1. O Aborto Perante às Leis
No nosso país existem diversas fontes legislativas que tratam direta ou indiretamente da questão do aborto. Apesar de não haver em nenhum ordenamento jurídico pátrio ou convenções ratificadas por nosso país o conceito explícito de aborto, pode-se subentendê-lo do tratamento dado por estas.
A legislação mais impactante e de maior alcance à respeito do tema em estudo é o Código Penal. Nele o aborto insere-se no capítulo dos "Crimes contra a vida", prevendo-se penas restritivas de liberdade de detenção ou reclusão para a prática do delito em tela. O artigo 128 do mesmo ordenamento jurídico dispõe também de algumas excludentes de ilicitude em hipóteses determinadas, como se verá adiante. A competência para julgamento destes delitos é, à luz da Constituição Federal de 1988, do Tribunal do Júri.
O Código Civil trata dos direitos e interesses do nascituro, salvaguardando-os desde o momento de sua concepção. Tal posicionamento implica em alguns conflitos existentes com outras fontes legislativas, como a jurisprudência, demonstrando que a situação se encontra longe de ser pacífica, estando, ao contrário, sujeita a muito subjetivismo do julgador em razão das leis não darem um tratamento mais adequado ao aborto.
A Constituição Federal também trata do assunto ao tutelar em seu art. 5º, inc. XXXVIII, a inviolabilidade do direito à vida, porém sem precisar a partir de que momento se materializa este direito no processo de formação da vida humana.
Convenções e tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, como a Convenção Americana de Direitos Humanos tratam diretamente do tema e tem status supralegal, superior às leis ordinárias e abaixo da Constituição Federal (pois não foram aprovadas com o quórum exigido para se equipararem às normas constitucionais), sendo necessária, entretanto, uma cautelosa observação dos textos legais e a compatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio.
As lacunas e conflitos existentes nestas fontes legislativas demandam que seja esmiuçado o posicionamento de cada uma delas. O problema se encontra não no conceito de aborto, pois a doutrina jurídica e a medicina já se encarregaram de fazê-lo, mas sim a partir de que momento se se dá o início da vida juridicamente protegida.
É sabido que o fenômeno do aborto caminha numa via praticamente distinta das que percorrem as leis. Tal fato percebe-se pela discrepância entre o número de abortos praticados e os processos existentes pela prática de tal delito, fato que apresenta como uma de suas causas a existência deste conflito entre as fontes do direito, assim como da ineficácia no seu cumprimento. Um claro exemplo disso é a comparação entre os EUA e o Brasil. Lá, onde o aborto é legalizado, com uma população de 320 milhões de habitantes, o número anual de abortos está em 730 mil, enquanto no Brasil, criminalizado, com 200 milhões de habitantes, o número está em 850 mil.
Desde a formação do nosso país aos dias atuais, o Estado ainda não conseguiu obter qualquer tipo de sucesso em conter ou diminuir os números de abortos praticados. A legislação punitiva do aborto revela-se como letra morta, ou seja, ineficaz em atingir seu objetivo último, que seria a coibição da prática abortiva. Caso não fosse este exemplo de ineficácia, o número de processos contra gestantes que praticaram o fato típico deveria ser, no mínimo, igual ao número de internações hospitalares em decorrência complicações de aborto praticado voluntariamente[1]. Da mesma forma, caso não fosse ineficaz, o número de abortos praticados anualmente em nosso país deveria estar reduzindo gradativamente, o que não procede – na verdade, conforme já exposto, aumenta-se este número a cada ano.
O aclamado jurista Miguel Reale[2] já dizia em sua teoria tridimensional do direto que “direito é fato, valor e norma”. O fato existe, a realidade do aborto ser praticado em larga escala é inegável; a norma é percebida pela sua positivação, detentora de validade formal; contudo o valor expresso pela norma é divergente do valor que a sociedade carrega em seu seio, faltando à questão do aborto este pressuposto indispensável, de suma importância.
Justamente por faltar um dos pressupostos para a sua validade plena, é que a legislação que trata do aborto se mostra ineficiente, não obtendo êxito em momento algum de nossa história no que diz respeito à redução de tal prática, tendo esta se revelado sempre presente através do tempo independentemente das leis vigentes criminalizarem esta conduta. Em verdade, sua prática é maior nos países que o proíbem do que naqueles que o permitem.
O maior dano da legislação repressiva se mostra no sentido desta acabar por funcionar como um instrumento segregador das classes sociais – mais pobre, piores meios de praticar aborto; menos pobres, melhores meios – e fator de prejuízo à saúde pública devido ao grande número de internações decorrentes de complicações de práticas abortivas clandestinas. Em face disto, faz-se necessária uma análise mais profunda da evolução deste instituto para obter uma melhor contextualização e compreensão deste na realidade de nosso país.
2. Evolução do aborto no Brasil
Apesar de ser um país de forte tradição cristã, representado pela Igreja Católica como seu maior expoente – esta sempre se mostrou veemente contra ao aborto desde tempos longínquos, não existiu em nosso país nenhuma legislação repressiva a tal conduta até 1830, quando o Código Criminal do Império do Brasil passou a defini-lo como crime. Existia apenas uma represália de cunho moral e social à respeito, não obstante a prática ter sido tão difundida a ponto de tornar o Brasil detentor da marca de país que mais pratica abortos na América Latina. O referido código trazia em seu texto que:
Art. 199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou exteriormente com consentimento da mulher pejada.
Penas - de prisão com trabalho por um a cinco annos.
Se este crime fôr commettido sem consentimento da mulher pejada.
Penas - dobradas.
Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique.
Penas - de prisão com trabalho por dous a seis annos.
Se este crime fôr commettido por medico, boticario, cirurgião, ou praticante de taes artes.
Penas - dobradas[3].
Posteriormente veio o Código Penal de 1940, o qual adotou no que diz respeito à questão do aborto, todo o ordenamento jurídico anterior, realizando poucas modificações. Só não foi praticamente igual ao código anterior porque trouxe a excludente de ilicitude nos casos de aborto em gravidez resultante de estupro e da que imprima à gestante grave risco de vida, únicas hipóteses em que pode ocorrer aborto legal, como se verá adiante.
Tal ordenamento jurídico enquadrou nosso país, conforme exposto no capítulo I deste trabalho monográfico, no grupo dos 34% que admitem a prática abortiva somente no que se refere ao aborto necessário – quando não há outro meio para salvar-lhe a vida – e no tocante ao aborto sentimental, neste fazendo-se necessário o consentimento da gestante ou de seu representante legal, quando incapaz.
Desde a data inicial de sua vigência até os dias atuais, não foi realizada qualquer alteração à respeito do aborto no código supra citado. São praticamente duzentos anos com uma legislação imutável em relação ao tema, não obstante o número de projetos de lei propostos para alterar tal situação tenha sido de grande volume.
Dos projetos de lei que tramitaram relativos ao aborto, pode-se encontrar nestes as mais diferentes posições existentes à respeito do tema, variando desde aqueles que previam a proibição de qualquer tipo de prática abortiva – mesmo que em razão dessa proibição submetesse a gestante a grave risco de vida, até a posição diametralmente oposta, onde se legalizaria todo e qualquer tipo de aborto. Revela-se deste modo, mais uma vez, que esta questão ainda se mostra deveras complexa, longe de estar pacífica, ainda mais num país com uma sociedade e culturas tão heterogêneas como as do Brasil.
Como decorrência do clamor social, houve um grande aumento na quantidade de projetos de lei visando aumentar o número de causas legais que permitiriam o aborto. Em razão deste fato, surgiram duas correntes com posições distintas à respeito do tema. Uma se auto-intitulou grupo “pró-vida”, defendendo que a vida deve ser defendida incondicionalmente, proibindo-se qualquer tipo de prática abortiva. No lado oposto, há o grupo denominado “pró-escolha”, que não obstante conter posicionamentos bastante diferentes, defende em geral o direito de escolha da gestante e a sua liberdade sexual e reprodutiva.
Dentre os inúmeros projetos propostos que previam a descriminalização do aborto, bastante interessante foi o do deputado Marcos Rolim. O parlamentar elaborou um projeto de lei em que defende a legalização do aborto até o momento da formação do córtex cerebral, processo que só se concretiza ao término do terceiro mês de gestação. O deputado valeu-se das idéias de Maurizio Mori, filósofo bioeticista para defender seu argumento. Vejamos o que dizia Mori[4]:
Pessoa é o indivíduo racional. Indivíduo é uma palavra cuja origem latina denota aquele que é indivisível na qual pode-se identificar uma relação de subordinação das partes ao todo. Tomando um embrião com oito células e dividindo-o, resultará gêmeos monozigóticos que percorrerão um desenvolvimento autônomo e diferenciado. Se, entretanto, estes dois grupos de células voltarem a unir-se, haverá, de novo, um único embrião. Até o 14º dia após a fecundação o aglomerado de células pré-embrionárias ainda não diferenciou aquelas que irão formar o feto daquelas que irão formar a placenta. Quanto ao potencial de racionalidade, segundo alguns cientistas, é inconcebível sem a presença do córtex cerebral, processo que só se anuncia ao término do terceiro mês de gestação. Antes disso, portanto, não haveria “uma pessoa”. É por isso que se costuma indicar o período dos primeiros 14 dias com o termo geral de pré-embrião. Assim, indivíduo é aquele ente que não é divisível e que, se dividido, morre ou se dissolve. Mas o pré-embrião, se for dividido, simplesmente se separa em dois gêmeos e, portanto, não é um indivíduo.
Ainda conforme o autor, a concepção é uma das várias etapas do mais amplo processo reprodutivo, mas não é absolutamente o evento que determina a diferença entre “prevenir a formação de uma vida” e “matar uma vida já formada”.
Neste sentido, os defensores do argumento favorável ao direito de escolha alegam que a discussão deve se dar no sentido de que o embrião possui apenas uma vida vegetativa e não vida intelectiva, já que ainda não ocorreu a formação do córtex cerebral. Deve se discutir em termos de possibilidade de ser, de viabilidade desta vida fora do corpo da mãe[5].
Outro argumento pertinente desta corrente é aquele que diz respeito aos sentidos do embrião. Valendo-se das ideias de Aristóteles – que há mais de dois milênios disse o aborto deveria ser permitido até o feto ser agraciado com sentidos e vida, não obstante não houvesse naquela época meios de precisar quando se dava este momento – os defensores argumentam que o aborto voluntário deveria ser permitido até o desenvolvimento do córtex cerebral, isto porque seria a partir deste momento, alegam, que o feto passaria a perceber o que está ao seu redor, ou seja, possuiria uma espécie de consciência, materializando-se nele alguns sentidos, como por exemplo a resposta a estímulos dolorosos. Antes desta fase existiria apenas um ser vivo sem sentidos, desprovido de sistema cerebral, insensível a qualquer percepção do ambiente, em estado equivalente a de um morto cerebral, como em estado vegetativo. Trata-se de um organismo que se mantém vivo apenas pelo fato de ser preservado neste estado pela “máquina” humana que representa a gestante, existindo qualquer tipo de autonomia ou manifestação individual do feto nesta fase.
Atualmente com os avanços encontrados no campo da medicina e da tecnologia, precisar este momento (que o feto passa a desenvolver o córtex cerebral) é não apenas possível, como também seguro. Entretanto desde que a medicina evoluiu e tomou postura diversa da que a lei prevê, não foi feita qualquer alteração à respeito do tema, mantendo-se por longos anos um estado de inércia do poder legislativo e de ineficiência do poder judiciário.
Pelas divergências de posicionamentos, nunca se conseguiu obter êxito nos projetos propostos em relação ao aborto, causando um entrave no legislativo e sujeitando a sociedade a uma lei defasada pelo tempo. Apesar do tema ser bastante controverso, revelando pensamentos diametralmente opostos, uma questão é inegável e não pode ser discutida: que o aborto é, independentemente de se proibi-lo ou legaliza-lo, uma questão de saúde pública.
Devido ao impasse, o quadro manteve-se inalterado, o tempo passou e a discussão sobre o tema foi retomada apenas no ano de 2007 pelo então ministro da Saúde, José Gomes Temporão, que o enquadrou como questão de saúde pública e propôs um plebiscito[6] para votar a descriminalização. As declarações contaram com o apoio de movimentos de médicos, de direitos humanos e de feministas, além de parte do governo[7].
Para entender melhor a evolução deste fenômeno e o porquê desta situação calamitosa, faz-se necessário analisar cada ordenamento jurídico relacionado ao tema e esmiuçá-lo para obter uma melhor compreensão deste fato que é, e sempre foi, presente em toda sociedade brasileira.
2.1 O Código Penal
O Código penal vigente atualmente é datado de 1940, mas na verdade tem conteúdo quase que exclusivo de legislações do século XIX, trazendo em seu texto a criminalização da prática abortiva. Prevê penas de reclusão e detenção que variam de um a dez anos, havendo ainda a possibilidade de majoração e qualificação. Seu texto traz que:
Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Aborto provocado por terceiro
Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos.
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
Parágrafo único - Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14
(quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante
fraude, grave ameaça ou violência.
Forma qualificada
Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se,
em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a
morte.[8]
De acordo com o código, pune-se três tipos de aborto em três diferentes artigos. No artigo 124 pune-se a gestante pela prática da interrupção voluntária da gravidez praticada em si mesma (auto aborto), ou que esta consente que lhe façam; no artigo seguinte existe a figura do aborto praticado por terceiro sem o consentimento da gestante, revelando-se como o mais severo, e; no art. 126, há novamente a figura do terceiro, punindo aquele que pratica o fato típico com o consentimento da gestante.
Para a figura do auto aborto (único que é crime próprio) comina-se pena de detenção, o que permite a gestante, em tese, responder ao processo em regime semiaberto ou aberto. Comina-se com reclusão as duas outras figuras. Para o aborto praticado por terceiro sem o consentimento da gestante a pena é de reclusão de três a dez anos, enquanto que havendo o consentimento da gestante, a pena é de um a quatro anos. Nestes o regime previsto é o fechado, próprio para penas de reclusão.
Além de já poderem responder em liberdade, é garantido às mulheres o direito de cumprirem pena em estabelecimento próprio e adequado. Valeu-se o legislador do princípio da proporcionalidade, adequando a situação peculiar da mulher à realidade. Ocorre que em função do péssimo sistema prisional e da ineficiência e incompetência do judiciário, na grande maioria das vezes tais garantias não são respeitadas.
Em uma análise doutrinária, o aborto criminoso trata-se de delito material de dano efetivo, consumando-se com a efetiva lesão do objeto jurídico (produto da concepção). Por descrever uma conduta (provocar) e um resultado (a morte do feto), sendo necessária a sua produção como momento consumativo. Não exige-se que haja a efetiva expulsão do feto do ventre materno, restando consumado o delito quando sobrevier a morte do feto em decorrência da prática abortiva. Em análise dos elementos do tipo no delito de aborto se perceberá que há uma fragilidade em relação aos seus elementos.
2.1.1 A fragilidade dos elementos do tipo
Há, de acordo com Hélio Gomes[9], existem quatro elementos de tipo no crime de aborto, quais sejam: dolo, gravidez, uso dos meios necessários e morte do concepto. É necessário estejam presentes todos os quatro elementos para se configurar o delito em estudo.
Dolo, gravidez e morte do concepto são analisáveis sem demais problemas. O dolo constitui o animus da agente em provocar o aborto, ou seja, a vontade direta de interromper aquela gravidez. A gravidez, óbvio, é necessária pois se trata de elemento essencial do delito, caso contrário seria atípico. Morte do concepto, como já visto, é necessária e pode ocorrer dentro ou fora do ventre materno.
Em relação aos meios necessários a abordagem é mais complicada, pois se trata de elemento de difícil constatação. Tais meios são conceituados como sendo aqueles necessários à interrupção da gravidez, podendo ser, v. g., ingestão de medicamentos, procedimentos cirúrgicos. Não havendo interferência do meio externo, ou seja, não sendo possível identificá-los, fica difícil ou até impossível sua caracterização. Assim sendo, resta apenas às autoridades médicas classificar o aborto em espontâneo. Percebe-se uma verdadeira lacuna na lei, posto que é extremamente falha no que diz respeito a exigência de tal elemento, pois de difícil constatação.
Como um profissional de saúde saberá se, v. g., uma mulher grávida atirou-se da escada visando interromper sua gestação, ou se apenas sofreu um acidente? Hipoteticamente, em um estava presente o dolo de interromper a gestação, no outro não. Ambos os casos têm em comum o fato de serem meios necessários e suficientes à interrupção da gravidez, caso contrário o abortamento não teria ocorrido; mas como constatar o dolo da gestante? Tal critério está sujeito a muito subjetivismo, seara que o judiciário não tem meios de precisar. E não tendo meios, resta apenas a palavra do sujeito ativo – a gestante. Obviamente esta, em seu depoimento, exporá o que lhe for mais benéfico e apropriado, lembrando que não sendo possível constatar o dolo, não há crime.
2.1.2 Um estudo de caso
É público e notório que o número de pessoas que prestam queixa à respeito do delito de aborto é muito reduzido, sendo praticamente irrelevante o número de casos julgados no tribunal do júri. Ocorre que, por ser um crime de ação penal pública incondicionada, ou seja, basta o conhecimento do fato delituoso pela autoridade policial para se dar início ao Inquérito Policial, a gestante que o pratica fica sujeita a chantagens e charlatanismos daqueles que souberam que a mesma realizou tal delito, sob a ameaça de reportarem a notícia do crime às autoridades. Caso o delegado de carreira tenha conhecimento através de qualquer meio da prática do delito em tela, não poderá deixar de instaurar o Inquérito Policial, sob pena de responsabilidade administrativa e criminal.
É bastante cruel o destino que se pode tomar em face deste crime apresentar esta natureza. Não poderia explicar melhor isto do que o caso real relatado na obra de Emmerick[10], onde relata que E. C. M. F., mulher pobre, moradora da periferia do Rio de Janeiro, desempregada e sem qualquer grau de instrução, mãe de três filhos pequenos, ao se ver grávida do quarto e desesperada, realizou aborto, sofrendo contudo graves complicações de saúde que a levaram ao Hospital Geral Duque de Caxias, naquela cidade. Ao ser atendida pela médica de plantão, esta reconheceu que a paciente tinha realizado aborto e acionou a polícia. Para melhor expormos a situação, transcrevo o depoimento da médica D. L. G. O. E.:
(...) que havia uma paciente de nome E. C. M. F. com sangramento transvaginal; que ato contínuo procedeu a um exame em E. constatando que a mesma havia sido submetida a práticas abortiva; que em seguida encaminhou a paciente ao centro cirúrgico onde submeteu-se a uma curetagem, tendo a mesma sido internada devido ao seu grave estado de saúde; que em seguida acionou o SD PM M., de plantão no hospital, comunicando-lhe o ocorrido; que através do procedimento médico realizado em E., pôde afirmar que devido ao tamanho do útero da mesma a gestação tinha aproximadamente 20 semanas, e que havia marcas de manipulação no colo do útero da paciente (…). (grifo do autor)
Como já não fosse bastante o sofrimento causado à ex-gestante, o delegado de polícia, sem ao menos ouvi-la efetuou sua prisão em flagrante, ordenando aos policiais que a algemassem na cama do hospital. Com base apenas no depoimento da médica e em outros depoimentos, autuou E., onde foi incursa nas penas do art. 124, arbitrando fiança de R$ 180,00 (cento e oitenta reais). Caso a indiciada não depositasse a fiança, seria recolhida ao presídio.
Por não conseguir pagar a fiança, E. foi levada ao estabelecimento carcerário estadual, onde lá ficou sem receber nenhuma espécie de tratamento pós-operatório, isto um dia depois de ter se submetido a uma curetagem, procedimento cirúrgico que requer cuidados especiais.
Pelo despacho do delegado pode-se constatar como o sistema penal, através de seus agentes, ainda é extremamente legalista e conservador, avaliando as circunstâncias do caso de forma demasiadamente restritiva, maculando a determinadas pessoas penas completamente desproporcionais ao mal cometido, ferindo profundamente a dignidade da pessoa humana.
Percebe-se mais um ponto falho da legislação pátria no que diz respeito à tentativa de funcionar como meio inibidor da prática abortiva (prevenção especial negativa). Sua ineficiência é constatada através dos dados analisados e traz para os cidadãos um problema que fere um princípio basilar do nosso Estado Democrático de Direito, alicerce de toda sociedade e albergado pelo nosso ordenamento jurídico maior, a Constituição da República, que é o princípio da dignidade da pessoa humana.
2.2 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
A Constituição Federal de 1988 representou um avanço social jamais visto na história da sociedade brasileira no que tange às garantias dos direitos humanos. Os princípios da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos foram consagrados como norteadores máximos das ações dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Nossa Carta Magna, no caput do seu artigo 5º, inc. XXXVIII, estabelece a inviolabilidade do direito à vida, atribuindo ao Tribunal do Júri competência para julgar os crimes dolosos contra a vida, dentre eles o aborto. Interpretando-se seus dispositivos, constata-se que o direito à vida tem um sentido amplo, englobando integridade física e moral, à honra, à imagem e à intimidade[11].
Ocorre que mesmo sendo direito fundamental, o direito à vida, assim como qualquer outro direito fundamental, não é absoluto, sendo passível de ser relativizado, como traz a própria Lei Maior, ao possibilitar a pena de morte “em caso de guerra declarada”, nos termos do art. 84, XIX[12].
O legislador constituinte reconheceu a vida como direito fundamental, mas propositadamente não revelou quando se inicia a vida humana juridicamente protegida, isto em face da imprecisão que se tinha à respeito do tema, visto que nem mesmo a academia e a ciência eram pacíficas quanto a esta questão. Houve inclusive uma proposta que se tutelasse a vida desde a concepção, formulada pelo então deputado Meira Filho, mas foi rejeitada pela Assembleia Nacional Constituinte.
À luz da Magna Carta, não há como se precisar quando a vida humana se inicia. Então, a partir de que momento da formação do organismo humano pode-se dizer que se constituiu um ser humano e, consequentemente, uma vida juridicamente protegida? Será correto, valendo-se dos argumentos “pró-vida” atribuir, desde sua concepção, a um ovo/embrião, pelo fato de ser uma pessoa em potencial, todos os direitos e garantias de um ser humano completamente formado e autônomo? Veremos que nossas leis não sustentam tal pensamento.
Além disso, atende aos princípios norteadores da nossa Carta Magna o posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal no que diz respeito ao aborto de fetos anencéfalos, pois nossa lei maior traz em seu art. 5º, inciso III, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante[13]”, impedindo uma cruel imposição legal de levar adiante uma gravidez, sabendo-se com plenitude de certeza que não terá êxito, uma verdadeira forma de tortura.
2.3 O Código Civil de 2002
O Código Civil traz em seu art. 2º que “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro[14].” Há, de acordo com este código, uma salvaguarda do seu direito à vida desde o momento de sua concepção. É imprescindível que se analise o conceito de concepção para se adentrar mais profundamente no tema.
Concepção, pela definição médica, é termo utilizado para designar o momento em que o espermatozoide fecunda o óvulo, formando o organismo conhecido como “ovo”. À luz do Código Civil, a partir deste momento se faria a salvaguarda dos direitos do nascituro. Qualquer interferência no produto da concepção seria, pela letra da lei, ilegal e cominaria o crime de aborto em alguma de suas formas previstas no Código Penal.
Tal posição exposta pelo Código Civil não se sustenta, pois apesar de garantir dos direitos do nascituro desde o momento inicial da concepção, trata diferenciadamente os direitos do feto e os da pessoa humana. Pode-se argumentar contrariamente no sentido que, da mesma forma, há tratamento diferenciado de alguns direitos do homem e da mulher, aplicando-se devidamente o princípio da proporcionalidade, não obstante ambos serem pessoas humanas. De acordo com este pensamento, o mesmo raciocínio deveria ser aplicado ao ovo/embrião/feto.
Não procede tal pensamento no sentido de que, apesar de homens e mulheres serem considerados pessoas humanas, não existe nenhuma hipótese em que o ordenamento jurídico pátrio contrarie tal ideia. Já em relação ao produto da concepção ser considerado um ser humano, são inúmeras as posições doutrinárias, legais e científicas contrárias a esta interpretação.
Por interpretar a letra da lei literalmente, não adentrando em seu espírito, é que ocorrem falhas como estas que podem trazer severas consequências para toda a sociedade. Caso fosse interpretado desta forma, meios contraceptivos que impedem a nidação[15] seriam afrontantes a tal conceito, assim como pesquisas com células tronco e fecundação in vitro também, pois em todos estes ocorre a destruição de um ou vários “ovos”, produtos da concepção.
Nem mesmo dentre a corrente auto denominada “pró-vida”[16] existe a referência de se proibir a utilização de meios contraceptivos que impeçam a nidação, como a conhecida “pílula do dia seguinte”. Não há sustentação lógica para o Código Civil ser utilizado como forma de se combater todo e qualquer tipo de aborto, pois são inúmeras as lacunas abertas em seu texto pelos métodos apresentados e pelas decisões judiciais que o confrontam.
2.4 A Convenção Americana de Direitos Humanos
Em 25 de setembro de 1992, o Brasil ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como o Pacto de San José da Costa Rica, que dispõe, em seu artigo 4º, que o direito à vida deve ser protegido desde a concepção, tendo status de norma supralegal.
Os defensores que se denominam “grupo pró-vida” e rejeitam qualquer tipo de aborto se valem deste pacto como sua arma mais forte na luta contra a descriminalização do aborto. Isto porque este pacto é o único documento internacional ratificado pelo Brasil que traz expressamente em seu texto que a vida humana é respeitada desde sua concepção. Vejamos a letra da Convenção:
Art. 1º, n. 2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.
Art. 3º. Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.
Art. 4º, n. 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente[17]. (grifo do autor)
É inegável que a convenção em estudo defende os direitos inerentes à personalidade e à vida do ser humano desde o momento de sua concepção. Ocorre que parece que aos olhos do grupo “pró-vida”, não foi percebida a expressão “em geral” inserida antes de “o momento da concepção”.
Ora, não se torna necessária grande fundamentação para provar que o argumento de que a Convenção em estudo serve para proibir qualquer tipo de aborto é falaciosa. Está expresso no texto que se protege “em geral”, ou seja, significa que existem exceções, não sendo de forma alguma algo absoluto. Existe, de acordo com o próprio pacto, a possibilidade de que se passe a tutelar o direito à vida em um momento distinto do da concepção.
Portanto, se torna completamente absurda a ideia de se utilizar deste pacto para proteger incondicionalmente o direito à vida desde a concepção. Interpreta-se que a lei pode abrir exceções a este direito sem violar o pacto.
2.5 A legitimidade da religião como argumento jurídico
Por ser o maior país católico do mundo, a questão do aborto no Brasil sempre foi repleta de interferências de ordem religiosa nos debates à respeito de sua legalização e como tal não poderia deixar de ser tratada aqui.
Abertamente contra qualquer tipo de aborto, mesmo nos casos de gravidez decorrente de estupro, a Igreja Católica baseia suas ideias em dogmas e textos antigos, sem haver adequação à realidade que vivemos. Basta lembrar que esta instituição é a mesma que condena o uso de meios contraceptivos, alegando que seria “vontade divina” que o ser humano procriasse, não ponderando contudo, que milhares de pessoas são infectadas por DST (Doenças Sexualmente Transmissíveis) e que milhares também vêm à óbito em decorrência destas infecções.
Vivemos, de acordo a Constituição Federal de 1988, num país laico. Ser laico significa que não há religião oficial adotada pela República Federativa do Brasil. Respeita-se todo e qualquer culto, sem distinção entre os mesmos, conforme se conclui da leitura do art. 5º, inciso VI, da Carta Magna. Ocorre que, não sendo os grupos religiosos parte integrante de nossa estrutura jurídica, não há como posicioná-los como obstáculos jurídicos no que tange a questão da criminalização do aborto. A força de tais grupos se revela no sentido de que são instituições que representam parte da sociedade, mas que em nada se diferenciam de outros grupos, religiosos ou não, quanto a falta de legitimidade como instituição jurídica. De acordo com Lorea:
Para pensar sobre o direito ao aborto, necessariamente devemos nos ater a argumentos de ordem pública, válidos no mundo jurídico. Para tanto é preciso incorporar o conteúdo de conferências internacionais e decisões de organismos internacionais de solução de conflitos que, não obstante a sua relevância para o direito brasileiro, têm sido ignoradas por significativa parcela de nossos juristas.[18]
Desta feita, afasta-se a validade jurídica de qualquer interferência de ordem religiosa no que tange à questão do aborto, sendo necessário distanciamento de concepções sedimentadas no senso comum.
3. Causas de Permissão Legal do Aborto: os Abortos Sentimental e Necessário
De acordo com o Código Penal, não se pune o aborto em determinadas hipóteses. São elas:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Não demanda maiores explicações a primeira causa de aborto legal, bastando para que se efetive um parecer de médico competente atestando que há risco de vida para a gestante em continuar com aquela gravidez, sendo necessária à prática abortiva.
No caso do aborto de gravidez resultante de estupro, conhecido como aborto sentimental, surge um questionamento à respeito da operacionalidade prática e, consequentemente da eficiência desta medida legal, assim como da inviolabilidade do direito à vida.
Em relação à sua operacionalidade prática, este tipo de aborto legal traz consigo sérios problemas que maculam sua eficiência. É do senso comum que o estupro, assim como o aborto clandestino, inclui-se entre aqueles delitos denominados das “cifras negras”, ou seja, aqueles que as autoridades não tomam conhecimento pelo fato das vítimas não recorrerem à justiça para lhe protegerem. Tal fato se dá pela hediondez da conduta, pelo medo de retaliação social imposta à gestante, aliada à desonra humilhante e ao pudor da vítima (vitimização secundária). Receosa de ser ainda mais afrontada em sua honra, à mulher involuntariamente grávida não resta outra alternativa senão guardar silêncio. Muitas vítimas, com medo de novas humilhações, ao invés de procurarem a ajuda do vagaroso Poder Judiciário para abortarem, preferem o caminho da ilegalidade, pois recorrem a clínicas particulares, sempre clandestinas, que acabam por praticar o aborto[19].
Pode-se argumentar, com fundamento no texto da lei, que ao permitir o aborto sentimental o legislador colocou dois conjuntos de valores em confronto e mais uma vez relativizou o direito à vida. De um lado se tinha o direito à vida do produto da concepção (isto em qualquer fase da gestação), e do outro a dignidade da pessoa humana inerente à gestante, aliada às suas liberdades reprodutiva e de escolha. Neste conflito deu-se prevalência sobre o direito de escolha da mulher involuntariamente grávida em continuar, ou não, com aquela gestação.
4. Posicionamento do Supremo Tribunal Federal
4.1 O caso de fetos anencéfalos
Apesar de não tratar diretamente sobre a anencefalia, nós a utilizamos como um de seus principais argumentos na construção da teoria sobre a a tendência à descriminalização do aborto até o desenvolvimento do córtex cerebral.
O aborto de fetos anencefálicos já foi objeto de vários projetos de lei, porém apenas no Supremo Tribunal Federal houve uma decisão que repercutiu em âmbito nacional, pois oponível erga omnes, que foi com a concessão de uma liminar, como se verá adiante.
Foi no Habeas Corpus nº 84025 que houve pela primeira vez como objeto jurídico um feto anencéfalo. Tal fato deu-se em virtude de uma sentença em primeira instância ter concedido a uma gestante o direito de abortar o feto portador de anencefalia. Em face da gestante ter obtido êxito, o padre Luiz Carlos Lodi, inconformado, impetrou o remédio jurídico em favor do feto, visando impedir que sua genitora lograsse êxito em abortá-lo. A ação não chegou nem a ser julgada pois seu objeto foi perdido, visto que a criança nascera e sete minutos depois teve morte clínica.
No mês de julho do ano 2004, o ministro Marco Aurélio Mello concedeu uma liminar que autorizava todas as mulheres grávidas de fetos com anencefalia a antecipar o parto caso desejassem, reconhecendo à estas um direito equivalente ao constitucional de abortar, através da devida constatação do quadro por laudo médico. Ocorre que cerca de três meses após a concessão da liminar, no dia 20 de outubro de 2004, numa votação em plenário, o STF decidiu por suspendê-la, “fundamentando” sua decisão com o argumento da proteção da vida do feto e de que uma gravidez destas não representa uma tortura a gestante.
Na votação para manter ou derrubar a liminar do Ministro Marco Aurélio Mello, houve forte interferência da sociedade, em especial de grupos religiosos radicalmente contra o aborto. Por sete votos a quatro, a liminar foi suspensa.
Um dos votos vencidos, o Ministro Ayres Brito fez interessante fundamentação, valendo-se de metáforas em seu voto.
No caso do feto com anencefalia, o que se tem no ventre materno é algo, mas que jamais será alguém. O útero é um casulo, o feto é crisálida, mas que jamais chegará ao estágio de borboleta. Estamos discutindo sobre o direito de viver ou o direito de nascer para morrer? Existe o direito de nascer para morrer?[20]
Excluindo os votos vencidos, interessante perceber que num primeiro momento o tribunal se valeu de argumentos científicos, amparados em termos laicos, desprovido de qualquer tipo de influência externa e posteriormente muda radicalmente sua ideia, fundamentando sua decisão com os argumentos de “defesa da vida do feto” e de que “este tipo de gestação não imprime uma tortura à gestante”.
Para mostrar o absurdo desta fundamentação, segue o pensamento da classe médica em relação ao então posicionamento do STF:
A relevância dos direitos à integridade física e direitos à integridade moral, para a hipótese aqui em discussão é simples de ser demonstrada. Impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração, importa violação de ambas as vertentes de sua dignidade humana. A potencial ameaça à integridade física e os danos à integridade moral e psicológica na hipótese são evidentes. A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica. A Constituição Federal, como se sabe, veda toda a tortura psicológica (art. 5º, III) e a legislação infra-constitucional define a tortura como situação de intenso sofrimento físico ou mental (acrescente-se: causada intencionalmente ou que possa ser evitada).[21]
Percebe-se que a comunidade médica como um todo considera o feto anencefálico desprovido de vida. Então como pôde o Supremo afirmar, sem qualquer tipo de fundamentação razoável, indo de encontro aos conceitos médicos, que este feto possuiria vida, além de que a gestação destas não imprimir à gestante um tipo de tortura? Não há como concordar com uma informação vaga e descabida como esta, mesmo proferida por pessoas de notável conhecimento jurídico. É inegável a lógica e veracidade do parecer elaborado por estudiosos dentro de seu ramo de conhecimento, sendo esta decisão um verdadeiro desrespeito do Supremo àquela classe, negando veracidade às informações daquele, dando prova de que agiu muito mais ao sabor do clamor social do que da razão.
Como poderia nossa Corte Maior ter legitimidade para interferir e pré-julgar em questões intrínsecas, de cunho personalíssimo, questões estas que dizem respeito à sua sexualidade e liberdade de escolha da mulher, particularmente da gestante? Tal posicionamento, além de infundado juridicamente, é imoral do ponto de vista ético, pois faz um pré-julgamento de como a gestante irá avaliar e reagir a uma situação futura e hipotética, determinando com base em convicções pessoais e carregadas de parcialidade o modo de agir e avaliar de um determinado grupo de pessoas.
No dia 13 de abril de 2012 chegava ao fim esta questão no STF através do julgamento da ADPF 54, para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção deste tipo de gravidez é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, do Código Penal.
De acordo com o entendimento firmado, o feto sem cérebro, mesmo que biologicamente vivo, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e, principalmente, de proteção jurídico-penal. "Nesse contexto, a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida – revela-se conduta atípica", afirmou o relator.
De acordo com a Organização das Nações Unidas[22], os direitos humanos das mulheres incluem o direito ao controle e à decisão livre e responsável sobre questões relacionadas à sua sexualidade, sem coerção, discriminação ou violência. Relações igualitárias entre homens e mulheres incluem respeito à integridade da pessoa, consentimento e responsabilidade compartilhada no comportamento sexual e suas conseqüências. O tratado da ONU que regulava estes difeitos, ratificado pelo Brasil, claramente não foi respeitado com o julgado de nosso Supremo, ferindo uma norma que tem equiparação à constitucional.
Analisando-se a decisão da Suprema Corte em relação aos fetos anencéfalos, percebe-se que pelo fato de ser desprovido de cérebro, retirou-se do feto o direito à vida. O cérebro se revela assim, como um “super órgão”, capaz de ser o divisor entre se ter, ou não, o direito à vida, como se verá no capítulo seguinte, no tópico “diferencial do cérebro”.
4.2 Pesquisas com células-tronco embrionárias
Em 29 de maio de 20098, na ADI 3510, o Supremo Tribunal Federal rejeitou o pedido de reparo do art. 5º da Lei de Biossegurança e aprovou a continuidade das pesquisas com células-tronco embrionárias no país. Para entender a relação que a pesquisa com células-tronco tem a ver com o tema aborto, se faz necessário que se apresente seu conceito e processo de produção.
Células-tronco embrionárias são células retiradas de embriões humanos e possuem a singular capacidade de se diferenciar em qualquer tipo de tecido presente no organismo. São chamadas de células “pluripotentes”, podendo ser utilizadas para desenvolver curas para uma série de doenças que matam ou incapacitam milhões de pessoas, do mal de Parkinson, passando pelos diabetes até as paraplegias causadas por danos à medula. Por isto são consideradas a esperança de cura pelos pacientes que se veem impossibilitados de melhora em seu estado de saúde com tratamentos tradicionais.
O que causa polêmica é o modo como as células-tronco são obtidas. Segue abaixo as etapas do procedimento:
1 – Óvulos fertilizados em clínica de reprodução assistida se dividem num tubo de ensaio por alguns dias;
2 – Após cerca de cinco dias, eles chegam ao estágio conhecido como blastocisto, com cerca de uma centena de células;
3 – Neste estágio, o embrião é destruído e são removidas as células-tronco[23].
Então analisando-se este procedimento percebe-se que: há um produto da concepção (óvulo + espermatozoide); há a maturação deste até o quinto dia, onde chega a ficar com uma centena de células (blastocisto); e por último há a destruição deste para a remoção das células-tronco.
Conforme já exposto, percebe-se uma forte tendência de se caminhar num sentido divergente do que tratam as leis. Se fôssemos analisar apenas o aspecto formal, a decisão da Suprema Corte em dar continuidade às pesquisas com células-tronco estar-se-ia ferindo os códigos Civil e Penal, assim como a Constituição Federal e a Convenção Americana de Direitos Humanos.
Por salvaguardar os direitos do nascituro desde o momento de sua concepção, este tipo de pesquisa afrontaria abertamente a letra do Código Civil, posto que destrói os embriões para a retirada das células-tronco. Ocorre que, como já se tratou anteriormente, este ordenamento jurídico detém meramente validade formal sobre este ponto, pois confrontando-se a tutela da vida do produto da concepção em seu estágio inicial de desenvolvimento com a possibilidade de cura de doenças até então incuráveis, deu-se prevalência a este último valor. Direito, de acordo com Reale[24], é fato, norma e valor. Falta ao ordenamento jurídico em estudo o valor inerente à decisão do Supremo.
O Código Penal entra na questão quando o analisamos sob a ótica formalista. Se há o “assassínio” de um embrião, como argumentam os opositores, consequentemente haveria a prática do delito de aborto ou mesmo de homicídio. Como não há ainda “alguém” para ser assassinado, descarta-se logo esta hipótese. Em relação ao aborto, se assim fosse, o técnico que faz a extração das células dos embriões poderia ser incurso no delito do artigo 126 do Código Penal, que pune aquele que provoca aborto com o consentimento da gestante. Ocorre que como não há gestante, torna-se o crime impossível pela impropriedade absoluta de seu objeto.
A Constituição Federal, como já visto, não precisa em que momento se dá o início da vida humana e consequentemente sua proteção jurídica. Da mesma forma, expôs-se que o direito à vida não é absoluto, podendo em determinadas hipóteses ser relativizado. O mesmo raciocínio aplica-se a Convenção Americana de Direitos Humanos.
Comprova tal pensamento o fato do Supremo Tribunal Federal ter aprovado, sem restrições, a continuidade deste tipo de células no país. Cientistas que realizam pesquisas com células troncos, se utilizando de ovos fecundados para a utilização médica em pacientes com graves enfermidades poderão continuar com suas atividades. Ao adotar tal posicionamento revela-se, portanto, que o momento da materialização do direito à vida se dá em momento distinto do da concepção.
5. Legislador de Fato: Jurisprudências a Respeito do Tema
Não foi apenas a ADPF 54 do STF que permitiu o aborto de fetos anencefálicos. Segundo estimativas extra-oficiais, antes desta decisão que conferiu repercussão geral, ocorreram no Brasil cerca de 350 alvarás judiciais autorizando a prática da interrupção seletiva da gravidez em nome de anomalias fetais incompatíveis com a vida extra-uterina[25]. Como exemplo dessa grande gama, temos o emitido pela Comarca de Londrina, 2ª Vara Criminal:
Não há razão para deixar de afirmar que, no caso da anencefalia, a vida que subsiste não é propriamente falando uma vida humana, a vida de um ser humano destinado a chegar a ser (ou já) pessoa humana. Não se está admitindo a indicação eugênica com o propósito de melhorar a raça ou evitar que o ser em gestação venha a nascer cego, aleijado ou mentalmente débil. Busca-se evitar o nascimento de um feto cientificamente sem vida, inteiramente desprovido de cérebro e incapaz de existir por si só[26].
Percebe-se que há tempos existia uma tendência (através de liminares e alvarás) para a legalização do aborto de anencefálicos. Tal posicionamento reflete a validade e aceitação dos pensamentos expostos pela Suprema Corte e que embasam nossa teoria de que a vida humana juridicamente tutelada se dá apenas com o desenvolvimento do córtex cerebral..
6. Proteção do direito à vida
6.1 Direito à vida ou expectativa de direito?
Bitencourt[27] entende que, em relação ao aborto, “O bem jurídico protegido é a vida do ser humano em formação, embora, rigorosamente falando, não se trata de crime contra a pessoa”. Para este doutrinador, o feto humano não é pessoa, pois para sê-lo deve nascer com vida e adquirir os direitos e deveres inerentes à personalidade. Seria o feto em formação mero detentor de uma expectativa do direto à vida.
É bastante diferente uma expectativa de direito de um efetivo direito. Na primeira, como o próprio nome sugere, há uma possibilidade de se vir a ter um direito qualquer; já na segunda, existe concretamente um direito, seja ele oponível erga omnes ou inter partes. Ora, não é pelo fato de se haver a possibilidade de se ter determinado direito que pode se dizer que o mesmo exista efetivamente. Caso não houvesse esta diferenciação, poderíamos encontrar uma situação curiosa, como por exemplo: podemos dizer que há a possibilidade de o escritor deste trabalho vir a ser Presidente da República, pois preenche todos os requisitos exigidos em lei. Então como existe esta possibilidade, caso ele cometa um crime comum atualmente, terá o direito do foro por prerrogativa de função, devendo ser julgado como se chefe de estado e governo fosse.
Com o exemplo acima citado, fica fácil perceber a fraqueza do argumento de que uma expectativa de direito de direito à vida é igual ao efetivo direito à vida. Como ser vivo, apenas um produto da concepção, o embrião/feto não tem garantido (apenas por este fato) seu direito à vida, como se depreende da conclusão das pesquisas com células-tronco embrionárias e do aborto de fetos anencefálicos, sendo um detentor de uma mera expectativa de direito, não do efetivo direito em estudo.
7. Conclusões
Levando em consideração o exposto acima, resta descobrir a partir de que momento se passa da mera expectativa para efetivo direito à vida. Há muitas ideias implícitas em diversos julgados e decisões de nosso judiciário que revelarão o momento em que ocorre esta transição, que é de suma importância para a problemática do aborto.
Basta ao legislativo, através de seus parlamentares, ficarem atentos ao gravíssimo problema do aborto e modernizar a legislação sobre o tema, pois há indícios e provas mais que suficientes da ineficiência da legislação atual, caminhando todas as considerações expostas para que o momento da materialização do direito à vida ocorra com a formação do córtex cerebral, como já positivado em diversos países do globo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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PACHECO, Eliana Descovi. O aborto e sua evolução histórica. Disponível em <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3764/O-aborto-e-sua-evolucao-historica>. Acesso em 05 de agost. de 2009.
[1] Cf: Vimos que no Brasil, cerca de 270 mil internações são realizadas anualmente em conseqüência desta prática.
[2] REALE, Miguel. Introdução ao direito. São Paulo: Saraiva. 19 ed. 2005.
[3] BRASIL. Código Criminal do Império do Brasil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br> Acesso em 13/10/2009.
[4] Op. cit., nota 4.
[5] KALSING, Vera Simone. O movimento em defesa da vida na votação do aborto legal no Rio Grande do Sul Disponível em <http://www.sociologos.org.br/textos/outros/aborto.htm.> Acesso em 10/10/2009.
[6] Cf: Até a data da publicação deste trabalho este plebiscito ainda não tinha sido realizado.
[7] SÃO PAULO, O Estado de. No Brasil, 1 milhão de abortos ilegais por ano. Disponível em <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/clipping/outubro/no-brasil-1-milhao-de-abortos-ilegais-por-ano/> Acesso em 28/08/2009.
[8] BRASIL, Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em <http://www.planalto.gov.br.> Acesso em 20/07/2009.
[9] GOMES, Hélio. Medicina Legal. 32.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1997. p. 617.
[10] Op. Cit. Nota 15.
[11] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. RT: Brasília, 2009.
[12] Cf: Também revela-se uma relativização deste direito os casos de excludente de ilicitude, como a legítima defesa.
[13] Op. Cit. nota 32.
[14] BRASIL. Novo Código Civil. Lei 10.406 de 10/01/2002. Brasília: RT, 2009.
[15] Cf: Nidação é o momento em que, na fase de blástula, o embrião fixa-se no endométrio.
[16] Cf: Com exceção do ramo religioso, que é incondicionalmente contra qualquer tipo de meio artificial de controle de natalidade.
[17] CONVENÇÃO Americana de Direitos Humanos = PACTO de San José da Costa Rica. 22 novembro 1969. Disponível em <http://www.justica.sp.gov.br/downloads/biblioteca/Tratado%Internacional> Acesso em 10/11/2009.
[18] LOREA, Roberto Arriada. Acesso ao aborto e liberdades laicas. Horizontes Antropológicos vol.12. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-71832006000200008&script=sci_arttext.> Acesso em 02/09/2009.
[19] GOMES, Tiago. Aborto e direito. Disponível em <http://www.aborto.com.br/artigos/abortoedireito.htm>. Acesso em 17/10/2009.
[20] GALUCCI, Mariana. Anencefalia: STF proíbe aborto. Folha Online. São Paulo: 21 de out. de 2004. Disponível em <http://www.sistemas.aids.gov.br/imprensa/Noticias.asp?NOTCod=60256>. Acesso em 10/10/2009
[21] Portal Comunidade Médica. Disponível em <www.sbdp.org.br/arquivos/material/64_peticao_inicial_2.pdf> Acesso em 14/10/2009.
[22] Organização das Nações Unidas. Declaração universal dos direitos humanos. São Paulo: 29 de maio de 2008. Disponível em <http://www.onu-brasil.org.br/> Acesso em 05/11/2009.
[23] SÃO PAULO, Folha de. Saiba como são obtidas as células-tronco embrionárias. Disponíve em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u406603.shtml> Acesso em 01/11/2009.
[24] Op. Cit. nota 23.
[25] DINIZ, Débora. Aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais. Disponível em <http://www.portalmedico.org.br/revista/bio1v5/abortsele.html> Acesso em 20/10/2009.
[26] Cf: Alvará emitido pela Comarca de Londrina, 2ª Vara Criminal: 02 diagnóstico: anencefalia; em 01/12/1992.
[27] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 158. v. 2.
advogado criminalista, especialista em Direito Penal, Processual Penal e Segurança Pública pela FESP/PB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRé BELTRãO GADELHA DE Sá, . O aborto na lei brasileira e suas tendências legislativas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 ago 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47429/o-aborto-na-lei-brasileira-e-suas-tendencias-legislativas. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: LEONARDO DE SOUZA MARTINS
Por: Willian Douglas de Faria
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