Resumo: O presente trabalho busca trazer uma breve perspectiva comparada na teoria das normas de Hans Kelsen e Herbert Hart. Através de uma análise de duas paradigmáticas obras dos dois autores, busco trazer à tona duas perspectivas tão distintas e ao mesmo tempo tão conexas no campo das teorias normativas alemãs. O desenvolvimento se dá homogeneamente no método comparativo e ao final o trabalho é encerrado em uma breve análise do conjunto estudado.
Palavras-chave: Hans Kelsen; Herbert Hart; legitimação; normas.
1. Introdução
Hans Kelsen e Herbert Hart buscam, em suas devidas obras, construir, de modo geral, um estudo de análise profunda e particular do funcionamento das normas. Ambos discorrem embasados em uma norma máxima (a que cada um dá um nome diferente) que regula e estatui as normas inferiores, porém com natureza verdadeiramente distinta para cada um deles. Outro ponto contrastante é o caráter da evidência das normas: para Hart é integralmente empírico, que necessita de um critério de reconhecimento estável para as normas, enquanto para Kelsen é primordialmente metafísico, a norma é regulada por diretrizes que não estão explícitas em lugar algum.
Mais um aspecto importante é o das fontes de Direito: Hart defende essa ideia dizendo que existem muitas fontes de Direito, jurídicas e não-jurídicas; enquanto Kelsen defende primordialmente a criação como algo exclusivo do Direito. E por último, a dessemelhança no que tange ao que satisfaz cada um ao tentar buscar suas explicações: Kelsen tenta a todo momento se manter plenamente fiel ao campo jurídico; enquanto Hart deixa claro já ao postular sua norma máxima que aceita fundamentos não-jurídicos para sua tese. São muitos os pontos tratados, nestes textos, por Kelsen e não por Hart, porém a obra deste ainda se comprova ampla ao possibilitar a construção de um paralelo entre os dois autores.
2. Desenvolvimento
2.1 Tópico I
Hans Kelsen exibe a norma fundamental (nome dado à sua norma máxima) de modo metafísico: como um axioma; isto é, uma ideia intuitiva, que não está explicitada em lugar algum, mas que exerce uma função; no caso, uma função jurídica de justificar o julgamento último de superioridade. A norma fundamental é o “fundamento supremo de validade da ordem jurídica inteira” (KELSEN, Hans. 2005. p. 181), ou seja, é o principal aspecto de validação das normas do sistema. A partir disso é construída a ideia de hierarquia das normas, em que a ordem jurídica não é “um sistema de normas coordenadas entre si” (KELSEN, Hans. 2005. p. 181) mas sim “uma hierarquia de diferentes níveis de normas” (KELSEN, Hans. 2005. p. 181), e que constrói sua unidade através da dinâmica das normas, em que uma norma inferior é criada com base em uma superior e essa superior com base em uma acima dela e assim até que se alcance a norma fundamental, que não está sob nenhuma outra norma.
Herbert Hart apresenta uma noção próxima à de Kelsen ao tratar da norma de reconhecimento (sua norma máxima) como sendo uma norma que “oferece critérios para a avaliação da validade de outras normas, mas difere delas pelo fato de que não existe outra norma que forneça critérios para a avaliação de sua própria validade jurídica” (HART, Herbert. 2009. p. 138), e dessa forma, estrutura uma hierarquia de validação das normas; porém, Hart define o sistema de ordem jurídica como sendo uma grande conjugação de normas primárias à uma norma secundária (a norma de reconhecimento) e não uma hierarquização de criação (como é a de Kelsen), existe apenas uma subordinação à norma de reconhecimento. Hart também difere de Kelsen ao caracterizar a norma de reconhecimento de um modo empírico: ele determina que essa norma é resultado da constante prática social da mesma.
Kelsen defende, no que tange aos diferentes estágios da ordem jurídica, a ideia de que a constituição, “representando o nível mais alto dentro do Direito nacional” (KELSEN, Hans. 2005. p. 182), num sentido material, consiste nas regras que regulam a criação das normas jurídicas gerais. No que diz respeito à determinação de normas gerais pela constituição, a constituição material designa órgãos, o processo de legislação e também, de certa forma, o conteúdo de leis futuras, de ações judiciais e administrativas e de futuros estatutos.
Quanto ao costume como designado pela constituição, Kelsen demonstra que os costumes podem ser geradores de Direito a partir do momento em que a constituição material defende tal posição. Porém, em um caso em que a própria constituição é Direito não escrito (ou seja, é Direito consuetudinário), o costume pode ser fator criador de Direito devido ao próprio costume, isto é, existem “normas não-escritas da constituição, uma norma criada consuetudinariamente de acordo com a qual as normas gerais que obrigam os órgãos aplicadores de Direito podem ser criados por costume” (KELSEN, Hans. 2005. p. 184). No que tange ao tratamento que é dado às regras do Direito consuetudinário, não existe nenhuma diferença em relação ao que é dado às do Direito estatutário (ou o que surge por meio dos órgãos legislativos); ambos se tornam Direito “apenas por meio do seu reconhecimento por parte das cortes que aplicam a regra” (KELSEN, Hans. 2005. p. 186). Desse modo, o costume é um meio criador de Direito tanto quanto o é a legislação. A central diferença entre Direito estatutário e Direito consuetudinário está no fato de que o primeiro “é criado por órgãos especiais instituídos para esse fim” (KELSEN, Hans. 2005. p. 187) enquanto o segundo “é criado pelos indivíduos a ele sujeitos” (KELSEN, Hans. 2005. p. 187).
Para Kelsen, no que concerne às normas gerais decretadas com base na constituição, o Direito estatutário e o consuetudinário tem papel duplo: um de “determinar os órgãos aplicadores de Direito e o processo a ser observado por eles” (KELSEN, Hart. 2005. p. 188), este sendo denominado o Direito formal ou adjetivo, e outro de “determinar os atos judiciais e administrativos desses órgãos” (KELSEN, Hart. 2005. p. 188), este sendo denominado o Direito material ou substantivo. Geralmente pensa-se que apenas um desses aspectos serão colocados em prática em certos cenários como a aplicação do Direito pelos tribunais, por exemplo, “pensa-se apenas no segundo tipo de normas; tem-se em mente apenas o Direito substantivo” (KELSEN, Hans. 2005. p. 188), mas “não é possível nenhuma aplicação das normas do segundo tipo sem a aplicação das normas do primeiro tipo” (KELSEN, Hans. 2005. p. 188).
Kelsen discorre com relação à determinação dos órgãos aplicadores de Direito pelas normas gerais definindo que estas designam “os órgãos judiciais e administrativos e o processo judicial e administrativo” (KELSEN, Hans. 2005. p. 189), além dos “conteúdos das normas individuais, as decisões e atos administrativos que deverão ser emitidos pelos órgãos aplicadores de Direito” (KELSEN, Hans. 2005. p. 189). Dessa forma, o conteúdo da decisão judicial é, em grande parte, previsto por uma norma geral (KELSEN, Hans. 2005. p. 190). Porém, existem certos casos em que normas gerais são emitidas por outros órgãos além do legislativo, (“liberdade” conferida por normas gerais expedidas pelo legislador). Tais normas são chamadas regulamentos. Em algumas situações semelhantes, “certos órgãos administrativos são autorizados, sob circunstâncias extraordinárias, a emitir normas gerais para regulamentar a matéria que ordinariamente deve ser regulamentada pelos órgãos legislativos através de estatutos.” (KELSEN, Hans. 2005. p. 190). A diferença entre estatutos e regulamentos tem importância jurídica “apenas quando a criação de normas gerais está, em princípio, reservada a um órgão legislativo” (KELSEN, Hans. 2005. p. 191) em específico. Se este último cenário ocorrer, então é primordial “distinguir leis num sentido material (normas jurídicas gerais na forma de uma lei) de leis num sentido formal (qualquer coisa que tenha a forma de uma lei). “Pode acontecer que uma declaração sem qualquer significação jurídica seja feita em forma de lei” (KELSEN, Hans. 2005. p. 191).
No tocante às fontes de Direito, Kelsen defende que elas não estão restritas aos métodos de criação de direito (o costume e a legislação), mas dizem respeito também ao “fundamento da validade do Direito e, sobretudo, o fundamento final.” (KELSEN, Hans. 2005. p. 192). Dessa forma, a norma fundamental é “fonte” de Direito, mas também é toda norma jurídica a partir da noção de que essas normas regulam a criação e o conteúdo de outras normas. Assim, temos uma “reação em cadeia”: “a constituição é a ‘fonte’ dos estatutos criados com base na constituição; um estatuto é a ‘fonte’ da decisão judicial nele baseado; a decisão judicial é a ‘fonte’ do dever que ela impõe à parte, e assim por diante.” (KELSEN, Hans. 2005. p. 192). A “fonte” de Direito não é portanto um fenômeno fora do Direito, pelo contrário, é “ela própria, Direito” (KELSEN, Hans. 2005. p. 192). Um outro uso da expressão “fontes” de Direito seria para designar elementos não-jurídicos que influenciam os órgãos criadores de Direito, como por exemplo, “normas morais, princípios políticos, doutrinas jurídicas, etc.” (KELSEN, Hans. 2005. p. 192). Esses elementos poderiam ser considerados verdadeiras fontes de Direito apenas ao se obrigar os órgãos criadores de Direito “a respeitar ou aplicar” (KELSEN, Hans. 2005. p. 192) tais elementos.
Quanto a esse mesmo aspecto, Hart defende a existência de fontes jurídicas e não jurídicas de Direito, ou seja, que a criação de Direito está além deste sistema, que ela pode ser não só influenciada mas também ter seu embasamento em campos como o da moral, da ética, e inúmeros outros que tiverem a capacidade de produzir qualquer coisa que tangencie o Direito. Em outro aspecto, Hart faz uma veemente discrição entre enunciados internos e externos quanto às normas. Ele defende que “o emprego de normas implícitas de reconhecimento pelos tribunais e outras instâncias para identificar normas específicas do sistema é característico do ponto de vista interno” (HART, Herbert. 2009. p. 132), os que usam essas normas desse modo explicitam “sua própria aceitação das normas como diretrizes, e essa atitude é acompanhada de um vocabulário característico, diferente das expressões típicas do ponto de vista externo” (HART, Herbert. 2009. p. 132). Nos enunciados internos as expressões (como “A lei diz que...”) usadas são características de uma avaliação em relação a diretrizes ou regras que tanto o falante quanto os outros reconhecem como válidas e que são aceitas de forma compartilhada e que, sem explicitar o fato de que é aceita, aplica-a para reconhecer como válida alguma outra norma do sistema. “Essa atitude de aceitação compartilhada de normas deve ser contrastada com a de um observador que registra, ab extra, o fato de que um grupo social aceita tais normas, sem que ele próprio as aceite.” (HART, Herbert. 2009. p. 132); a expressão característica dessa visão é: “Na Inglaterra, reconhece-se como lei...”. Esse enunciado é externo por apresentar uma linguagem típica de um observador externo que, sem aceitar certa norma de reconhecimento, enuncia o fato de que os outros a aceitam. Quando conseguimos fazer essa distinção entre essa norma de reconhecimento usada para enunciados internos e um enunciado externo sobre o fato de que a norma reconhecida é aceita, a percepção de “validade” se torna mais clara; pois esta é usado particularmente em enunciados internos, “dizer que determinada norma é válida equivale a reconhecer que esta satisfaz a todos os critérios propostos pela norma de reconhecimento e é, portanto, uma norma do sistema” (HART, Herbert. 2009. p. 133).
Quanto à relação de validade com a eficácia de uma norma, Hart defende que, se entendemos por norma eficaz uma norma que, ao exigir certo comportamento, é mais seguida que infringida, então “não existe ligação necessária entre a validade de alguma norma particular e sua eficácia” (HART, Herbert. 2009. p. 133). É importante distinguir a ineficácia de uma norma, o que pode ou não alterar sua validade, e a desconsideração plena das normas do sistema. Neste último caso podemos dizer que está ausente o contexto “para que se possa fazer qualquer enunciado interno em termos de normas do sistema” (HART, Herbert. 2009. p. 134). Quanto à questão da qualidade empirista das normas em geral, Hart defende que para que esta seja assegurada, alguém que emite um enunciado interno sobre a validade de uma norma especial de um sistema pressupõe que seja verdadeiro o enunciado factual externo de que, de modo geral, o sistema é eficaz e provavelmente continuará a sê-lo (HART, Herbert. 2009. pp. 134-135).
No que se refere à criação e aplicação de Direito, Kelsen defende que a criação de Direito é quase (existem alguns casos limítrofes que não se encaixam nesse caso) sempre aplicação de Direito na medida em que a criação significa, geralmente, aplicação de uma norma pré-existente, ou seja, aplicação de Direito; e que a aplicação de Direito significa, geralmente, a criação de uma norma, ou seja, a criação de Direito. Um exemplo é o da constituição, sua elaboração foi um caso de aplicação da norma fundamental e de criação de uma norma inferior (a própria constituição).
Quanto à função criadora de Direito, Kelsen diz que uma norma superior poder dar certa liberdade ao órgão aplicador de Direito e permitir que ele decida “o processo de criação da norma inferior e o conteúdo dessa norma” (KELSEN, Hans. 2005. p. 194); dessa forma, a norma superior apenas determina o órgão que vai obter tal liberdade no processo de criação de uma norma jurídica, esta é, a propósito, a diretriz fundamental para que esta norma pertença a uma ordem jurídica. Ou seja, “para ser ato de ordem jurídica ou da comunidade por ela constituída, todo ato criador de Direito deve ser um ato aplicador de Direito, isto é, ele deve aplicar uma norma que precede o ato” (KELSEN, Hans. 2005. p. 194). Dessa forma, podemos dizer que o fato de a criação de Direito ser, ao mesmo tempo, aplicação de Direito é uma consequência imediata do fato de que todo ato criador de Direito deve ser determinado pela ordem jurídica (KELSEN, Hans. 2005. p. 195). Apenas quando os atos não estabelecem norma alguma, são mera aplicação de Direito; tal cenário ocorre, por exemplo, na “execução de uma sansão num caso concreto” (KELSEN, Hans. 2005. p. 195); e o outro caso análogo à este é o da norma fundamental, “ela determina a criação da primeira constituição; mas (...) sua suposição não é, ela própria, determinada por nenhuma norma superior, e, portanto, não é aplicação de Direito (KELSEN, Hans. 2005. p. 195).
Tendo em consideração as normas individuais criadas com base em normas gerais, Kelsen defende a ideia de que os atos judiciais aplicam uma norma geral do Direito estatutário ou consuetudinário ao mesmo tempo que criam uma “norma individual que estipule que uma sanção definida seja executada contra um individuo definido” (KELSEN, Hans. 2005. p. 196). Entretanto, o ato judicial pode ser visto também como um processo criador de Direito a partir de uma perspectiva dinâmica, em que “a norma individual criada pela decisão judicial é um estágio de um processo que começa com o estabelecimento da primeira constituição, é continuado pela legislação e pelo costume, e conduz a decisões judiciais. O processo é completado pela execução da sanção individual” (KELSEN, Hans. 2005. p. 196). Dessa forma, “o processo através do qual o Direito se recria constantemente vai do geral e abstrato ao individual e concreto.” (KELSEN, Hans. 2005. p. 196). É importante salientar que a decisão judicial se mostra verdadeiramente como um processo constitutivo, é verdade que ela usa de normas pré-existentes, mas a conexão das sanções concretas com as normas abstratas é feita pelo tribunal. A decisão judicial possui caráter constitutivo também no sentido de que “averigua os fatos que condicionam a sanção” (KELSEN, Hans. 2005. p. 197), ou seja, traz ao campo do direito tais fatos, “tornando-os” fatos jurídicos e, assim, relevantes ao Direito.
2.2 Tópico II
Kelsen, ao discorrer sobre a transação jurídica, defende que esta, ao dar aos indivíduos que a compõem a possibilidade (através da ordem jurídica) de regular certas relações, traz “aos indivíduos certa autonomia jurídica” (KELSEN, Hans. 2005. p. 199) e, dessa forma, traz mais possibilidades de vínculos entre os indivíduos. A partir da noção de que transações jurídicas geram direitos e deveres para as partes participantes, podemos dizer que uma transação jurídica pode produzir normas secundárias; secundárias pois elas só produzem consequências jurídicas quando ligadas às “normas gerais primárias que vinculam uma sanção à quebra de uma transação. Aqui, a norma secundária, estipulando diretamente a conduta lícita das partes, não é uma mera elaboração auxiliar da teoria jurídica (...) ela é o conteúdo de um ato jurídico previsto pela norma primária geral como condição da sanção.” (KELSEN, Hans. 2005. p. 200).
Kelsen trata do contrato como sendo “a transação jurídica típica do Direito civil” (KELSEN, Hans. 2005. p. 204). Nos contratos, as declarações das partes determinam certas ações esperadas dessas partes, porém é primordial que a vontade efetiva dessas componentes esteja no acordo, caso contrário, esse processo não poderia passar por uma instituição jurídica. Se existir, entretanto, uma grande diferença das vontades das partes, esse impasse deverá ser extinguido, de múltiplas maneiras, “pelo legislador ou pelo órgão aplicador de Direito” (KELSEN, Hans. 2005. p. 204). Considerando-se os casos em que as declarações das partes componentes são aceitas umas pelas outras, tem-se então que esse contrato consiste em uma oferta e uma aceitação; porém se surgir qualquer tipo de divergência entre os dois lados, caberá, mais uma vez, ao legislador ou ao órgão aplicador de Direito extinguir esse impasse. Quanto às normas derivadas do contrato, é de extrema importância que ambas as partes contratantes tenham vontades paralelas, ou seja, tenham intenções harmoniosas durante a construção do contrato, pois essas normas permanecem válidas mesmo que as vontades das partes mudem; a única saída que as componentes podem ter para tornar a norma nula é a criação de outro contrato que torne o anterior nulo, ou seja, através de “uma norma contrária criada por outro contrato” (KELSEN, Hans. 2005. p. 206).
2.3 Tópico III
Quanto à natureza do Direito constitucional, Kelsen defende que a função dos tribunais é verificar se a ação dita pelo promotor público ou pelo queixoso privado como um delito tem relação com uma norma da ordem jurídica, e se essa norma estabelece uma sanção; assim, o tribunal tem o papel de tanto verificar a questão de fato quando quanto de realizar uma análise da ordem jurídica. Atentando particularmente ao fato de a norma ser válida ou não: sendo válida ela será aplicada, mas no caso contrário, não pode ocorrer a aplicação da sanção. Outro ponto relevante é o de que a norma a ser aplicada pelo tribunal deve ter sido elaborada de acordo com as constituição, ou seja, de acordo com as diretrizes de criação de normas jurídicas. Assim, “as normas da constituição que regulam a criação das normas gerais a serem aplicadas pelos tribunais e outros órgãos aplicadores de Direito não são, desse modo, normas completamente independentes. Elas são partes intrínsecas de todas as normas jurídicas que os tribunais e outros órgãos têm de aplicar” (KELSEN, Hart. 2005. p. 208).
2.4 Tópico IV
A respeito da relação entre o ato judicial e a norma preexistente aplicada pelo ato judicial, Kelsen discorre que, da perspectiva dinâmica, a norma individual criada pelo tribunal é baseada em uma norma geral, superior, assim como esta última é criada a partir da constituição. Esse embasamento ocorre devido a determinações que vem das normas superiores, e que pode ser de diferentes níveis; e assim, podem existir casos em que o tribunal está livre para “decidir os casos concretos de acordo com seu próprio arbítrio” (KELSEN, Hans. 2005. p. 209). Porém, mesmo nesses casos, o tribunal não é apenas criador de Direito, é também aplicador de Direito (direito adjetivo), pois faz uso de uma norma pré-existente: a norma que diz que esse tribunal tem a liberdade de decidir casos concretos de acordo com seu próprio arbítrio.
Quanto ao caso do juiz como legislador, Kelsen defende que no caso de não existir nenhuma norma, ou de o tribunal julgar tal norma insatisfatória, que diz respeito à questão levantada pelo promotor ou pelo queixoso, uma opção é a de permitir, pela ordem jurídica, que o tribunal decida o caso de acordo com o seu próprio arbítrio, ou seja, que ele crie “Direito substantivo para o caso concreto sem que sua decisão seja determinada por uma norma geral preexistente de Direito substantivo” (KELSEN, Hans. 2005. p. 211). É importante observar que mesmo quando o tribunal define a decisão judicial embasado na ordem jurídica, será necessária sempre a complementação desta, posto que uma norma geral nunca é detalhada o suficiente para “cobrir” todos os cenários possíveis. Dessa forma, “o juiz portanto, é sempre um legislador” (KELSEN, Hans. 2005. p. 212) e o Direito sempre tem uma resposta, ou seja, uma solução à qualquer caso levantado. Essa tese pode dar a impressão de conceder uma liberdade excessiva ao jurista, quase ilimitada; e foi por essa razão que Kelsen formulou, posteriormente, a Teoria da Moldura. Nessa teoria, Kelsen defende que o espaço deixado em aberto pelas normas, os assuntos e os detalhes não abordados por ela, são espaço que o jurista tem para se “movimentar” e ali estabelecer a decisão judicial. Dessa forma, existe um limite de atuação “livre” do jurista, o que impede que decisões sejam tomadas com demasiada arbitrariedade.
2.5 Tópico V
Quanto às lacunas do direito, Kelsen concebe-as como uma plena ficção. Essas lacunas seriam os casos fictícios em que “o Direito vigente não pode ser aplicado a um caso concreto porque não existe nenhuma norma geral que se refira a esse caso” (KELSEN, Hans. 2005. p. 212). Nessas ocasiões, o juiz não será obrigado a rejeitar o caso, ele “terá a possibilidade de estipular, na condição de legislador, a obrigação sustentada para o caso concreto” (KELSEN, Hans. 2005. p. 213), e também contará com a opção de aplicar uma regra negativa: a de que ninguém é obrigado a cumprir obrigação que não está estipulada pelo Direito, e assim rejeitar o caso. Ao escolher esta última opção, “o juiz indubitavelmente aplica Direito válido” (KELSEN, Hans. 2005. p. 213). A situação em que o juiz “está autorizado a decidir uma dada disputa uma condição de legislador não é – como a teoria das lacunas pretende – o fato de a aplicação do Direito efetivamente válido ser logicamente impossível, mas o fato de que a aplicação do Direito efetivamente válido é – segundo a opinião do juiz – inadequada jurídica e politicamente” (KELSEN, Hans. 2005. pp. 213-214).
Kelsen continua ao dizer que o fato de dar ao juiz a possibilidade de agir como legislador nos casos em que este julgar uma norma injusta ou iníqua dá (assim como no cenário tratado no tópico V) demasiada liberdade “ao arbítrio do juiz, já que esse poderia julgar a aplicação da norma criada pelo legislador inadequada em muitos casos” (KELSEN, Hans. 2005. p. 214). Esse é a principal razão do uso da ficção das “lacunas de Direito”, “ou seja, a ficção de que o Direito válido pode ser logicamente inaplicável a um caso concreto” (KELSEN, Hans. 2005. p. 214). A ficção limita a atuação do juiz como legislador no sentido de que restringe-a a casos onde a acusação levantada pelo queixoso ou promotor “não está estipulada nenhuma norma geral” (KELSEN, Hans. 2005. p. 214); e tem um efeito psicológico no âmbito de que, ao autorizar ao juiz a atuação como legislador em casos de “lacuna do Direito”, permanece “oculta a verdadeira natureza da condição, que é de a aplicação do Direito – apesar de logicamente possível – parecer injusta ou iníqua. O efeito disso pode ser o de que o juiz faça uso da autorização apenas naqueles casos razoavelmente raros em que lhe parece tão evidentemente injusto rejeitar a demanda do queixoso que ele se sinta compelido a crer que tal decisão é incompatível com as intenções do legislador” (KELSEN, Hans. 2005. p. 215). A teoria das lacunas pode então ser concluída como uma ficção pois “é sempre logicamente possível, apesar de ocasionalmente inadequado, aplicar a ordem jurídica existente no momento da decisão jurídica.” (KELSEN, Hans. 2005. p. 215).
Quanto às normas gerais criadas por atos judiciais, Kelsen defende que esse é um fenômeno possível ao se generalizar uma norma individual, criada pela decisão judicial, a todos os casos semelhantes ao que foi tratado por essa norma; assim, essa decisão judicial passa a “ter caráter de um precedente, isto é, de uma decisão obrigatória para a decisão futura de todos os casos similares.” (KELSEN, Hans. 2005. p. 216); e é esse caráter de obrigatoriedade que é a essência do precedente. O caráter criador de Direito dos tribunais se manifesta principalmente nesses casos em que a decisão judicial tem a marca de um precedente, “ou seja, quando a decisão judicial cria uma norma geral” (KELSEN, Hans. 2005. p. 216). Onde esse fenômeno é plenamente livre, “os tribunais são órgãos legislativos exatamente no mesmo sentido em que o órgão é chamado legislativo no sentido mais restrito e comum do termo.” (KELSEN, Hans. 2005. p. 216). É importante distinguir esses casos de criação dos casos de criação por costume: aqui é falada da generalização de uma decisão isolada de um tribunal.
Kelsen defende que assim como a visão de que os tribunais apenas aplicam o Direito está errada, a visão oposta, de que os tribunais não aplicam nenhum Direito, é igualmente errônea. Essa última visão é sustentada por John Chipman Gray, ele diz que são os órgãos judiciais os verdadeiros criadores de Direito, enfatiza que é o fato de os tribunais aplicarem regras que faz delas Direito e que não existe “o Direito” separado dessas regras e que são os juízes os verdadeiros autores do Direito. Para provar seu ponto, Gray dá o exemplo dos casos que não são cobertos pelo direito; porém Gray subestima o fato de que o tribunal, nesses casos tem a opção de recusar o caso levantado, aplicando assim o Direito positivo e sendo plenamente fiel ao Direito vigente; além disso, há ainda a possibilidade de resolver o caso através da criação de uma nova norma ou por analogia, porém esses cenários só seriam possíveis se a ordem jurídica permitisse ao tribunal tal liberdade, ou seja, existe aqui novamente a aplicação de uma norma pré-existente, no caso, de um Direito adjetivo.
2.6 Tópico VI
Quanto aos conflitos entre normas de diferentes estágios, Kelsen defende que quem tem o poder de dizer se uma norma inferior corresponde à superior, “se a norma individual da decisão judicial corresponde às normas gerais de Direito estatutário é consuetudinário” (KELSEN, Hans. 2005. p. 223), é um órgão que diz respeito à norma superior. Inclusive “se o queixoso ou o réu acredita, que a decisão do tribunal não corresponde às normas gerais do Direito estatutário ou consuetudinário que os tribunais têm de aplicar nos eu caso, eles podem apelar para outro tribunal superior” (KELSEN, Hans. 2005. p. 223); este tribunal então tem o poder de anular a decisão do tribunal inferior ou de elaborar sua própria decisão jurídica. Esse é o processo que busca garantir a legalidade das decisões judiciais. Porém, esse “encadeamento” deve ter um fim, para que haja um fim do conflito entre as partes. E para isso, deve haver um tribunal de instância suprema, autorizado a dar a última palavra quanto à disputa, sendo então impossível de ser anulada ou modificada (o caso se tornou res judicata). Nesse caso temos um cenário em que uma norma não corresponde à qualquer superior.
Quanto ao problema do estatuto inconstitucional, Kelsen primeiramente já estabelece uma observação a respeito do termo usado: dizer um estatuto inconstitucional é não dizer de estatuto algum pois para que um estatuto seja considerado verdadeiramente estatuto, ele tem de estar de acordo com as diretrizes estipuladas na constituição. Porém, considerando um possível estatuto que vá de encontro à constituição, este seria ordinariamente anulado através de outro estatuto. Em um cenário em que a constituição estabelece certas diretrizes a serem observadas na criação de um estatuto, é primordial a designação de um órgão que averigue se essas diretrizes estão verdadeiramente sendo observadas pelos legisladores. Se a constituição não estabelecer nenhum órgão, o próprio corpo legislativo vai se encarregar de tal tarefa. Assim, “tudo o que fora aprovado pelo órgão legislativo como estatuto tem de ser aceito como um estatuto no sentido da constituição. Nesse caso, nenhum estatuto decretado pelo órgão pode ser considerado ‘inconstitucional’.” (KELSEN, Hans. 2005. p. 225). Assim, a aplicação das regras constitucionais referentes à legislação só pode ser garantida se for confiada a outro órgão que não o próprio legislativo a tarefa de averiguar se uma lei é ou não inconstitucional (Kelsen, Hans. 2005. p. 226). Esse órgão controlador deve então ter o poder de anular o estatuto que vá de encontro à constituição e assim impedir que ele seja usado em decisões judiciais futuras. Para evitar o surgimento de estatutos “inconstitucionais” a constituição pode estabelecer a responsabilidade pessoal do órgão, ou seja, determinar que o órgão que participar da criação de certo estatuto que vá de encontro à constituição seja devidamente punido por tal ato.
Por último, no tocante à nenhuma contradição entre uma norma inferior e uma superior, Kelsen determina esse cenário possível devido ao caráter alternativo da norma superior. “A autoridade competente estabelece a existência jurídica de tal contradição anulando a norma inferior. A ‘inconstitucionalidade’ ou ‘ilegalidade’ de uma norma que, por um motivo ou outro, tem de ser pressuposta como válida significa, assim, ou a possibilidade de esta ser anulada, ou a de ser nula. Sua nulidade significa a negação da sua existência pela cognição jurídica.” e “a unidade da ordem jurídica nunca pode ser ameaçada por qualquer contradição entre uma norma superior e uma inferior na hierarquia do Direito.” (KELSEN, Hans. 2005. p. 233).
3. Conclusão
Hans Kelsen consegue, com triunfo, arquitetar um viável e autêntico ordenamento das normas dentro do sistema jurídico a partir da noção que estabelece como norma máxima desse sistema a norma fundamental, ou seja, uma norma que não depende da “contribuição” geral, e sim que tem sua própria força de coerção e de imposição sobre as pessoas que estão sob ela. Desse modo, esse ordenamento constrói uma grande estabilidade e disciplina; o que permite a ele servir, também, como um suporte de recurso e apoio no caso de qualquer incoerência interna que surja, além de funcionar como primordial ferramenta de legitimação dos agentes, instituições e normas dessa ordenação.
Creio que aí é que está o grande êxito da sua tese: a grande proximidade das condições encontradas hoje no cenário real, o que possibilita uma aproximação lógica à organização efetiva das normas. Enquanto Herbert Hart consegue, é verdade, através da explanação e embasamento de sua tese, construir também uma composição das normas, tendo como base a norma de reconhecimento; ou seja, uma norma que surge da prática social da mesma. O que é possível, mas não viável, pois um sistema que depende em tal grau da “cooperação” das pessoas, não tem uma base sólida o suficiente para conseguir se sustentar. A principal e fatal falha da tese de Hart é essa: a de não pensar em todas em situações dentro do sistema do Direito, de se conformar com respostas não-jurídicas para problemas jurídicos.
4. Referências bibliográficas
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, pp. 129-142 (cap. V. 3).
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 4a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 181-233 (cap. V.2).
Acadêmico de Direito da Universidade de Brasília. Atualmente Graduando de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIEIRA, Marcelo Alves. Sistema Jurídico e Construção das Normas: Uma Perspectiva Comparada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 set 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47488/sistema-juridico-e-construcao-das-normas-uma-perspectiva-comparada. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
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