RESUMO: Objetivou-se a estudar autocomposição, como meio de solução de conflitos, e as suas limitações. Conceituou-se as formas de solução de conflito e destacou a legislação responsável pela sua regulamentação. Mereceu destaque os princípios que abarcam a constitucionalização do direito civil. A normalização do conflito, por meio da garantia da dignidade da pessoa humana, usando do devido processo legal, do princípio da proporcionalidade, permite a real satisfação da vontade das partes. De nada adianta um acordo, sem a devida satisfação das partes.
Palavras-chave: Solução de conflitos. Autocomposição. Normalização do Conflito.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 A AUTOCOMPOSIÇÃO. 2.1 DEFINIÇÃO. 2.2 VICISSITUDES NA AUTOCOMPOSIÇÃO. 2.3 NORMALIZAÇÃO DO CONFLITO. 3 CONSIDERAÇÃOES FINAIS. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
O Brasil, como Estado Democrático de Direito, prima pela solução social dos conflitos, buscando resolver conflitos de interesses entre as partes.
Tal pacificação social, entretanto, pode ser concretizada tanto pela jurisdição quanto por meio de formas alternativas de solução de conflitos.
Na Jurisdição, o Estado, usando o seu poder jurisdicional, interfere na esfera jurídica dos jurisdicionados, aplicando o direito ao caso concreto, resolvendo com definitividade a crise jurídica existente.
Já com relação às formas alternativas de solução de conflito, tem-se como destaque a autocomposição, a qual consiste em solucionar os desacordos por meio da vontade das partes.
A autocomposição traduz na participação popular no exercício do poder de solucionar os litígios, o que exprime o forte caráter democrático de tal instituto.
O presente trabalho tem como escopo refletir sobe a real importância e efetividade da autocomposição. Pois, até que ponto tal instituto tem sido devidamente aplicado na Justiça Brasileira?
A autocomposição vem se destacado no ordenamento jurídico brasileiro desde 2010, com a edição da Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça, que criou a política pública de solução de conflitos jurídicos. Tal resolução foi editada para disciplinar a autocomposição e a mediação no Brasil.
Sucessivamente, em 2015, o Novo Código de Processo Civil, suntuosamente ratificou e reforçou a solução negocial de um litígio, ao prever, no seu artigo 3º, a promoção pelo Estado, sempre que possível, da solução consensual dos conflitos. Assim, tal dispositivo legal estabeleceu uma nova norma fundamental: o princípio da promoção pelo Estado da solução pela autocomposição.
Ocorre, no entanto, que, em concomitância com essa tendência de substituição da jurisdição pela conciliação, tem-se percebido certo fanatismo pela autocomposição, com consequentes situações injustas, desiguais, e sem efetividade.
A busca exacerbada pelo acordo entre as partes precisa de amparo legal, com estrutura operacional adequada, competentes mediadores e conciliadores, e a conscientização de que nem sempre o acordo é a melhor solução para o caso concreto.
Não se pode prevalecer, no ordenamento jurídico brasileiro, a busca a todo custo por acordo. Deve-se focar no devido processo legal, com ambiente propício ao exercício da liberdade e da efetiva solução do conflito.
Assim, o objetivo geral desse presente trabalho é identificar, discutir a forma de garantir a efetividade da autocomposição. E mais precisamente, estudar, numa perspectiva crítica, as principais formas de conflito social no Brasil; conceituar a autocomposição, analisar a legislação brasileira sobre tal assunto, bem como a doutrina e a jurisprudência sobre o tema; e verificar até que ponto a autocomposição garante a efetividade da vontade entre as partes.
Logo, com o intuito de abordar e estudar sobre as vicissitudes que afloram o instituto da autocomposição no Brasil, o presente artigo será desenvolvido por meio de um capítulo que discorrerá sobre tal tema em três subtítulos, os quais irão, respectivamente, relatar sobre a definição da autocomposição, a respeito das suas vicissitudes, e a normalização dos conflitos.
2 A AUTOCOMPOSIÇÃO
2.1 DEFINIÇÃO
A autocomposição é um instituto que visa a solução de um conflito por meio do sacrifício, integral ou parcial, dos interesses das partes, mediante a vontade desses sujeitos.
De acordo com o exercício da vontade das partes, pode-se dividir a autocomposição em transação, submissão e renúncia.
Assim define tais institutos, o professor Daniel Amorim Assumpção Neves:
A autocomposição é um gênero, do qual são espécies a transação- a mais comum-, a submissão e a renúncia. Na transação há um sacrifício recíproco de interesses, sendo que cada parte abdica parcialmente de sua pretensão para que se atinja a solução do conflito. Trata-se do exercício de vontade bilateral das partes, visto que quando um não quer dois não fazem a transação. Na renúncia e na submissão o exercício da vontade é unilateral, podendo até mesmo ser consideradas soluções altruístas do conflito, levando em conta que a solução decorre de ato da parte que abre mão do exercício de um direito que teoricamente seria legítimo. Na renúncia, o titular do pretenso direito simplesmente abdica de tal direito, fazendo-o desaparecer juntamente com o conflito gerado por sua ofensa, enquanto na submissão o sujeito se submete à pretensão contrária, ainda que fosse legítima sua resistência.[1]
O Novo Código Processo Civil, nos artigos 165 a 175, traz duas formas consensuais de solução de conflitos: a conciliação (autocomposição) e a mediação. O referido diploma legal, embora conduza diferenças sutis com relação a esses dois institutos, define a conciliação e a mediação como formas de solução de conflito com a presença de um terceiro com a função de auxiliar as partes a atingirem a autocomposição.
Ocorre, entretanto, que na mediação, diferentemente da conciliação, não há sacrifício de interesse pelas partes, pois o mediador descobre a causa do conflito e a remove, resolvendo o problema entre as partes. Como denota Didier:
O mediador exerce um papel um tanto diverso. Cabe a ele servir como veículo de comunicação entre os interessados, um facilitador de diálogo entre eles, auxiliando-os a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam identificar , por sim mesmos, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos. Na técnica da mediação, o mediador não propõe soluções aos interessados.[2]
É importante destacar, no entanto, que a conciliação e a mediação não ocorrem indisciplinadamente, pelo contrário, o Novo Código de Processo Civil estruturou com maestria o procedimento para tais institutos, de forma que os conflitos sejam resolvidos com igualdade e efetividade.
A conciliação e a mediação são informadas pelos princípios da independência, da imparcialidade, do autoregramento da vontade, da normalização do conflito, da confidencialidade, da oralidade, da informalidade e da decisão informada.
Outrossim, o Novo Código de Processo Civil dispôs que a conciliação e a mediação deverão ocorrer, respectivamente, por conciliadores e mediadores devidamente aprovados em curso realizado por entidade credenciada, em centros judiciários de solução consensual de conflitos, regidos por normas do Conselho Nacional de Justiça, vinculados aos Tribunais de 2º grau na Justiça Estadual e Federal.
Há de destacar, ainda, que a lei de mediação (lei 3140/2015) exige que o mediador seja graduado, há pelo menos dois anos, em curso superior de instituição reconhecida pelo Ministério da Educação.
Percebe-se, portanto, que a conciliação e a mediação foram devidamente estruturadas pela legislação brasileira, embora existam inúmeros problemas aflorando na aplicação destes institutos, talvez, em virtude da busca excessiva pela realização de um acordo.
2.2 VICISSITUDES NA AUTOCOMPOSIÇÃO
Muito embora as disposições principiológicas e as regras sobre a atividade dos conciliadores e mediadores, trazidas ao bojo do ordenamento jurídico brasileiro pelo Novo Código de Processo Civil, o que se tem presenciado no mundo fático da justiça brasileira é a falta de estrutura do Poder Judiciário e a busca desregrada pela autocomposição.
Como exposto acima, o Novo Código de Processo Civil trouxe, como requisito para a autocomposição, a formação de Centros Judiciários de solução consensual dos conflitos e a formação de conciliadores e mediadores por cursos especializados.
A realidade, no entanto, não tem apresentado consonância com o disposto legalmente. O que se tem vivenciado na prática, principalmente, nos interiores dos Estados, são audiências de autocomposição realizadas, administradas por estagiários da área do dinheiro, em ambientes totalmente desestruturados.
É de extrema importância a capacitação e a imparcialidade dos conciliadores e mediadores, pois estes têm o dever de estimular as partes a melhor resolver os seus conflitos e a se perceberem reciprocamente como seres humanos merecedores de respeito e atenção.
Sem contar, outrossim, que muitas vezes a diferença do poder aquisitivo entre as partes pode perpetrar acordos totalmente injustos e sem qualquer cunho de pacificação social.
Há uma forte tendência de um propício e crescente desrespeito ao direito material, em virtude dos detentores do poder passarem a atuar baseados na teoria de que a “ilicitude compensa”, haja vista a possibilidade de um acordo com a outra parte. Ou seja, o infrator contumaz poderá enxergar na autocomposição uma alternativa para sempre atuar em desconformidade com a lei.
Flávio Luiz Yarshell, em 2009, na Folha de São Paulo, questionou os problemas que se pode ter com a supervalorização da autocomposição:
A conciliação não pode e não deve ser prioritariamente vista como forma de desafogar o Poder Judiciário. Ela é desejável essencialmente porque é mais construtiva. O desafogo vem como consequência, e não como a meta principal. Essa constatação é importante: um enfoque distorcido do problema pode levar a resultados indesejados. Vista como instrumento de administração da máquina judiciária, a conciliação passa a ser uma preocupação com estatísticas. Sua recusa pelas partes- direito mais que legítimo- passa a ser uma preocupação com estatísticas. Sua recusa pelas partes- direito mais que legítimo- passa a ser vista como uma espécie de descumprimento de um dever cívico e, no processo, pode fazer com que se tome como inimigo do Estado aquele que não está disposto a abrir mão de parte do que entende ser seu direito. Daí a reputar a parte intransigente como litigante de má-fé vai um passo curto. Isso é a negação da garantia constitucional da ação e configura quebra do compromisso assumido pelo Estado de prestar justiça. Esse mesmo Estado proíbe que o cidadão, salvo raras exceções, faça justiça pelas próprias mãos.[3]
Tamanho é o fanatismo pela autocomposição, que o Código de Processo Civil, no artigo 334, §4º, exige a manifestação expressa de ambas as partes, quanto ao desinteresse na composição consensual, para a dispensa de realização da audiência de autocomposição. Não basta uma das partes expor o seu desinteresse pela conciliação, a audiência será realizada de qualquer forma, com a obrigatoriedade de presença no ato, sob pena de sanção pecuniária.
Sobre essa celeuma que aflora o ordenamento jurídico, assim expõe Daniel Amorim Assumpção Neves:
A exigência de que o desinteresse na realização da audiência seja manifestado de forma expressa por ambas as partes é uma triste demonstração do fanatismo que tem tomado conta do âmbito doutrinário e legislativo a respeito da solução consensual do conflito. Como diz o ditado popular, “quando um não quer, dois não fazem”, de modo que a manifestação de uma das partes já deveria ser suficiente para que a audiência não ocorresse.”[4]
Não restam dúvidas a respeito da importância da autocomposição, o que não se pode permitir é o uso de tal instituto como solução de todos os problemas no campo dos conflitos de interesses.
2.3 A NORMALIZAÇÃO DO CONFLITO
A conciliação e a mediação têm como fundamento o princípio do autoregramento da vontade, o qual determina a necessidade de estruturar o instituto da autocomposição de forma que as partes definam a melhor solução para o seu problema jurídico. Ou seja, deve ocorrer a efetiva normalização do conflito, com a satisfação das partes.
A normalização de um conflito consiste na sua real solução, com a concreta satisfação das partes envolvidas. Não se pode considerar como efetiva pacificação social quando não se tem a satisfação das partes.
O aplicador da lei, sendo ele mediador ou conciliador, deverá se respaldar no princípio da dignidade da pessoa humana, impedindo situações injustas e díspares entre as partes.
O artigo 8º do Novo Código de Processo Civil justamente estabelece a necessidade de atender os fins sociais e as exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana, além de observar a proporcionalidade, a razoabilidade, a publicidade e a eficiência, na aplicação do ordenamento jurídico. Tal dispositivo legal, como se pode perceber, valoriza a dignidade como norte do aplicador da lei.
Portanto, diante do exposto acima, conclui-se que a conciliação e a mediação devem ser valorizadas, buscando sempre a solução dos conflitos entre as partes, mas desde que embasadas nos princípios da proporcionalidade, razoabilidade, eficiência, promovam a dignidade da pessoa humana, garantindo a normalização do conflito, em respeito à vontade das partes.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como denotado acima, o ordenamento jurídico brasileiro expõe o instituto da autocomposição como meio eficaz de solução dos conflitos entre as partes.
Ocorre, entretanto, que nem sempre essa autocomposição é eficaz a ponto de garantir a efetividade da vontade das partes, o que faz concluir pela necessidade do uso de tal instituto de acordo com os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e eficiência, primando sempre pela dignidade da pessoa humana.
Não se pode querer um acordo a todo custo, deve-se primar pela eficiência e efetividade na solução dos conflitos sociais, de forma a satisfazer o interesse de cada sujeito do direito.
A autocomposição somente será eficaz e eficiente se for planejada e exercida, nas devidas situações, com estrutura adequada e por pessoas eficientes e qualificadas, o que permite a real satisfação da vontade das partes.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Vade mecum- método- legislação 2016. 4 ed. rev., atual. e ampl.. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2016.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução do Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 17 ed. Salvador: Editora Jus Podium, 2015, v.1.
MINAS GERAIS. Ministério Público. Procuradoria Geral de Justiça de Minas Gerais. O Ministério Público no Novo Código de Processo Civil (lei n°. 13.105/15): principais inovações e aspectos específicos da atuação ministerial. Belo Horizonte: Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional, 2016.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume único. 8ª edição. Salvador: Editora Jus Podium, 2016.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 6 ed. rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2016.
[1] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume único. 8ª edição. Salvador: Editora Jus Podium, 2016. p.5.
[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução do Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 17 ed. Salvador: Editora Jus Podium, 2015, v.1, p. 276.
[3] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução do Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 17 ed. Salvador: Editora Jus Podium, 2015, v.1, p. 280.
[4] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume único. 8ª edição. Salvador: Editora Jus Podium, 2016. p.573.
Analista do Ministério Público de Minas Gerais. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Graduação em Tecnólogo em Recursos Humanos pela UNIFRAN. Especialista em Direito Privado e Direito Processual, em Direito Ambiental e em Direito Administrativo.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINHO, Maura Dias Ferreira de. As limitações da autocomposição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47403/as-limitacoes-da-autocomposicao. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
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