RESUMO: A ato de recebimento da denúncia sempre foi encarado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores como mero despacho de expediente que, por não possuir conteúdo decisório, prescindia de motivação, possibilitando, inclusive, a prolação de “pseudodecisões” - aquelas que nada decidem. Atualmente, o entendimento vem sendo superado por precedentes do Superior Tribunal de Justiça e, com o advento do Novo Código de Processo Civil, sobretudo à luz do art. 489, § 1º, inciso III, o cenário tende a ser cada vez mais refratário à prolação de “pseudodecsiões”.
PALAVRAS-CHAVE: recebimento da denúncia; motivação; pseudodecisão, Novo Código de Processo Civil.
1- Introdução
Não é de hoje que a doutrina processual penal, à luz do art. 800 do CPP, sustenta que, no curso da ação penal e antes de proferida a sentença, os atos dos juízes podem ser classificados como decisões interlocutórias mistas, decisões interlocutórias simples e despachos de mero expediente.
Nas palavras de Fernando da Costa Tourinho Filho, as decisões interlocutórias simples “são soluções dadas a certos temas, a certos assuntos, questões que sucedem, acontecem, no curso de um procedimento, sem, contudo, encerrá-lo”. Por outro lado, ainda segundo o autor, as decisões interlocutórias mistas “tem a força de trancar a relação processual, sem julgamento de mérito – e nesse caso são denominadas de terminativas -, ou, então, de encerrar uma fase do procedimento – decisão não-terminativa -, de que é exemplo a pronúncia” (TOURINHO FILHO. Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 3. 15ª Edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 79).
Diversamente, os despachos de mero expediente diferenciam-se das decisões interlocutórias por não possuírem conteúdo decisório. São, assim, atos singelos relacionados à movimentação processual (TOURINHO FILHO. Fernando da Costa. op. cit. p. 78), tal como a abertura de prazo para manifestação das partes ou a designação de audiência.
Nesse compasso, considerando que as decisões interlocutórias, diferentemente dos despachos, possuem nítido conteúdo decisório, sobre elas incide a regra do art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, ao prescrever que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”.
A motivação das decisões judiciais serve para o controle da racionalidade da decisão (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade Constitucional. Vol. 1. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 195), possibilitando a análise da compatibilidade das premissas fáticas e jurídicas utilizadas pelo Estado-juiz com o ordenamento jurídico. Diz-se, ainda, que a regra possui uma função endoprocessual, permitindo o controle da decisão judicial pelas instâncias superiores, bem como uma função extraprocessual, elemento que confere a possibilidade de controle da decisão judicial por toda a sociedade (DIDIER, Fredie; BRAGA, Paula; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 11ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 322 e 333).
Feitas essas pequenas digressões, parte-se para a análise da necessidade, ou não, de fundamentação do ato judicial que recebe a denúncia ou queixa.
2 – Recebimento da denúncia e fundamentação
Quem atua no âmbito criminal sabe que, normalmente, o ato de recebimento da denúncia limita-se à exposição de frases genéricas. Não é incomum que o aplicador do direito depare-se com “pseudodecisões”, tais como “Presentes os requisitos do art. 41 do CPP, recebo a denúncia. Cite-se o réu para apresentar resposta à acusação, nos termos do art. 396 do CPP”, ou, de forma ainda mais sucinta, com o brocado “recebo a denúncia. Cite-se o réu”.
Tais “pseudodecisões” foram, por muito tempo, consideradas válidas pelo Supremo Tribunal Federal, a exemplo da seguinte passagem extraída do voto proferido pelo Min. Celso de Mello no julgamento do HC nº 93.056/PE, oportunidade na qual afirmou que “o juízo positivo de admissibilidade da acusação penal, ainda que desejável e conveniente sua motivação, não reclama, contudo, fundamentação”. Diversos são os precedentes no Superior Tribunal de Justiça (v.g. HC n 16.380, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca) e do STF (v.g. RHC nº 97.598/SC, Rel. Min. Ellen Graice e HC nº 95.354/SC, Rel. Min. Gilmar Mendes) que dispensam qualquer fundamentação no ato de recebimento da denúncia, embora haja precedente isolado da do Pretório Excelso em sentido contrário (RE nº 456.673/CE, Rel. Min. Cezar Peluso).
Ao assim decidir, as Cortes Superiores equiparavam, ainda que tacitamente, o ato de recebimento da denúncia a meros despachos de expediente, situação incompatível com a natureza jurídica do ato de recebimento da denúncia – verdadeira decisão interlocutória, como se verá adiante – e, ainda, com os efeitos que dela decorrem.
É que o recebimento da denúncia acarreta inúmeros efeitos, seja de ordem jurídica ou social.
Num primeiro momento, o recebimento da denúncia constitui causa interruptiva da prescrição (art. 117, inciso I, do Código Penal). E assim o é porque significa o primeiro momento em que o Estado-juiz reconhece a existência de lastro-probatório mínimo da prática de um crime. Ou seja, é a partir do recebimento da denúncia – e não com o mero oferecimento da peça acusatória pelo Ministério Público – que passa o então acusado a figurar como réu.
Da mesma forma, o recebimento da denúncia serve como marco final para a incidência do instituto do arrependimento posterior (art. 16 do Código Penal). Assim, uma vez recebida a denúncia, fica impossibilitada a redução da pena pela reparação espontânea do dano ou restituição da coisa.
No âmbito processual, o recebimento da denúncia é o momento de admissibilidade da pretensão acusatória, oportunidade na qual o juiz avalia a presença dos pressupostos processuais e das condições da ação (com as críticas efetuadas por LOPES JR., Aury. op. cit. p. 339) e, “ausente qualquer uma delas, deve o magistrado rejeitar a peça acusatória, declarando o autor carecedor de ação, nos termos do art. 395, II e III, do CPP”. (BRASILEIRO, Renato. Curso de Processo Penal. Niterói: Impetus, 2013, p. 161). Dessa forma, o recebimento da denúncia significa um juízo positivo sobre a viabilidade da acusação, de modo que há efetivo conteúdo decisório.
Por outro lado, não se pode desprezar a estigmatização social que decorre da condição de réu. Se durante ambas as fases da persecução criminal (seja na fase investigativa ou na fase do processo propriamente dito) há uma gradativa modificação da condição do sujeito passivo (BRASILEIRO, Renato. op. cit. p. 1221), passando de investigado, indiciado (após a formalização do indiciamento), denunciado e réu, e sendo certo que cada uma dessas qualidades de sujeição trazem consigo cargas valorativas mais gravosas, é certo que a condição de réu pressupõe a existência de um gravame social mais elevado, gerando, portanto, maior estigmatização social.
A doutrina também não destoa de tal entendimento. Fernando da Costa Tourinho Filho, ao dissertar sobre o conceito de decisão, afirma que “decisões, significando ato de decidir, são as soluções dadas pelos Órgãos Jurisdicionais às questões que surgem no transcorrer de um processo. Sua importância está na dependência do relevo da discussão suscitada. Basta dizer que o ato por meio do qual o Juiz recebe a denúncia é uma decisão”. (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. op. cit. p. 78).
No mesmo sentido, Fernando Capez sustenta que “o recebimento da denúncia ou queixa implica escolha judicial entre a aceitação e a recusa da acusação, tendo, por essa razão, conteúdo decisório, a merecer adequada fundamentação”. (CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 14ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 159).
Como adverte Renato Brasileiro “considerando que essa decisão representa o marco deflagrador da persecutio criminis in iudicio, além de ser causa de interrupção da prescrição e de fixação da competência pela prevenção, elevando o status do agente de indiciado a acusado, não há como negar que se trata de importante decisão judicial, e não de mero despacho, daí por que é indispensável a fundamentação por parte da autoridade judiciária competente, sob pena de violação ao art. 93, inciso IX, da Constituição Federal”(BRASILEIRO, Renato. op. cit. p. 1285).
Importante citar, ainda, as críticas muito bem abalizadas efetuadas por Alexandre Moraes da Rosa e Aury Lopes Jr. em artigo intitulado “Quando o acusado é VIP, o recebimento da denúncia é motivado” (disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-nov-14/limite-penal-quando-acusado-vip-recebimento-denuncia-motivado. Acesso em: 24 de julho de 2016).
Citados autores apontam, com razão, grande incongruência nas decisões do STF proferidas em relação a processos de competência originária, nos quais há extensa motivação acerca do recebimento da denúncia, e nos casos oriundos da justiça de primeira instância, quando o STF equipara o recebimento da denúncia a um despacho de mero expediente e, portanto, de motivação prescindível. Apenas a título de exemplo, o voto proferido pelo Min. Teori Zavascki quando do recebimento da denúncia contra o Deputado Federal Eduardo Cunha no bojo do Inquérito nº 4.146/DF possui cerca de 63 (sessenta e três) laudas e, em muitos trechos, estabelece contornos detalhados acerca da viabilidade da acusação, situação que demonstra a procedência das críticas efetuadas pelos autores.
3 - Jurisprudência atual e aplicação do NCPC
Atualmente, as críticas doutrinárias começam a reverberar nas Cortes Superiores, sobretudo no Superior Tribunal de Justiça. Começam a surgir precedentes naquele Sodalício no sentido de que o ato de recebimento da denúncia possui efetivo caráter decisório. Contudo, por tratar-se de juízo de delibação, prescinde de fundamentação complexa, a exemplo do quanto decidido no bojo do AgRg no AREsp 440.087/SC, Rel. Min. Laurita Vaz e no AgRg no HC nº 345.976/SC, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro.
Sobre essa temática, inclusive no tema das “pseudodecisões”, emblemático o julgamento o HC nº 59.759/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca.
No caso analisado pelo Superior Tribunal de Justiça, o acusado fora denunciado pelo Ministério Público pela prática do crime de furto (art. 155 do Código Penal), pois teria supostamente subtraído dois celulares de duas vítimas numa lanchonete. A denúncia narrou exaustivamente a conduta do réu e, quando do recebimento da denúncia, foi proferida a seguinte decisão:
“R.h.
Recebo a denúncia, pois a peça acusatória preenche todos os requisitos do art. 41 do CPP.
Cite-se o acusado para responder a acusação no prazo de dez dias, por escrito, ciente de que não havendo protocolização em juízo da peça defensiva os autos serão remetidos ao Defensor Público.
Transcorrido o prazo sem manifestação, certificar e, após, intimar o Defensor Público, para apresentação da resposta.
Notifique-se o Ministério Público.
Cumpra-se.”
Atento a tudo o que exposto até o momento, ressaltou o Min. Reynaldo Soares da Fonseca que “o julgador, nem mesmo de forma concisa, ressaltou a presença dos requisitos viabilizadores da ação penal. Limitou-se a dizer: ‘Recebo a denúncia, pois a peça acusatória preenche todos os requisitos do art. 41 do CPP’”, sem demonstrar, nem minimamente, o que o teria levado a acolher a pretensão ministerial”. Ao fim, a turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso ordinário em habeas corpus para anular o processo desde o recebimento da denúncia.
Trata-se de julgamento louvável em que o STJ, superando o reducionismo de tratar o recebimento da denúncia como mero despacho de expediente desprovido de maior gravidade, enfrentou o problema das milhares de “pseudodecisões” de recebimento da denúncia que sequer apontam elementos concretos a autorizar o início da persecução penal em juízo.
Com o advento do Novo Código de Processo Civil, acredita-se que decisões do mesmo jaez daquela proferida pelo STJ no bojo do HC nº 59.759/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca serão cada vez mais recorrentes, sobretudo a teor do art. 489, § 1º, inciso III,do NCPC.
Primeiramente, apesar das procedentes críticas quanto à incorporação de institutos do processo civil ao processo penal, como o faz Aury Lopes Jr. (LOPES JR., Aury. op. cit. p. 27), prepondera na jurisprudência a possibilidade, à luz do art. 3º do CPP, da aplicação subsidiária de institutos previstos no Código de Processo Civil, valendo citar, a título de exemplo, o RHC nº 57.488/RS, Rel. Min. Ribeiro Dantas, EREsp nº 1.218.726/RJ, Rel. Min. Felix Fischer e o HC nº 288.640/MG.
Assim, uma vez fixada a possibilidade, de acordo com a jurisprudência majoritária, de aplicação de institutos do Código de Processo Civil no âmbito do processo penal, o certo é que, agora com tanto mais razão, a motivação da decisão de recebimento da denúncia, afastando-se das chamadas “pseudodecisões”, é medida imprescindível à regularidade da marcha processual.
É que o art. 489, § 1º, inciso III, do NCPC estabelece que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão que invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão.
Sobre o dispositivo em comento, Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael de Oliveira manifestam o seguinte:
“É bastante comum o operador do direito deparar-se, no seu dia-a-dia, com decisões do tipo ‘presentes os pressupostos legais, concedo a tutela provisória’, ou simplesmente ‘defiro o pedido do autor porque em conformidade com as provas produzidas nos autos’, ou ainda ‘indefiro o pedido, por falta de amparo legal’.
Essas decisões não atendem à exigência da motivação. Trata-se de tautologias ou, numa irreverente imagem trazida por Teresa Wambier, trata-se de decisão judicial tipo ‘vestidinho preto’ – que, exatamente por isso, não se pode considerar fundamentada.” (DIDIER, Fredie; BRAGA, Paula; OLIVEIRA, Rafael. op. cit. p. 342).
Embora a invalidade das chamadas “pseudodecisões” já pudesse ser extraída da regra constitucional da motivação inscrita no art. 93, inciso IX, da CF, como inclusive afirmam os autores acima citados, o dispositivo pode ser utilizado para inviabilizar, de maneira mais direta, a fundamentação de atos judiciais que, de tão genéricos, podem ser utilizados para qualquer situação fática, como infelizmente acontece diuturnamente em decisões de recebimento da denúncia.
4 - Conclusão
A inovação trazida pelo NCPC é salutar e, casa sua aplicação venha a corroborar os precedentes mais atuais do Superior Tribunal de Justiça, tudo isso significará um novo paradigma para o aperfeiçoamento da legitimidade do processo penal.
Espera-se, num futuro próximo, que os operadores do Direito que atuam na seara criminal não mais se deparem com “pseudodecisões” de recebimento de denúncias e que a inovação trazida pelo NCPC possa influenciar a atuação dos magistrados, de modo a emprestar cada vez mais eficácia ao comando do art. 93, inciso IX, da CF.
BIBLIOGRAFIA
BRASILEIRO, Renato. Curso de Processo Penal. Niterói: Impetus, 2013.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 14ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
DIDIER, Fredie; BRAGA, Paula; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 11ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2016.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade Constitucional. Vol. 1. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Moraes. Quando o acusado é VIP, o recebimento da denúncia é motivado. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-nov-14/limite-penal-quando-acusado-vip-recebimento-denuncia-motivado. Acesso em: 24 de julho de 2016.
TOURINHO FILHO. Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 3. 15ª Edição. São Paulo: Saraiva, 1994.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, foi Delegado de Polícia Federal entre 2014 e 2016. Atualmente é Advogado em Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Fernando Caldas Bivar. Recebo a denúncia, cite-se o réu: superação de "pseudodecisões" à luz do art. 489, § 1º, inciso III, do NCPC Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 ago 2016, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47173/recebo-a-denuncia-cite-se-o-reu-superacao-de-quot-pseudodecisoes-quot-a-luz-do-art-489-1o-inciso-iii-do-ncpc. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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