RESUMO: O presente trabalho busca abordar o precedente judicial enquanto fonte do direito sob uma perspectiva eminentemente teórica. Partir-se-á, para tal fim, de noções filosóficas relativas à interpretação jurídica, como a diferença entre texto e norma, círculo hermenêutico, conceitos de intepretação e compreensão. Além disso, fundamentar-se-á com base em aspectos atinentes à teoria da norma jurídica como fenômeno comunicativo, bem como em aspectos relativos à estrutura interna da norma, na perspectiva abordada por Hans Kelsen e Tércio Sampaio Ferraz Jr.; bem como sua construção pelo intérprete, pautada pelo texto, âmbito e programa normativo, conforme delineamentos de Friedrich Müller. No mais, alguns conceitos normalmente utilizados pela doutrina com base na tradição do Common Law, tais como, ratio decidendi e obiter dictum, serão reformulados a fim de adequá-los ao sistema jurídico nacional e aos modernos delineamentos esboçados quanto à interpretação jurídica. Por fim, as concepções abordadas serão utilizadas para argumentar a favor da “obrigatoriedade” de determinadas decisões judiciais proferidas no bojo do sistema decisório brasileiro.
Palavras-chaves: Precedente Judicial. Ratio decidendi. Texto Normativo. Teoria das Fontes do Direito. Teoria Geral do Direito. Filosofia do Direito. Hermenêutica Jurídica.
INTRODUÇÃO
A problemática em torno da Teoria das Fontes do Direito somente ganhou força com o advento da era moderna, mais especificamente com o movimento intelectual do iluminismo. De fato, em momento anterior, parecia pacífico aos olhos dos juristas que o Direito se encontrava presente na infinita sabedoria divina de Deus. A secularização iluminista, porém, paulatinamente abriu espaço para uma visão cultural do fenômeno jurídico, a qual, mesmo nos dias de hoje, não se encontra plenamente consolidada.
Com certo exagero, Gurvitch entende que o problema das fontes do direito positivo é o ponto “crucial de toda a reflexão jurídica: é o ponto central da Filosofia do Direito e para ele converge toda a complexidade de seus temas”[1]. A despeito de tal exorbitância, parece certo que o tema aqui abordado configura um dos pontos centrais para a construção duma teoria capaz de explicar o fenômeno jurídico na sociedade contemporânea.
Certamente, a questão das fontes do direito é, antes de tudo, um problema que envolve o Direito (= ordenamento jurídico) enquanto sistema. É a necessidade de identificar, separar e expurgar os elementos que não o compõem, que são incompatíveis com as regras do jogo por ele mesmo concebido, ainda que se entenda, conforme máxima do empirismo lógico, que “o sistema não possa fornecer as bases para sua própria consistência”[2].
Todavia, nos dias de hoje, diante do império do direito legislado, a questão das fontes do direito se encontra deixada de lado. Os intelectuais ligados ao saber jurídico repousam tranquilos na confortável posição de reconhecer a legislação como a única fonte, fazendo meras pinceladas no que diz respeito aos costumes, a doutrina e a jurisprudência, sempre entendidas como fontes subsidiárias ou interpretativas.
A aurora do precedente judicial no sistema brasileiro coloca esse conforto em cheque. Dum ponto de vista objetivo, negar a lei e as decisões das cortes superiores acarreta a mesma consequência: a possibilidade de reforma da decisão judicial. Se a consequência é idêntica, não parece haver motivos para colocar o “precedente judicial” em patamar inferior ao direito legislado, senão, é claro, o velho medo de atentarmos contra o dogma da separação de poderes.
No mais, ao abordarem o tema, os doutrinadores, normalmente processualistas, costumam firma seus posicionamentos com bases em princípios e outros argumentos metafísicos a priori, tais como, segurança jurídica, isonomia, uniformidade das decisões judiciais e, muito provavelmente, respeito à dignidade humana, sem se importarem em fazer qualquer abordagem teórica sobre o tema.
Noutro norte, a concepção Kelseniana de que somente normas podem ser fontes de outras normas parece cair por terra diante dos delineamentos atinentes à contemporânea hermenêutica jurídica, mormente no que diz respeito à separação entre texto e norma, à noções de interpretação, compreensão, círculo hermenêutico e, por fim, as concepções atinentes à norma como fenômeno comunicativo.
O objetivo deste trabalho, portanto, é fazer uma análise eminentemente teórica dos precedentes judicias como fonte do Direito. Identificar em que consiste, no contexto atual e de acordo com a contemporânea hermenêutica jurídica, saber a “origem do Direito” para, posteriormente, afirmar em que medida e sob que condições uma decisão judicial, uma vez prolatada, pode ser utilizada como fonte para uma decisão futura.
1 NORMA JURÍDICA E SUA INTERPRETAÇÃO
1.1 DOGMÁTICA ANALÍTICA: A ESTRUTURA DA NORMA JURÍDICA EM HANS KELSEN E TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR.
Quando se menciona norma jurídica e Hans Kelsen, a primeira palavra que surge na mente do operador do direito é: Ciência. Esta, em audaz metáfora, é a vingativa filha da religião tentando lograr êxito onde sua genitora jamais lograra – o encontro da “Verdade”. Para tal fim, a “Scientia” erigiu a rigorosa cognição dos fatos, em tese alcançada pelo método científico, ao patamar de objeto primário da investigação; lugar este anteriormente ocupado por Deus, atingido por meio da fé, da evidência através da razão, e do espírito absoluto pela dialética.
Mas seja na episteme Platônica, na metódica análise Cartesiana, no empirismo de Bacon ou, ainda, na “linguagem clara” do Círculo de Viena, o certo é que o encontro da Verdade – objetivo tradicional da scientia – escondia, antes de tudo, uma necessidade: Platão queria combater os tiranos ao afirma-lhes que iam de encontro à natureza humana, Derrida procurava saber como a linguagem se transformou em filosofia primeira, os iluministas queriam libertar a burguesia dos religiosos dogmas cristãos[3] e Kelsen desejava fazer o Direito “entrar na moda”.
Todas essas correntes filosóficas, a despeito de suas divergências, idiossincrasias e contexto histórico que as impulsionaram, possuem o mesmo pano de fundo: a ideia de que “há algo por trás das coisas além daquilo que nós mesmos pusemos”[4], quer dizer, a crença na existência de uma ordem natural cognoscível, inteligível e captável, onde o conhecimento se dissolve em entendimento e a realidade é revelada ao invés de construída.
O fato de estas correntes possuírem o mesmo escopo – repita-se, “encontrar a verdade”, “revelar a realidade” – decorre da adoção das mesmas premissas filosóficas de bases platônicas, as quais foram resgatadas ainda no final da Idade média, mas cujo auge apenas ocorreu com a filosofia de Immanuel Kant e Augusto Comte. O primeiro destacou as categorias a priori necessárias ao entendimento, as quais, presentes no saber científico, permitem, ainda que incognoscível seja a coisa-em-si, a apreensão do fenômeno em sua essência. Comte, por sua vez, inflacionou o conhecimento dos fatos como base do conhecimento verdadeiro, ao mesmo tempo em que elevou o saber científico como o ápice do intelecto humano.
Estes autores, certamente, foram os responsáveis pela hipostasiação quase religiosa da Ciência e de suas premissas – método, clareza, objetividade etc. – nos Sec. XIX e XX. Após a “Crítica da Razão Pura”, ainda hodiernamente é possível encontrar filósofos desejando “colocar a filosofia no caminho seguro das ciências”. Da mesma forma, após a obra “Curso de Filosofia Positiva”, há quem acredite ser a ciência “o único meio em condições de resolver, ao longo do tempo, todos os problemas humanos e sociais que até então haviam atormentado a sociedade” [5].
Este cientificismo não poderia – e, certamente, não iria – passar despercebido pelos juristas em voga. Tratava-se de uma época otimista, intelectualmente fértil e com premissas bem ajustadas, na qual, como visto anteriormente, palavras como objetividade, clareza, método e, principalmente, verdade, alcançavam o patamar de dogmas religiosos, encontravam-se, pois, hipostasiadas, inflacionadas no seio intelectual.
Neste contexto, Hans Kelsen trouxe a si a sublime cruzada de levar à Ciência do Direito os vícios e virtudes do cientificismo em voga, arcando com os fardos e as glórias de seu pioneirismo. Por um lado, foi acusado tanto de empobrecer o mundo jurídico, ao reduzir o saber científico ao estudo da norma, quanto de distanciá-lo da realidade social subjacente[6]; por outro, é certo que, antes de seu pensamento, a Ciência do Direito sequer tinha um objeto de estudo delimitado, em claro prejuízo ao seu desenvolvimento enquanto tal.
Com efeito, sua obra prima revela, logo em seu título, uma necessidade da Ciência Jurídica de então: a delimitação “precisa” de seu objeto de conhecimento. Ao denominar sua Teoria do Direito de “Pura”, Kelsen desejava distanciar-se do “lugar-comum” das teorias tradicionais e, pari passu, elevar sua obra a categoria de “divisor de águas”, a partir do qual a ciência do direito não mais se esmiuçaria com a sociologia, psicologia ou história, mas lograria plena autonomia científica[7].
A partir da referida obra, desejava Kelsen – e isso de fato ocorreu – que a ciência jurídica gozasse de soberania, afastando elementos estranhos ao seu estudo por meio da delimitação precisa de seu objeto. Isto resta claro, frise-se, pelas palavras do próprio jurista austríaco, in verbis:
quando a si própria se designa como “pura” a teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos [...] um relance de olhos sobre a ciência jurídica tradicional, tal como se desenvolveu no decurso dos sécs. XIX e XX, mostra claramente quão longe ela está de satisfazer à exigência da pureza. De um mondo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política[8].
A referida pureza de sua teoria é posta em cheque pelos críticos quando Kelsen, na tentativa de fechar o sistema lógico por si criado, condiciona a validade do ordenamento jurídico ao mínimo de efetividade social – elemento sociológico –, ou ainda, quando assevera ser a denominada “norma hipotética fundamental” – elemento filosófico –, enquanto pressuposto teorético-gnosológico, o fundamento primeiro de validade das constituições nacionais e, por conseguinte, de todo o ordenamento.
Embora a pureza de sua teoria desvaneça perante seus desvairos iluministas por completude, o certo é que Kelsen, ao delimitar rigorosamente o objeto de análise da ciência jurídica, logrou êxito em seu objetivo de “cientificizar” o estudo do Direito. Para tanto, Kelsen pôs a “norma jurídica” como centro de investigação da Ciência do Direito, fazendo-a ocupar o trono que antes pertencia a “Justiça”, “Razão”, “Lei” “Vontade Divina”, “Espírito do Povo” etc.
Estando tão próximo às marcas do romantismo deixadas nas regiões teutônicas, Kelsen, como bom germânico, infinitizou seu objeto de estudo – a norma jurídica – e esta simples atitude – colocar no pedestal algo que, até então, fora deixado relativamente de lado – mostrou-se suficiente para mudança de paradigma no estudo do Direito. No mais, Kelsen também concebeu uma nova estrutura ao ordenamento jurídico, bem como trouxe as premissas interpretativas da filosofia analítica ao campo da ciência jurídica.
Neste ponto do trabalho, todavia, somente o que nos interessa são as concepções de Kelsen atinentes à estrutura da norma jurídica, a fim de que se possa superar, ao menos no que toca as fontes do direito, a separação entre as tradições Civil Law e do Common Law, permitindo ir além das barreiras do direito positivo. Da mesma forma, será importante para superar a distinção entre norma jurídica geral e individual, imprescindível para entender precedente judicial como fonte do direito no direito contemporâneo.
O primeiro e fundamental passo para entender a estrutura da norma jurídica em Kelsen diz respeito à distinção, elaborada por Kant, entre “ser” e “dever-se”. Como visto anteriormente, todo o contexto intelectual no qual o jurista austríaco desenvolveu sua obra fundou-se nos desdobramentos do pensamento, dentre outros autores, de Immanuel Kant. Evidentemente, a ciência jurídica e Kelsen não passariam incólume de sua influência.
De fato, não se mostra necessário ir a fundo às obras de Kant para perceber sua influência sobre o jurista austríaco, sendo certo que, logo no prólogo da obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” é possível encontrar traços de sua influência, ipsis litteris:
tanto a filosofia natural quanto a filosofia moral podem cada qual ter a sua parte empírica, pois aquela tem de determinar as leis da natureza como objeto da experiência, e esta, as da vontade do homem enquanto é afetada pela natureza; as primeiras, considerando-as como leis segundo as quais tudo acontece, a segunda, como leis segundo as quais tudo deve acontecer, mas ponderando também as condições pelas quais com frequência não acontece o que devia acontecer.[9]
Resta, pois, clara a distinção, salientada por Kant e utilizada por Kelsen, entre o mundo físico – do qual faz parte a natureza –, e o metafísico – onde se encontra a moral –, sendo esta última, conforme acima transcrito, responsável por determinar as leis da vontade humana enquanto afetadas pela natureza, cujo conteúdo, repita-se, consiste em dizer como tudo deve acontecer, mas também as condições pelas quais frequentemente não acontece o que devia acontecer.
Tomando esta distinção como base de sua Teoria, Kelsen delineia a distinção entre: a) causalidade, princípio regente dos fatos da natureza, onde uma causa gera um efeito, o qual constituirá causa de outro efeito posterior; e b) imputação, princípio que rege as condutas humanas, enquanto responsável por ligar um consequente a um antecedente por meio do conectivo “dever-ser”[10]. Assim, entende que o fato regulado pelo direito (fato jurídico) possui dois elementos distintos: a) o ato humano, sensorialmente perceptível, realizado no espaço e no tempo – e pertencente, pois, ao mundo físico, do ser (ôntico), e regido pela causalidade; e b) sua significação jurídica, conferida pela norma posta – sendo esta significação pertencente ao mundo metafísico, do dever-ser (deôntico), e regido pela imputação[11].
A primeira vista, soa um tanto inusitado afirmar que uma norma posta, quer dizer, produzida por instituições jurídico-políticas humanas, resultado de um processo cultural, possa se encontrar em mundo metafísico – não humano, fora da cultura, pois. Todavia, isso decorre da concepção de que a norma, por sua essência, expressa algo que deve ser ou acontecer, sendo, inexoravelmente, um comando do “dever-ser”, atinente ao plano dos pensamentos, dirigido ao “ser”[12], presente no plano dos fatos.
Neste ponto, em que se ressalta o ato ou fato, físico, sensorialmente perceptível, e o sentido metafísico, deôntico, que lhe é conferido, exsurge a segunda concepção fundamental para entender a norma jurídica em Kelsen: a norma enquanto esquema de interpretação. De fato, sejam as normas morais, gramaticas, religiosas ou jurídicas, é certo que estas conferem um significado específico à conduta normada. O ato de ajoelhar-se nada quer dizer no mundo natural, mas, em culto católico, regido por normas da respectiva religião, significa reverência a determinada entidade divina.
O processo de produção do direito objetivo presta-se a criação de normas jurídicas, cuja função – seja norma de conduta ou de estrutura –, dentre outras, consiste em conferir significação objetiva – jurídica – a atos humanos ou fatos da natureza que, do contrário, seriam juridicamente irrelevantes[13]. Com efeito, a ausência de norma acarretaria que os atos e fatos da vida possuíssem um significado tão somente subjetivo e, portanto, inapto a qualificar-se como jurídico. Nas palavras de Kelsen: “O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma” [14].
As normas jurídicas são, pois, “esquemas doadores de significado”[15], cujo objetivo consiste em juridicizar, enlaçar, trazer aquele ato ou fato pertencente ao mundo do ser à realidade normativa, conferindo-o um significado jurídico específico – o ato de matar transformar-se em homicídio. O “dever-ser” jurídico, desta forma, dirige-se aquilo que “é” para que o conteúdo daquele “algo” que “é” coincida com o conteúdo daquele “algo” que “deve ser’”[16].
Embora Kelsen não afirme, categoricamente, expressamente, qual o objetivo das normas jurídicas – regular as condutas intersubjetivas, adaptar o homem à sociedade, incidir infalivelmente sobre os fatos etc. – a ênfase posta na coercibilidade da ordem jurídica torna indubitável que o referido jurista concebe o Direito, precipuamente, como um corpo de normas de conduta, ou seja, como um conjunto de comandos normativos dirigidos a regular as relações humanas.
Diante disso, surge o terceiro e último elemento imanente à norma jurídica: a sanção. Esta seria um pressuposto do Direito moderno, baseado no vergeltung[17] – princípio retributivo – e principal elemento da denominada “norma primária” ou, no termo utilizado por Kelsen, “norma autônoma”. De fato, a estima pela coercitividade do direito é tão acentuada em sua teoria que a sanção não é concebida como elemento para efetivar o ordenamento, tal como ocorre nas teorias tradicionais, mas componente integrante da própria estrutura da norma jurídica[18].
Não quer Kelsen dizer, todavia, que todas as normas previstas no ordenamento são providas de sanção. Absolutamente não. O que se afirma é que as normas destituídas de um comando sancionatório – não autônomas – são ligadas a outra norma – autônoma – devidamente “armada” de uma sanção[19]. Além disso, Kelsen não nega a existência de normas que, além de desguarnecidas de sanção, não se conectam a qualquer outra norma autônoma, essas, entretanto, aproximar-se-iam da moral, sendo desprovida de coercibilidade e, portanto, “ajurídicas”. Neste sentido:
uma norma posta pelo legislador constitucional que prescrevesse uma determinada conduta humana sem ligar à conduta oposta um ato coercitivo – a título de sanção – só poderia ser distinguida de uma norma moral pela sua origem, e uma norma jurídica produzida pela via consuetudinária nem sequer poderia ser distinguida de uma norma de moral também produzida consuetudinariamente [...] só muito excepcionalmente se encontram normas que são o sentido subjetivo de atos de legislação e que prescrevem uma determinada conduta sem que a conduta oposta seja tomada como pressuposto de uma ato coercitivo que funcione com sanção.[20]
Neste ponto, é fundamental salientar o alcance amplíssimo conferido por Kelsen ao conceito de sanção, significando não apenas uma consequência do ato ilícito, mas, isto sim, como “todos os atos de coerção estatuídos pela ordem jurídica”[21]. Deste modo, a sanção pode, inclusive, preceder ao ato ilícito, bem como ser uma reação a determinado fato – e não um ato – socialmente indesejado.
A despeito desses fatores, o que mais evidencia a importância dada por Kelsen ao conceito de Sanção é a própria estrutura lógica da norma jurídica por ele esboçada. Com efeito, conforme será visto adiante, o “dever-ser” incide sobre a sanção, de modo que na estrutura da norma jurídica concebida, não há condutas devidas, mas sanções devidas[22]. De fato, as normas apenas são – mundo do “ser” – prescritas na medida em que o ordenamento impõe sanções – na ordem do “dever-ser” – à conduta diametralmente oposta[23].
Estes são os três fundamentos da estrutura da norma jurídica em Kelsen: a) a distinção entre “ser” e “dever-ser”; b) a norma enquanto esquema de interpretação; e c) o elemento da sanção como integrante da norma jurídica. A partir destes, será possível aferir, posteriormente, a existência de elementos essenciais para que a ratio decidendi possa ser considerada – ou equiparada – à norma jurídica no que diz respeito, frise-se, a sua estrutura interna.
Assim, em linhas simples e para resumir o que até então fora dito, quando o conteúdo de determinado fato ou ato – pertencentes, pois, a ordem do “ser” – possui conteúdo assemelhado àquele disposto na norma jurídica – ordem do dever-ser –, esta atribuirá um significado objetivo aquele, conferindo uma consequência jurídica específica (sanção) como, por exemplo, uma pena de multa para o descumprimento duma conduta versada como obrigatória.
Diante disso, a estrutura da norma jurídica, nos moldes delineados por Kelsen possui a seguinte fórmula:
Se F, deve ser S.
Onde “F” representa a realização do fato previsto na norma no mundo dos fautos, e “S” a sanção (= efeitos jurídicos) devida. Embora, hodiernamente, outros autores alarguem essa fórmula ao discorrerem sobre Kelsen – por exemplo, Marcos Bernardes de Mello afirma que, em linguagem lógico-formal, a norma, na construção de Kelsen, possui a seguinte estrutura: “Se “F”, então deve ser “P” (norma secundária), se não “P”, então deve ser “S” (norma primária)”[24] – o certo é que o jurista austríaco não vai além daquela fórmula[25].
Isso decorre, como visto, da concepção do Direito como uma ordem coercitiva e, por conseguinte, da integração da sanção como cerne da norma jurídica. Para Kelsen, a norma jurídica desprovida de sanção é “não autônoma”, estando, pois, conexa à outra norma jurídica – desta feita, autônoma – que comine uma Sanção em caso de seu descumprimento. Assim, a estrutura da norma é fundada no descumprimento da conduta prescrita – “F” –, a qual deve ser imputada a sanção – “S”.
Destarte, o não cumprimento de determinada obrigação civil – “F” – acarreta a responsabilidade do devedor por perdas e danos – “S” –, conforme os termos do art. 389 do Código Civil. A conduta prescrita – “CP” –, hermeneuticamente aferida como “a obrigação deve ser paga”[26] decorre da cominação de sanção à conduta contrária e, portanto, proibida – “-CP” –, a qual integra o próprio elemento da ordem do ser “F” de modo negativo. É possível, pois, colocar a norma da seguinte maneira:
Se F (= -CP), deve ser S.
Hodiernamente, porém, não mais se concebe a sanção como elemento integrante da estrutura da norma jurídica[27]. A doutrina, em sua grande maioria, inclusive os autores “kelseniano”, entendem que o elemento “S” que atua como consequente é, na verdade, qualquer consequência jurídica advinda do preenchimento do comando inserto no corpo do antecedente “F” ou, em outros termos, qualquer efeito jurídico.
Pois bem. Tendo como base a estrutura conferida por Kelsen, vários outros autores também procederam à esquematização lógico-formal da Norma jurídica. De fato, no seio da doutrina brasileira, diversos autores realizam a mesma atividade analítica de reproduzir a norma jurídica em símbolos de lógica formal, dentre eles se destacando Tércio Sampaio Ferraz Jr, o qual considera a norma como um fenômeno comunicativo, complexo, que envolve a vontade que a prescreve, a mensagem prescrita, a qualidade do prescritor, a identificação dos destinatários da norma e suas reações às prescrições normativas[28].
Entende o jurista brasileiro que as normas jurídicas permitem que o operador do direito “compreenda a sociedade normativamente”[29]. Não se trata de reduzir a realidade à norma, mas de utilizar uma lente – normas – para analisá-la[30]. A sociedade, por sua vez, é concebida como um conjunto de interações sociais, expressas por meio de comportamentos – “estar em situação” – transmissores de mensagens[31]. Sob essa perspectiva, portanto, viver em sociedade é transmitir e receber informações, é comunicar-se constantemente.
Sendo uma atividade precipuamente comunicativa, entende o jurista brasileiro que o Direito é uma espécie de veículo de comunicação entre as autoridades responsáveis por emitir normas e seus destinatários. Nesse contexto, a autoridade legislativa ou judiciária atuaria como emissora de mensagens normativas, e os jurisdicionados como receptores, com todas as implicações decorrentes do ato de comunicar-se.
Neste ponto, Tércio salienta que a atividade comunicativa vem sempre acompanhada de três características[32]: a) complexidade; b) seletividade e c) contingência. A complexidade decorre do fato de que o número de comportamentos possíveis do receptor é muito maior que o comportamento selecionado – a decisão prescreve a conduta “X”, mas o destinatário pode se comportar de maneira “Xy”. Seletividade, por outro lado, desponta como a escolha realizada pelo emissor, ao emitir determinada mensagem “X”, do comportamento do receptor – ao exarar um comando mandamental, o magistrado seleciona determinado comportamento de seu destinatário: o cumprimento integral da decisão prolatada. Por fim, a contingência é a característica decorrente da possiblidade de o comportamento do receptor não ocorrer nos moldes selecionados pelo emissor – o devedor de alimentos pode não cumprir a ordem exarada pelo magistrado.
Observar-se, neste ponto, que a seletividade é uma consequência natural do ato de comunicar-se, de emitir mensagens. Por outro lado, a contingência decorre da complexidade, haja vista que a possibilidade daquele comportamento específico “x”, selecionado pelo emissor, venha a efetivamente ocorrer é sobremaneira pequena, acaso comparada com a quantidade de comportamentos possíveis por parte do receptor, do que resulta a alta possibilidade das expectativas do emissor serem constantemente frustrada.
Acontece que a alta carga de complexidade e, por conseguinte, a alta contingência da comunicação tornaria a vida em sociedade impossível. Assim, são criados “mecanismos” capazes de fortalecer a seletividade – dupla seletividade[33]. O conjunto de mecanismos, por sua vez, compõe a estrutura[34]. Por exemplo, quando o magistrado determina o cumprimento de determinado despacho à secretaria, o comportamento selecionado – cumpra-se – é reforçado pelo mecanismo hierárquico das regras de organização judiciária, bem como pelas sanções administrativas advindas de eventual descumprimento.
Nesse contexto comunicativo inerente à vida em sociedade, as normas jurídicas surgem, exatamente, como mecanismos de controle, cujo objetivo consiste em conter a contingência típica da convivência em sociedade, garantindo a seletividade de certos emissores – órgãos competentes para “dizer o direito” – frente a possibilidades de atuação de certos receptores – os jurisdicionados. Quando relacionadas, dispostas entre si e sistematizadas, as normas jurídicas compõem uma estrutura maior, o ordenamento jurídico.
Por outro lado, observa-se que as mensagens ocorrem em dois níveis[35]: a) o nível do relato e b) o nível do cometimento. O relato constitui na mensagem emanada “pelo” sujeito, ao passo que o cometimento é a mensagem que emana “do” sujeito[36]. A diferença é sutil, o relato constitui no conteúdo da mensagem transmitida, ao passo que o cometimento determina a relação – de subordinação ou coordenação – comunicada[37].
Diante desta visão da norma como ato comunicativo, como mensagem, Tércio concebe a estrutura da norma jurídica em moldes intersubjetivos, onde “A” constitui a autoridade emissora do comando normativo, “S” o destinatário da referida ordem, “F” o cometimento atinente à mensagem, e “R” o relato conteúdo da mensagem emanada. Deste modo, a estrutura da norma jurídica pode ser concebida, além dos moldes kelsenianos – uma não exclui a outra – conforme o seguinte esquema[38]:
Emissor (A) à Cometimento (F) / Relato (R) à Receptor (S)
O grande mérito do jurista brasileiro é “puxar” os utentes da língua para a estrutura da Norma Jurídica. Tradicionalmente, a ciência do direito se divide em analítica, responsável pelo estudo de aspectos sintáticos – relação dos signos entre si –, hermenêutica, cuja tarefar é analisar características semânticas – relação dos signos com o seu significado – e argumentação, a qual possui o trabalho de estudar o ângulo pragmático – relação dos signos com seus usuários. Ao trazer os utentes dos signos para a estrutura da norma jurídica, Tércio Sampaio rompe com esta tradição, trazendo aspectos pragmáticos à analítica, sem olvidar as necessidades sintáticas e semânticas atinentes à estrutura da norma.
Feitos esses delineamentos, destaca-se que uma das premissas deste trabalho é a ideia de que a definição de ratio decidendi pode ser equiparada a norma jurídica, em virtude de possuírem a mesma estrutura interna. Tal constatação aproximar as tradições do Common Law e do Civil Law, permitindo uma análise teórica aprofundada dos precedentes judiciais como fonte do direito, além das barreiras de direito positivo existentes entre a tradição continental e anglo-saxônica.
1.2 A CONTEMPORÂNEA HERMENÊUTICA JURÍDICA. A DIFERENÇA ENTRE TEXTO E NORMA.
Embora, conforme visto anteriormente, somente a partir de Kelsen o Direito tenha passado a ser visto como uma ordem coercitiva, tendo o jurista, inclusive, concebido a sanção como elemento integrante da estrutura da norma jurídica, é certo que o Estado, em si, já era concebido por Marx Webber com o único e legítimo detentor do “monopólio da força física”[39]. Acontece que, com o alvorecer do normativismo Kelseniano, o Estado passou, também, a ser o único legitimado a dizer o direito de forma vinculante, no esquema concebido por Kelsen como “Interpretação autêntica”.
Diante disso, têm-se um contexto temerário: aquele que realiza a atividade jurisdicional, quer dizer, o ato de dizer o direito é, também, o único legitimado a utilizar-se da violência. Se o Estado detém a força e diz o direito de forma “vinculante”, como garantir que esta atividade não se resumirá em arbítrio? Ou, caso assim aconteça, de que forma legitimá-la? Em outros termos, como conciliar a hipertrofia estatal com legitimidade democrática?
Nesse contexto, avulta a importância da Teoria da Argumentação Jurídica, enquanto tentativa teórica de legitimar a atividade jurisdicional. Esta, com efeito, sempre teve como escopo a problemática de justificar a atividade jurisdicional, mormente quando os intérpretes-aplicadores do direito positivo não são eleitos de acordo com as regras atinentes ao processo democrático. Inicialmente, a Argumentação Jurídica legitimou a atividade decisória a partir da ideia “montesqueniana” de que o magistrado constitui, tão somente, a “boca da lei” e, portanto, a aplicação do direito restaria legitimada, indiretamente, por meio da atividade legislativa, representada por um órgão representante do povo.
Todavia, logo se percebeu que os magistrados costumavam conferir soluções diversas a casos idênticos, a despeito da suposta “objetividade” conferida pelo texto da Lei. Este anacronismo – pontos de partidas objetivos que desembocam em resultados subjetivos; uma atividade bitolada por um ponto de partida, mas que resulta em infinitos resultados –, denominado por Tércio de “Desafio Kelseniano”[40], foi atribuído à ausência de método por parte dos magistrados.
Neste contexto, exsurge a Hermenêutica Jurídica como um ramo sutilmente diferente da Argumentação. Com efeito, embora ambas se preocupem com a legitimação do discurso jurídico, é certo que a Teoria da Argumentação objetiva conferir racionalidade ao processo de tomada de decisões judiciais, enquanto a Hermenêutica jurídica visa, ao menos incialmente, à construção de um método capaz de eliminar a subjetividade na aplicação da lei, quer dizer, de balizar o intérprete, retirar o caráter volitivo da interpretação.
Com este intento, Savigny elencou os seguintes métodos interpretativos que deveriam ser aplicados conjuntamente para aferir o sentido das normas jurídicas: gramatical, lógico, sistemático, histórico e sociológico. A utilização destes métodos objetivaria, portanto, que o intérprete-aplicador da lei encontrasse a única solução correta, através da extração do verdadeiro sentido dos conteúdos normativos. Fazia-se, pois, a distinção entre a lei e o seu espírito, aferível através do método.
Em um segundo momento, todavia, a hermenêutica se aproxima da argumentação jurídica, pois não mais visa conferir um método capaz de encontrar o “verdadeiro sentido da norma”, mas em fornecer um método interpretativo capaz de construir a norma jurídica de forma “otimizada”, em consonância com a ordem constitucional vigente, com a realidade social subjacente e, também, com vistas à manutenção e efetividade do Estado Democrático de Direito.
Isso decorre, contraditoriamente, em virtude da aceitação das concepções Kelsenianas atinentes à intepretação jurídica. Segundo o jurista austríaco, o objeto da hermenêutica são conteúdos normativos essencialmente plurívocos[41] – haja vista sua natureza linguística – e, por conseguinte, a definição do sentido da norma aplicada constituiria um ato volitivo de seu aplicador[42]; diante da várias interpretações, o magistrado aplica a que mais lhe convém. Essa visão sobre a hermenêutica jurídica levou ao que Tércio Sampaio Ferraz denominou Desafio Kelseniano, in verbis:
Não teria, pois, realmente, nenhum valor racional procurar um fundamento teórico para a atividade metódica da doutrina, quando esta busca e atinge o sentido unívoco das palavras da lei? Seria um contrassenso falar em verdade hermenêutica?
Enfrentar essa questão constitui o que chamaríamos, então, de o desafio Kelseniano[43].
A hermenêutica moderna aceita esse desafio. Aceita, pois, a plurivocidade das palavras e o conteúdo volitivo imanente à interpretação, mas discorda que não haja nada que a hermenêutica possa oferecer para racionalizar o processo de aplicação das normas. Tenta-se, portanto, proporcionar um método capaz de fornecer, diante das circunstâncias concernentes ao caso concreto, o sentido mais adequado para aquela situação específica[44], de modo a expurgar o arbítrio judicial atinente ao momento da interpretação.
Nesse contexto, surgem diversos métodos hermenêuticos, tais como: tópico-problemático, hermenêutico-concretizador, integrativo ou científico-espiritual, normativo-estruturante etc. Esses métodos, embora sofram críticas na doutrina por alargarem o subjetivismo e ocasionarem “a quebra e decomposição da juridicidade das Constituições”[45], da qual decorreria “uma legitimidade fácil e desimpedida com que amparar todas as soluções possíveis”[46], tiveram como objetivo, na verdade, balizar, conformar, limitar a atividade jurisdicional, diminuindo a discricionariedade decorrente do caráter volitivo da interpretação.
Dentre os métodos hermenêuticos elencados, avulta relevância o método normativo-estruturante esboçado por Friedrich Müller no decorrer de suas obras “Teoria Estruturante do Direito”, “O Novo Paradigma do Direito”, “Metodologia do Direito Constitucional”, “Métodos de Trabalho do Direito Constitucional” etc. Mediante forte crítica aos aspectos metafísicos e “puristas” do positivismo, Müller estrutura suas concepções sobre a norma com base em dois alicerces fundamentais.
O primeiro diz respeito à noção de círculo hermenêutico, retirada da filosofia de Hans-Georg Gadamer, o qual, com base em Heidegger[47], supera a visão judaico-cristã do homem como um ser desconexo da natureza e, por conseguinte, concebe-o como um ser histórico – “ser-no-mundo” (dasein) –, cuja “racionalidade” resulta de fatores sociais, históricos, políticos, morais, entre outros, os quais embasam sua existência e permeiam todas as suas atividades.
Nesta visão de mundo, a compreensão é possibilitada por uma carga subjetiva anterior – Pré-compreensão –, a qual, tradicionalmente, era concebida como algo a ser evitado, pois entendida como empecilho a um conhecimento objetivo e neutro[48]. Todavia, evitá-la é, antes de tudo, negar historicidade ao homem, endeusá-lo ao ponto torná-lo universal e atemporal. Ademais, a noção de círculo hermenêutico não muda o foco do conhecimento do “polo” objetivo para o subjetivo, mas, isto sim, esvazia e supera tal distinção – subjetivo/objetivo –, pois a união do homem com o mundo no qual vive (“ser-no-mundo”) inutiliza a necessidade de separar o que está “dentro” – a carga valorativa subjetiva – daquilo que está “fora” – a “realidade objetiva”[49].
Diante disso, a interpretação trasmudar-se em um ato eminentemente histórico, situacional, contingente, em que a carga subjetiva representa não um empecilho, mas condição inexorável à compreensão[50]. Quer dizer, o ato de interpretar, enquanto realizado por um ser histórico, por um “ser-no-mundo”, está iminentemente ligado à realidade, ao contexto e, evidentemente, as circunstâncias históricas vivenciadas naquele momento existencial do intérprete.
Esta concepção do ser humano como um ser histórico é, na verdade, decorrente da mudança de pensamento iniciada com os poetas românticos – Goethe, Schiller, Hölderlin – e revolucionários franceses[51] – Marat, Danton, Robespierre. Estes perceberam que as “instituições sociais são forjadas pelo homem e podem ser trocadas quase que da noite para o dia, ao passo que aqueles conceberam a arte não como imitação, mas como criação do artista”[52]. Esta visão alargou-se e, progressivamente, as instituições sociais – tal como o Direito – foram concebidas como eminentemente humanas, forjadas pelo homem, assim como a sua história, na visão moderna, passou a ser vista como um processo feito exclusivamente pela experiência humana[53].
A visão do homem como um ser histórico leva ao segundo ponto chave para entender a teoria da norma estruturada por Müller – o pensamento tópico. A ressureição da tópica operada por Viehweg[54] abriu espaço para que Müller concebesse a atividade de concretização-interpretação da norma de modo eminentemente problemático. Ou seja, possibilita-se que os casos concretos trazidos a crivo do poder judiciário sejam, senão o cerne, um dos pontos centrais do processo de concretização.
A ênfase no problema, em contraposição ao primado do pensamento sistemático positivista, permite a flexibilidade da ordem jurídica perante as mudanças sociais, adequando a ordem jurídica a necessidade de seus usuários. Concebe-se, pois, o Direito de forma “alopoietica”, sendo o “problema” a chave para a contínua reconstrução do direito através do chamado “processo de concretização”[55]. Possibilita, portanto, a inserção do texto normativo no contexto situacional no qual se encontra o intérprete, permitindo a maleabilidade necessária às ordens constitucionais, muitas vezes ausente no formalismo positivista.
Ademais, tendo em vista que, conforme será observado adiante, a norma jurídica apenas surge após a concretização, e esta somente ocorre perante um problema específico, uma situação fática a ser decida por meio da atividade jurisdicional, o pensamento tópico surge como uma necessidade da atividade interpretativa e da correta compreensão da ordem normativa. Possibilita, pois, a junção entre o “Direito” e “Realidade”, anteriormente separados pelo positivismo[56]. Nas palavras de Müller, “o afastamento da doutrina aplicacionista do positivismo em benefício do caráter constitutivo da interpretação (ou da concretização) combina o pensamento tópico com o pensamento metodológico”[57].
Trazendo estas noções – círculo hermenêutico, pré-compreensões, o Direito como construção humana, o pensamento tópico – ao campo da teoria da norma jurídica, Friedrich Müller percebe algo, diríamos, lógico: a norma jurídica se dirige a uma realidade específica, existencial, momentânea, e esta mesma realidade integra a própria estrutura da norma aplicada, pois a interpretação do aplicador perante o caso concreto vem acompanhada – querendo ou não – de suas pré-compreensões, das “marcas cegas”, das contingências particulares que fazem de cada ser humano um “eu”[58]. Isto, todavia, não é algo a ser evitado pela ciência do direito, pois permite a “concepção muito mais rica e fecunda, muito mais aderente à práxis e às subjacências sociais do que as próprias direções antecedentes do sociologismo jurídico tradicional”[59].
Isto significa que a distinção entre “Direito” e “Realidade”, calcada pela distinção Kantiana entre “ser” e “dever-se”, também se desfaz, abrindo espaço para que a realidade seja concebida de forma normativa e não como um elemento sociológico a ser extirpado pela pureza do positivismo Kelseniano. Neste sentido:
A premissa de um dos erros mais fundamentais do positivismo na ciência jurídica, a compreensão e o tratamento da norma jurídica como algo que repousa em si e preexiste, é a separação da norma e dos fatos, do direito e da realidade. Nesse tocante, não queremos cometer também aqui o erro de generalizar a pletora dos diferentes tipos de prescrições legais na “única” norma jurídica, para depois derivar inferências desse abstractum preconcebido[60].
Diante disso, a Norma Jurídica, para Müller, não é algo “dado”, mas “criado” pelo intérprete no momento de concretização – interpretação – do texto normativo. Entender a Norma Jurídica como algo “dado”, confundindo-a com o texto da lei, implica em abandonar a natureza histórica do homem através de distinções apriorísticas entre “ser” e “dever-ser” e, por conseguinte, ao assim proceder, a Ciência do Direito trasmudar-se, segundo Müller, numa “metafísica mal feita”[61].
Como consequência de suas premissas – pensamento tópico e pré-compreensões, Müller deixa bem claro a distinção entre texto normativo e norma. Essa diferença concebida pelo jurista alemão diverge daquela tradicionalmente formulada entre “Lei” e “Direito”, pois, diferentemente desta, vai além do texto legal, mas não além da normatividade[62] – devendo ser esta compreendida como a aplicação-concretização da norma enquanto processo estruturado, concebido nos termos da Teoria Material da constituição lastreada nas obras de Viehweg e Smend, e adotada por Müller[63].
O texto normativo – letra da lei –, portanto, surge como mero ponto de partida – a ponta do Iceberg, em já consagrada expressão doutrinária[64] –, agora conciliado com a realidade positivada e circundante[65]. Todavia, não se escapa da normatividade necessária ao racional processo de interpretação-concretização da norma, pois, embora abarque uma pequena parte da estrutura da norma jurídica, o texto constitui seu núcleo irredutível e imprescindível. Consequentemente, a realidade subjacente, embora integre a maior parte da norma jurídica, é reconhecida por Müller “em moldes jurídicos e presa a esses moldes”[66].
A Norma jurídica, por sua vez, é o produto final, é o resultado do processo de concretização-interpretação, formado tão somente após o intérprete-concretizador analisar os elementos linguísticos dispostos no texto normativo, extraindo o “programa da norma”, e somar a esta “extração” os elementos fáticos circundantes ao caso concreto trazido a juízo, bem como de acordo com o contexto histórico-social relativo ao momento da decisão, correspondentes ao “âmbito da norma”.
De modo mais claro, o “intérprete-concretizador” cria a Norma Jurídica a partir da junção entre o texto, “programa da norma” – obtido através da análise dos elementos linguísticos contidos no texto normativo –, e o “âmbito da norma” – correspondente aos elementos fáticos, históricos e sociais circundantes. Justamente por tal razão, por conceber a norma como criação do intérprete, assevera Müller que “a norma não existe, não e ‘aplicável’. Ela é produzida apenas no processo de concretização”[67].
A concepção exposta por Müller, no sentido de que a norma é criada pelo intérprete a partir do cotejo do texto com a realidade, encontra relativa similitude na doutrina brasileira. Paulo de Barros Carvalho[68] ver o Direito em quatro planos – S1, S2, S3, S4. O primeiro plano – plano da expressão –, assemelha-se ao texto normativo aludido por Müller, e diz respeito a literalidade do texto, o segundo – plano das significações – à atividade interpretativa realizada perante os signos linguísticos componentes do texto normativo, o terceiro – plano de criação das normas jurídicas –, por sua vez, diz respeito ao momento de construção da norma jurídica, o quarto e último – metalinguagem – à estrutura das relações das normas entre si, construídas no terceiro plano[69].
Observar-se, portanto, que tal como o Müller, o jurista brasileiro entende pela distinção entre texto e norma. Sendo o “plano da expressão”(S1) um pressuposto inafastável à atividade interpretativa (S2), da qual resulta a norma jurídica (S3), a ser estudada, analisada e sistematizada pela ciência do direito enquanto metalinguagem do direito positivo (S4). Neste sentido “O texto consiste num conjunto de palavras que formam os enunciados prescritivos; já a norma jurídica é o produto da sua interpretação. Finda a interpretação, surge a norma jurídica. Impossível pensar em norma sem prévia atividade interpretativa”[70].
CONCLUSÃO
Pois bem. Se, por um lado, a estrutura da norma jurídica exposta no tópico anterior vai nos permitir considerar/equiparar a ratio decidendi à norma jurídica, superando barreiras de direito positivo. A distinção aqui exposta entre texto e norma, bem como algumas considerações relativas à interpretação, possibilitará argumentar a favor das ratio decidendi disposta nos julgados dos tribunais superiores como texto normativo e, por conseguinte, como fonte do Direito. As noções apresentadas são, pois, imprescindíveis a qualquer debate sobre o tema.
REFERENCIAS
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[1] GURVITCH apud MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 322.
[2] RORTY, Richard. Verdade e Progresso. Trad. Denise R. Sales. Barueri: Manole, 2005, p. 132.
[3] RORTY, Richard. Verdade e Progresso. Trad. Denise R. Sales. Barueri: Manole, 2005, p. 211.
[4] RORTY, Richard. Consequências do pragmatismo. Lisboa: Piaget, 1999, p. 45.
[5] REALE, Giovanni. História da filosofia: Do Romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991, p. 297.
[6] FERRAZ, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008, p. 73.
[7] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 1.
[8] Idem, ibidem.
[9] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 13 et seq.
[10]KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 86 et seq.
[11] Idem, ibidem, p. 2.
[12] Idem, ibidem, p. 7.
[13] Idem, ibidem, p. 4.
[14] Idem, ibidem.
[15] FERRAZ, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008, p. 73.
[16] KELSEN, Hans. Op. Cit., p. 7.
[17] Idem, ibidem, p. 29.
[18] BOBBIO, Noberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito. Trad. Márcio Pugliesi, Edsonbini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006, p. 156.
[19] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 86 et seq.
[20] Idem, ibidem, p.59 et seq.
[21] Idem, ibidem, p. 45.
[22] Idem, ibidem.
[23] Idem, ibidem, p. 46.
[24] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 34.
[25] KELSEN, Hans. Op. Cit., p. 87.
[26] MELLO, Marcos Bernardes de. Op. Cit., p. 34.
[27] FERRAZ, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008, p. 73.
[28] FERRAZ, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008, p. 74.
[29] Idem, ibidem, p. 76.
[30] Idem, ibidem.
[31] Idem, ibidem.
[32] Idem, ibidem, p. 77.
[33] Idem, ibidem, p. 75.
[34] Idem, ibidem.
[35] Idem, ibidem.
[36] Idem, ibidem, p. 76.
[37] Idem, ibidem.
[38] Idem, ibidem, p. 163.
[39] WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1988, p. 37.
[40] FERRAZ, Tércio Sampaio. Op. Cit., p. 230.
[41] Idem, ibidem, p. 229.
[42] Idem, ibidem.
[43] Idem, ibidem, p. 230.
[44] CATÃO, Adrualdo de Lima. Decisão jurídica e racionalidade. Maceió: EDUFAL, 2007, p. 40.
[45] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 501.
[46] Idem, ibidem.
[47] CATÃO, Adrualdo de Lima. Op. Cit., p. 52.
[48] Idem, ibidem.
[49] RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. Lisboa: Dom quixote, 1988, p. 266.
[50] CATÃO, Adrualdo de Lima. Op. Cit., p. 52.
[51] RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins, 2007, p. 25.
[52] Idem, ibidem.
[53] ARENDT apud TÉRCIO, Sampaio Ferraz. Op. Cit., p. 53.
[54] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 518.
[55] Idem, ibidem.
[56] Idem, ibidem, p. 6.
[57] MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. Trad. Peter Naumann, Euridez Avance de Souza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 81.
[58] RORTY, Richard. Op. Cit., p. 60.
[59] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 513.
[60] MÜLLER, Friedrich. Op. Cit., p. 19.
[61] Idem, ibidem, p. 20.
[62] Idem, ibidem, p. 192.
[63] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 512 et seq.
[64] MÜLLER, Friedrich. Metodologia de direito constitucional. Trad. Peter Naumann. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 54.
[65] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 501.
[66] Idem, ibidem, p. 524.
[67] MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. Trad. Peter Naumann, Euridez Avance de Souza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 80.
[68] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário – fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 57 et seq.
[69] IVO, Gabriel. Norma Jurídica: produção e controle. São Paulo: Noeses, 2006, p. “XXXVI” et seq.
[70] Idem, ibidem, p. “XXXVIII”.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELO, Rafael Esperidião de. Prolegômenos a uma teoria da ratio decidendi como norma Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 ago 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47234/prolegomenos-a-uma-teoria-da-ratio-decidendi-como-norma. Acesso em: 22 nov 2024.
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