre outros.
Sem olvidar a importância de cada um desses princípios na proteção do princípio da liberdade, que permeia a estrutura do nosso Estado Democrático de Direito, neste trabalho nos dedicaremos tão-somente ao estudo dos quatro primeiros (proporcionalidade, intervenção mínima, dignidade da pessoa humana e co-culpabilidade), ante a amplitude dos três primeiros e a polêmica e atualidade do último.
4.2.1 Princípio da proporcionalidade
O princípio da proporcionalidade constitui diretriz a guiar a atuação estatal, fornecendo subsídios limitadores da intervenção penal, de modo que esta não represente a imposição de restrições arbitrárias à liberdade individual e contrárias aos direitos fundamentais. Relaciona-se com todos os princípios constitucionais penais, especificamente com o princípio da humanidade, porquanto representar salvaguarda dos direitos fundamentais, dos direitos sociais e econômicos e dos direitos individuais, especialmente a vida e a liberdade.
Tem seu principal campo de atuação, segundo Penalva apud Mariângela Gomes [44], no âmbito dos direitos fundamentais, representando um critério valorativo constitucional que vem a determinar o grau máximo de restrição a direitos que pode ser imposto pelo Estado ao indivíduo. Seus preceitos constituem proteção do indivíduo contra intervenções estatais desnecessárias ou excessivas, que representem gravame superior ao indispensável para a proteção dos interesses públicos. Acentua Zaffaroni que “a coerção penal deve reforçar a segurança jurídica, mas, quando ultrapassa o limite de tolerância na ingerência aos bens jurídicos do infrator, causa mais alarme social do que o próprio delito”.[45]
Consoante ensinamentos de Battaglini apud Frederico Marques, “se a pena encontra seu fundamento em um princípio ético de justiça (...) nesse mesmo princípio deve conter seus limites. O condenado precisa sentir que existe um equilíbrio entre o dano que produziu e o castigo que a sociedade lhe inflige, pois de outra forma o culpado se transformaria em vítima, e o credor em devedor”.[46]
O princípio da proporcionalidade representa um eficiente instrumento de equilíbrio e obtenção da justa medida entre a gravidade da lesão ao bem jurídico e a resposta do Estado, devendo ser observado tanto no momento da elaboração da norma penal, como na fase de individualização e aplicação da pena.
Esse entendimento é adotado por Rosimeire Ventura, a qual defende que o princípio da proporcionalidade, no direito penal, deve estar presente nas fases legislativa, judicial e executória. Argumenta a magistrada que, na fase de criação da lei penal, funciona o princípio como um limite a esta atividade estatal, restringindo a aplicação da pena aos casos de necessária defesa aos valores constitucionais e sociais mais relevantes. Na fase judicial, “o princípio em comento deve nortear a atividade do julgador, auxiliando na busca da justa medida e da pena que melhor atenda aos anseios do Estado democrático de direito”, atentando-se, para tanto, às peculiaridades do caso concreto, à personalidade e ao grau de culpabilidade do infrator. Na execução da pena também deve ser observado, reconhecendo-se, de acordo com o mérito do condenado, a possibilidade de progressão de regime, livramento condicional, indulto etc.[47]
Por meio do princípio da proporcionalidade, estabelece-se a necessária conexão entre as finalidades da pena com o fato criminoso praticado, não admitindo-se a fixação e a aplicação de sanção penal que não tenha relação valorativa com o fato, devendo a pena representar uma resposta proporcional ao mal praticado.
4.2.2 Princípio da intervenção mínima
O princípio da intervenção mínima vem previsto de forma implícita na Constituição Federal de 1988, constituindo-se em corolário do Estado Democrático, na medida em que estabelece limites ao poder do Estado de ingerência na esfera de liberdade do cidadão. Limita o direito de punir do Estado tão-somente às hipóteses de extrema necessidade, ou seja, aos casos em que os demais ramos do direito revelarem-se insuficientes para a solução do conflito.
Em um Estado Democrático de Direito, alicerçado na dignidade humana e no bem estar social, não há que se permitir criminalizações arbitrárias, ainda que em nome de uma suposta maioria.
Este princípio está estreitamente ligado ao princípio da proporcionalidade – que veda a prática de excessos no Direito Penal –, e dele defluem duas características ínsitas ao Direito Penal, quais sejam: a subsidiariedade e a fragmentariedade.
O caráter subsidiário do Direito Penal impõe que este seja utilizado como ultima ratio, ou seja, só deve-se lançar mão da tutela criminal quando os demais ramos do direito mostrarem-se insuficientes na proteção dos bens jurídicos ameaçados. Impõe-se a aplicação de sanções penais, como assinala Frederico Marques, quando as sanções extrapenais são ineficazes para a reparação do mal praticado, exigindo-se do Estado uma reação mais enérgica e rigorosa, a fim de se impor ao delinqüente a punição merecida. [48]
Consoante doutrina de Francisco de Assis Toledo, o Direito Penal deve estar presente tão-somente quando os outros ramos do direito encontrarem-se ausentes ou revelarem-se falhos ou insuficientes, quando a lesão ou ameaça a bem jurídico tutelado apresentar certa gravidade, enfim, reclama-se uma resposta jurídico-penal como ultima ratio regum. [49]
Já a fragmentariedade determina que a proteção do Direito Penal não deve ser estendida a todos os bens jurídicos, mas apenas àqueles mais importantes, essenciais à vida do homem em sociedade.
Ao tratar sobre o caráter fragmentário do direito penal, ensina Zaffaroni:
Não é um sistema contínuo – como o direito civil, por exemplo –, e sim um sistema descontínuo, alimentado somente por aquelas condutas antijurídicas em que a segurança jurídica não parece satisfazer-se com a prevenção e reparação ordinária, posto que, em caso contrário, as condutas antijurídicas permaneceriam reservadas a cada um dos restantes âmbitos específicos do direito (civil, comercial, laboral, administrativo etc.). Este processo seletivo de condutas antijurídicas merecedoras de coerção penal é matéria de permanente revisão, sendo manifesta a tendência à redução na política criminal dos países centrais, que propugnam abertamente a “descriminalização” ou “despenalização” de inúmeras condutas.”[50]
Para Beccaria:
Toda pena que não derive da necessidade absoluta, diz o grande Montesquieu, é tirânica; proposição essa que pode ser assim generalizada: todo ato de autoridade de homem que não derive da necessidade absoluta é tirânico. Eis, então, sobre o que se funda o direito do soberano de punir os delitos: sobre a necessidade de defender o depósito do bem comum das usurpações particulares, e tanto mais justas são as penas quanto mais sagrada e inviolável é a segurança e maior a liberdade que o soberano garante aos súditos.[51]
Assim, nem toda a conduta contrária ao direito justifica a atuação do direito estatal de punir, mas somente aquela que, no dizer de Frederico Marques, “atinja, ou possa atingir, a própria estrutura da vida social, ou dificultar a consecução de seus fins.
4.2.3 Princípio da Dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana, também chamada princípio político constitucionalmente conformador, indica a ideologia nuclear da Constituição, servindo, neste aspecto, como sua fundamentação ética. É o retrato do que a nação busca efetivar, quais os seus ideais mais profundos, a base de sustentação normativa da Carta Fundamental.
A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece em seu Preâmbulo os “valores supremos” a nortearem a condução do Estado brasileiro, impondo que seja assegurado aos seus concidadãos “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”. Em seu artigo 1º, inciso III, prevê como princípio reitor do nosso Estado Democrático de Direito “a dignidade da pessoa humana”, ao qual deve estar vinculada toda e qualquer atuação estatal.
A dignidade da pessoa humana, enquanto princípio constitucional, põe em evidência o ser humano, intrinsecamente considerado, para o qual deve convergir todo o esforço de proteção pelo Estado, através de seu ordenamento positivo. Essa dignidade deve revelar o conteúdo finalístico da atuação estatal.
O cometimento de um crime, num Estado democrático de direito, legitima o Estado a intervir, entretanto, não o permite atingir a dignidade do autor do delito, enquanto pessoa humana. Como bem acentuou Marques, “a pena é um conceito ético e por isso não pode contribuir para o aviltamento da personalidade humana”.
Um Estado democrático de direito, onde os direitos fundamentais do ser humano constituem valores reconhecidos e tutelados pela ordem jurídica, não se compatibiliza com sanções penais de “diminuem o homem, degradam o seu caráter e atentam contra a consciência moral” [52] Com efeito, as penas e as conseqüências dela advindas, além de serem proporcionais ao mal praticado, devem ter seus limites traçados pela exigência éticas de respeito à dignidade da pessoa humana, não se admitindo violações que não decorram das efeitos legais da pena.
4.2.4 Princípio da co-culpabilidade
O denominado princípio da co-culpabilidade é um tema, não obstante polêmico e atual, pouco discutido pela doutrina pátria e alienígena, o que não retira a importância dos fundamentos que lhe servem de alicerce, razão de sua inserção neste despretensioso estudo.
Grégore Moura dá a seguinte conceituação à co-culpabilidade:
A co-culpabilidade (...) é o reconhecimento da parcela de responsabilidade que tem o Estado no cometimento de delitos praticados por pessoas que têm menor poder de autodeterminação em virtude de suas condições sociais. Essa diminuição de autodeterminação advém da ineficiência estatal em gerar oportunidades para essas pessoas, ou seja, decorrem da sua exclusão social e da desigualdade que ela gera. [53]
A aplicação do princípio da culpabilidade decorre do reconhecimento da exclusão social ínsita ao Estado, responsabilizando-o, indiretamente, por este fato, em virtude de sua reiterada negligência no cumprimento de seus deveres, principalmente aqueles relacionados à exclusão socioeconômica. A co-culpabilidade propõe uma análise social do delito, no sentido de que sendo o crime um fato social, na aplicação e execução da pena devem ser consideradas essas condições socioeconômicas, bem como o ambiente em que vive o indivíduo.
Não se trata de uma responsabilidade penal do Estado, como o nome sugere, mas de uma menor reprovação social do cidadão que se encontra em condições socioeconômicas adversas. Seus preceitos estabelecem que o Estado deve proporcionar menor reprovabilidade aqueles acusados que se encontram em situação de hipossuficiência (se essa condição tiver alguma influência na prática delitiva), partindo-se do pressuposto que a vontade humana do agente, embora seja livre, pode, na maioria das vezes, estar viciada pelas condições adversas em que vive, o que gera, por conseguinte, um poder de escolha mais restrito, ensejando menor reprovabilidade.
Conforme leciona Rogério Greco apud Grégore Moura:
A teoria da co-culpabilidade ingressa no mundo do direito penal para apontar e evidenciar a parcela de responsabilidade que deve ser atribuída à sociedade quando da prática de determinadas infrações penais pelos seus ‘supostos cidadãos’. Contamos com uma legião de miseráveis que não possuem teto para brigar-se, morando em baixo de viadutos ou dormindo em praças ou calçadas, que não conseguem emprego, pois o Estado não os preparou e os qualificou para que pudessem trabalhar, que vivem a mendigar por um prato de comida, que fazem uso de bebida alcoólica para fugir à realidade que lhes é impingida, quando tais pessoas praticam crimes, devemos apurar e dividir essa responsabilidade com a sociedade.[54]
Segundo o mencionado autor, a co-culpabilidade reconhece a ineficiência do Estado na promoção da dignidade humana, tentando minimizar os efeitos da exclusão social decorrentes da desigualdade de oportunidades. Sua aplicação visa, portanto, diminuir as desigualdades, aproximando o direito da almejada igualdade material, consubstanciada na igualdade de condições.
Sustenta ele que a adoção do princípio em comento pelo ordenamento jurídico pátrio, através de sua positivação no Código Penal, representará uma mitigação dos efeitos da exclusão social impingidos pelo Sistema Penal. Sugere que a co-culpabilidade seja inserida em nosso Estatuto Repressivo como uma causa genérica de diminuição de pena, a fim de que se permita uma maior individualização da pena aplicada.
CONCLUSÃO
O crescente aumento da criminalidade revela a crise da justiça na atualidade. Diversos fatores têm contribuído com este quadro, dentre os quais: a) a omissão do Estado na implementação de políticas públicas básicas; b) a ineficiência do Estado em administrar e fiscalizar o sistema penitenciário, propiciando a adoção de mecanismos que auxiliem na adequada execução de penas, de modo a mitigar o problema da reincidência e c) a utilização do Direito Penal como solução, a curto prazo, a todos os conflitos instalados, acarretando a hipertrofia do Sistema Penal.
Devido ao evidente fracasso das instituições estatais, vem vigorando no Brasil a “técnica legislativa casuística”: o cometimento de um crime mobiliza a opinião pública e, demagogicamente, exasperam-se as penas ou criam-se novos delitos; o apelo ao sistema repressivo transforma-se no único instrumento capaz de corrigir as distorções da sociedade, cuja origem provém do fracasso do sistema gestor.
Diante da ineficiência do Estado em estabelecer programas de política social e criminal que não se reduza à política penal, recorre o legislador ao Direito Penal como remédio para todos os males, acarretando, por conseqüência, sua atuação em ambientes e situações que não lhe são autorizadas.
O Direito Penal, em verdade, não se presta a solucionar os problemas gerados pela ineficiência estatal na adoção de mecanismos de combate ao crime. A pena não é solução para pacificação de conflitos sociais. O recrudescimento das penas e a sua utilização como medida não excepcional de intervenção estatal, em substituição à adoção de políticas públicas de inclusão social, revela tão-somente a incapacidade do Estado em lidar com o problema da criminalidade, fomentando a idéia de uma direito penal meramente simbólico e a conseqüente sensação de insegurança da população.
Diante dessa preocupante realidade, imperiosa a contenção da ação arbitrária do Estado através da restrição da utilização do sistema repressivo. Só assim encontraremos a reafirmação de um Estado Democrático de Direito.
Os princípios constitucionais penais revelam-se eficientes instrumentos de limitação e correção dessas distorções. Eles compõem nosso Estado Democrático de Direito, tratando-se de mecanismos de legitimação e racionalização do Direito Penal, os quais impõem que a atuação estatal seja exercida em sintonia com os direitos fundamentais do ser humano, mormente o direito à vida, à liberdade e à dignidade, sob pena de se tornar ilegítima e arbitrária. Tais limitações se operam não apenas no momento da feitura de leis penais como também quando da atuação judicial relativa à interpretação das normas criminais já existentes.
Urge levar até as últimas conseqüências a eficiência limitadora dos princípios constitucionais penais, partindo-se do pressuposto de que uma das missões básicas do Direito Penal é a de tutelar bens jurídicos, mas de forma subsidiaria e fragmentaria, fazendo incutir na consciência de nossos governantes que a adoção de políticas públicas de inclusão social se revela uma forma de reação social à criminalidade muito mais eficaz que a pena.
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[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 2. ed. rev. at. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 60-62.
[2] GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 19.
[3] op.cit. Nota 1, p. 70-80.
[4] LIMA, Alberto Jorge Correia de Barros. Limites Constitucionais do legislador e do juiz na incriminação e descriminação de condutas – Imposição dos princípios constitucionais penais. Recife: UFP, 2006. 156 p. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco, 2006. p. 14-15.
[5] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. vol. 1: Parte Geral. p. 1.
[6] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 14.
[7] op.cit. Nota 5. p. 1.
[9] “Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”.
[10] MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. 1. ed. Campinas: Bookseller, 1999. vol. 3. p. 136.
[11] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 62.
[12] op.cit. Nota 6. p. 3.
[13] id. p. 3.
[14] op.cit. Nota 10. p. 148.
[15] op.cit. Nota 4.
[16] op.cit. Nota 6. p. 5
[17] VIEIRA, Valdomiro. O pragmatismo social, dogmática penal e a proporcionalidade do princípio da humanidade. Curitiba: UFP, 2006. 140 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, 2006. p. 77.
[18] MOURA, Grégore. Do Princípio da Co-Culpabilidade no Direito Penal. Niterói: Impetus, 2006. p. 50-52.
[19] op.cit. Nota 17. p. 74.
[20] MARCÃO, Renato. Apontamentos sobre influências deletérias dos Poderes Legislativo e Executivo em matéria penal Jus Navigandi. [online]. Disponível na Internet: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3602.(16 mar. 2007).
[21] op.cit. Nota 5. p. 2-3.
[22] “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político”.
[24] Com o grande desenvolvimento das cidades e das formas de vida urbana, observa-se um aumento vertiginoso da migração da população rural para as cidades. Uma parte da população que chega às cidades é forçada a se distribuir nos locais mais miseráveis e abandonados, invadindo propriedades alheias ou zonas com condições urbanas inadequadas. Isto deu lugar aos chamados bidonvilles das cidades francesas ou argelinas, as chabolas (barracas de madeira) ou chabolismo espanhol, as famosas favelas brasileiras, os ranchos venezuelanos, etc. Esses assentamentos são para alguns o último degrau de uma dolorosa decida na escala social. (ABIKO, Alex Kenya, ALMEIDA, Marco Antônio Plácido de, BARREIROS, Mario Antônio Ferreira. Urbanismo: história e desenvolvimento. Escola Politécnica da USP/ Departamento de Engenharia de Construção Civil.[online]. Disponível na Internet: http://publicacoes.pcc.usp.br/PDF/ttpcc16.pdf .(30 abr. 2007).
[25] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9. ed., São Paulo: Malheiros. 1993. p.117.
[27] op.cit. Nota 5. p. 9-10.
[28] O Brasil é um dos países que mais concentra renda em minoritários seguimentos em todo o mundo.
[29] SEMINÁRIO GLOBALIZAÇÃO, SISTEMA PENAL E AMEAÇAS AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. 16 e 17 jun. 2004, Rio de Janeiro. Globalização, Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 17-25.
[30] A aprovação da lei 8.072, em 1990, foi impulsionada pelo caso do seqüestro dos empresários Roberto Medina e Abílio Diniz. Em seu texto original, a lei não previa o homicídio como crime hediondo, todavia, com o assassinato da atriz Daniela Perez, filha da escritora de novelas Glória Perez, em 1992, o homicídio foi incluído no rol daqueles crimes. Já a tortura entrou na lei em 1997, resultado da veiculação de cenas de tortura e assassinato por policiais na Favela Naval, em Diadema, Grande São Paulo, no mesmo ano.
[31] O Plenário do Supremo Tribunal Federal, em julgamento ao HC 82.959, concluído em 23/2/2006, declarou a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, que determinava o cumprimento da pena privativa de liberdade em regime integralmente fechado para os crimes hediondos e a ele equiparados. A declaração de inconstitucionalidade do referido dispositivo apoiou-se na ofensa aos PRINCÍPIOS DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA, PROPORCIONALIDADE e HUMANIDADE. A maioria dos ministros entendeu que o legislador, ao proibir abstratamente a possibilidade de progressão aos condenados por crimes hediondos e equiparados, acabou retirando qualquer caráter substancial da garantia da individualização da pena.
[32] op.cit. Nota 29. p. 117-118.
[33] id.
[34] O Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a que os estudantes carinhosamente chamam CACO, esteve envolvido em importantes movimentos políticos em prol do Direito e dos princípios democráticos, tendo feito história na luta de resistência contra à opressão e à repressão da ditadura militar, representando o símbolo maior dos estudantes da geração de 68. Sobre a história do CACO vide: http://www.cacofnd.org.br/caco/historia.asp.
[35] op.cit. Nota 29. p. VII.
[36] op.cit. Nota 29. p. 17-25.
[37] id. p. 26.
[38] op.cit. Nota 11. p. 91-92.
[39] op.cit. Nota 10. p. 58.
[40] op.cit. Nota 2, p. 30.
[41] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 313.
[42] op.cit. Nota 5. p. 11.
[43] op.cit. Nota 18. p. 8.
[44] op.cit. Nota 2, p. 35
[45] op.cit. Nota 1, p. 95.
[46] op.cit. Nota 10. p. 152.
[47] LEITE, Rosimeire Ventura. Princípio da Proporcionalidade no Direito penal. IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. [online]. Disponível na Internet: www.ibccrim.org.br . (10 fev. 2007).
[48] op.cit. Nota 10. p. 139.
[49] op.cit. Nota 6. p. 14.
[50] op.cit. Nota 1, p. 101.
[51] op.cit. Nota 11. p. 42.
[52] op.cit. Nota 10. p. 136.
[53] op.cit. Nota 18. p. 60.
[54] op.cit. Nota 18. p. 41.
Graduada em Direito e pós-graduada em Direito Penal e Direito Processual Penal. Conciliadora do Tribunal de Justiça de Sergipe. Atuou como Assessora de Desembargador no Tribunal de Justiça de Mato Grosso.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Andressa Piazzi da. A hipertrofia do Direito Penal como ameaça ao Estado Democrático de Direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jul 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47029/a-hipertrofia-do-direito-penal-como-ameaca-ao-estado-democratico-de-direito. Acesso em: 22 nov 2024.
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