RESUMO: O presente artigo aborda a questão do tráfico internacional de pessoas, especialmente sob sua perspectiva histórica. Assim, serão apontadas suas origens, sendo feita também uma comparação com institutos similares, explicando-se porque este problema é conhecido como escravidão moderna. Investigando-se os tratados que surgiram para disciplinar o tema, percebe-se que há uma evidente relação entre o tráfico de pessoas e a tutela jurídica dos direitos das mulheres. Por fim, conclui-se que atualmente o tema tem encontrado espaço para discussão, bem como tem sido combatido através de políticas públicas e da atuação do Ministério Público e do Judiciário, além da tutela do direito penal.
PALAVRAS-CHAVE: Tráfico de pessoas. Tráfico internacional. Escravidão moderna.
ABSTRACT: This article addresses the issue of international trafficking in persons, especially through its historical perspective. Thus, it will indicate its origins and also make a comparison with similar institutions, explaining why this problem is known as modern slavery. Investigating the treaties which came to discipline the subject, it is clear that there is a clear link between trafficking in persons and the legal protection of women's rights. Finally, it is concluded that currently the subject has found room for discussion and is been combated through public policies and actions of the Prosecution Service and the Judiciary, as well as protection of the criminal law.
KEYWORDS: Trafficking in persons. International trafficking. Modern slavery.
1. INTRODUÇÃO
Tráfico internacional de pessoas é um gravíssimo problema, seja atualmente, seja na forma como já se apresentou em outras épocas e atenta contra os mais elementares direitos fundamentais conquistados pelo ser humano ao longo da história.
Muitas vezes ocorre em um cenário no qual determinadas pessoas, insatisfeitas com as condições de vida nos países em que residem, são ludibriadas por traficantes que visam ao lucro fácil através da exploração de uma mão de obra escrava.
Não apenas repudiado pelo Brasil criminalmente, vez que se assiste à violação de seu Estado Democrático de Direito, é também - e principalmente - objeto do direito internacional privado, sendo conteúdo de diversos tratados internacionais.
O presente trabalho visa ao estudo do fenômeno do tráfico internacional de pessoas. Para tanto, primeiramente será comparado e diferenciado de institutos similares. Em seguida, apresentar-se-á a evolução histórica da questão, através do apontamento dos diversos Tratados Internacionais condizentes ao tema. Por fim, será analisado o panorama atual da matéria. Ainda, o modo como a questão é tratada no Brasil também será objeto, bem como seu panorama atual.
2. TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS E INSTITUTOS SIMILARES
O conceito de tráfico internacional de pessoas amplamente aceito por nosso ordenamento jurídico, atualmente, é aquele que se encontra no Artigo 3 do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças.
Segundo lá definido, tráfico de pessoas compreende o "recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração" (2004).
O tráfico internacional de pessoas não é um problema recente. Diz-se tratar de uma verdadeira escravidão, com as peculiaridades da modernidade. O problema "é um claro aprimoramento do fenômeno da escravidão" (FALANGOLA, 2013).
Escravidão e tráfico internacional confundem-se, inclusive, em vários aspectos. Ambos visam ao lucro, mediante exploração de outrem. Também, dão-se mediante tráfico. Convergem até mesmo na origem: pode ser considerado que as primeiras formas em que ocorreram os eventos foram através dos navios negreiros, utilizados, essencialmente, para o tráfico de negros visando ao trabalho escravo.
Há que se reconhecer, porém, que na "antiga" escravidão, o domínio sobre a pessoa escravizada era, infelizmente, legítimo. Já na "moderna" escravidão, não há qualquer licitude na relação da pessoa traficada, que trabalha em regimes sub-humanos para seu traficante.
Por outro lado, o tráfico internacional de pessoas não iguala com o tráfico de imigrantes. Este é entendido como "o auxílio a outrem na entrada ilegal em um país com vista em um benefício econômico" (BARBOSA, 2009).
Logo se percebem as diferenças: no tráfico de imigrantes, há mero auxílio à entrada ilegal em outro país. A relação encerra-se com a chegada da pessoa no país de destino. Já no tráfico internacional de pessoas, há uma clara relação de submissão da pessoa migrada ao traficante, que somente se inicia com a chegada ao país de destino, perdurando-se indefinidamente.
Diversas são as causas para o problema do tráfico internacional de pessoas. Uma delas trata-se da discriminação de gênero (feminino): nossa realidade histórica, e que persiste nos dias atuais "na qual muitas vezes as mulheres encontram-se submetidas a abusos e maus-tratos em sua própria comunidade, corrobora para sua posição de vulnerabilidade diante do tráfico" (BARBOSA, 2009).
Outra causa que pode ser apontada é a globalização, que reduz fronteiras e propaga melhores condições de vida em países desenvolvidos.
Também, há que se considerarem os conflitos armados que ocorrem no âmbito interno dos países, obrigando as pessoas a fugirem do território em que se encontram.
Não se olvide ainda a questão da emigração ilegal: há, nos países mais desenvolvidos, diversa gama de empregos indesejados pela população nativa, os quais são ocupados pelos imigrantes ilegais, que vivem à margem da sociedade e das leis.
Relevante listar ainda, como uma última causa, a corrupção, através da qual autoridades e servidores públicos cooperam com a passagem de traficantes pelas fronteiras, em troca de benefícios próprios.
No direito interno do Brasil, o tráfico internacional de pessoas é crime, desde que para fins de exploração sexual (art. 231, CP). A seguir se verá a vinculação sexual que possui tal prática. A outra modalidade também recorrente, qual seja para fins de trabalho escravo, amolda-se ao artigo 149 do CP (redução à condição análoga à de escravo).
A competência, no âmbito interno, é da Justiça Federal. Se omissa ou insuficiente, possui o Tribunal Penal Internacional competência complementar.
3. TRATADOS, LEGISLAÇÃO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA
É interessante analisar os tratados que regram o tema junto da evolução histórica, afinal, a evolução se concretiza justamente através da celebração de acordos entre países (JESUS, 2003).
Sendo impossível dissociar a origem do tráfico de pessoas àquela da escravidão, importante lembrar-se de sua legislação abolicionista. Assim, fala-se que uns dos primeiros tratados internacionais abolicionistas foram o Acordo - em 1904 - e a Convenção - em 1910 - Internacional para Supressão do Tráfico de Escravas Brancas (JESUS, 2002, p. 28).
Em relação ao tema do tráfico de pessoas mais especificamente, um dos primeiros documentos envolvendo o tema foi a Convenção e Protocolo Final para a Supressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio, de 1950, e promulgado no Brasil através do Decreto n. 46.981/1959.
Igualmente, tem-se a Convenção sobre Escravatura de 1926, promulgada no Brasil pelo Decreto n. 58.563, visando coibir tal prática.
Ainda no mesmo contexto, foi acordada a Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU/1948. Muito embora não seja um tradado ratificado pelo Brasil, trata-se de um documento que possui como fundamento a dignidade da pessoa humana, princípio extraído por nosso ordenamento jurídico.
No mais, também tem sua importância a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979.
Outro documento extremamente importante é a Convenção de Palermo (1949), ou mais especificamente, um protocolo adicional àquela: o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças.
Ratificado pelo Brasil apenas em 2004, (Decreto 5.017/2004), traz o atual conceito de Tráfico Internacional de Pessoas, como anteriormente exposto. Ainda, inclui qualquer forma de exploração, que não apenas a sexual.
No tocante à legislação interna, nosso Código Penal tipifica o Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual (art. 231). Antigamente, apenas a prostituição era a finalidade típica. Inclusive, falava-se apenas em tráfico de mulheres. Com a Lei n. 11.106 e posteriormente a Lei n. 12.015/09, porém, qualquer forma de exploração sexual, contra qualquer gênero, foi enquadrada como conduta típica.
De qualquer forma, percebe-se a forte vinculação do tráfico de pessoas com a exploração sexual.
4. PANORAMA ATUAL
Atualmente, o quadro do Tráfico Internacional de Pessoas encontra cada vez mais visibilidade e espaço para debate, bem como sendo realizadas medidas concretas buscando findá-lo. O primeiro passo realizado em busca ao combate dessa prática foi, e continua sendo, a realização de coleta de dados, para obtenção de informações, por órgãos como o Ministério da Justiça, Conselho Nacional de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público, ONGs etc.
Em seguida, a partir das informações e dados obtidos, realizam-se medidas concretas, como o aperfeiçoamento da regulação nas principais rotas utilizadas pelos traficantes; fortalecimento de políticas públicas e redes de atendimento; capacitação de pessoal; disseminação de informação e mobilização de pessoas.
No Brasil, em 2006, o Decreto n. 5.948/06, aprovou-se a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que tem por finalidade estabelecer princípios, diretrizes e ações de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e de atendimento às vítimas.
Em 2008, pelo Decreto n. 6.347/08, foi instituído o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, com vistas a concretizar as diretrizes da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
Em 2013 foi instituída a Coordenação Tripartite da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, para coordenar a gestão estratégica e integrada da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, através do Decreto n. 7.901/13. A coordenação é formada pelo Ministério da Justiça; pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
No mesmo ano, realizou-se o II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Portaria Interministerial nº 634/2013), cujos avanços parecem ser positivos:
As 115 metas previstas no II PNETP, foram avaliadas em quatro categorias: ótimo, bom, ruim e péssimo, sendo 54 metas consideradas com ótimo progresso, 28 com bom progresso, 12 com um progresso ruim e, somente, duas com péssimo progresso. Com o resultado, foi possível, então, identificar que metas o governo federal deve seguir avançando e quais devem receber especial atenção nos próximos dois anos de vigência do plano.
Da análise geral das 14 atividades previstas no II PNETP, a avaliação foi positiva e demonstrou que o II PNETP está com progresso de 81,8% da média geral, o que equivale a um ótimo e bom avanço intermediário de implementação do plano. (BRASIL, 2013).
Não obstante, um ponto que dificulta gravemente a identificação dos crimes é o fato de que as vítimas, ou seja, as pessoas traficadas, muitas vezes possuem consciência e vontade de que imigrarão em outros países para executarem trabalhos marginais. O erro em que incidem, no caso, é no tocante ao modo como serão as atividades realizadas, cobranças, regime de trabalho, remuneração e, por óbvio, a total situação degradante de submissão ao traficante.
Muito embora o consentimento da vítima seja irrelevante para a caracterização do tipo penal (art. 2º, §7º, PNETP,), obsta demasiadamente à efetiva solução, de modo preventivo e permanente, do fenômeno. Muitas vezes as próprias vítimas, inocentes, desinstruídas e despreparadas, buscam pelas chamativas oportunidades apresentadas pelos traficantes.
5. CONCLUSÃO
Embora guarde semelhanças com outras manifestações criminosas e igualmente graves, o tráfico internacional de pessoas, da forma como se apresenta atualmente, possui suas peculiaridades, conquistando-lhe o nome de "escravidão moderna".
Apesar de o Brasil ter sido um dos países mais atrasados em relação à abolição do regime de escravidão, bem como ter ratificado tardiamente os diversos tratados internacionais sobre a questão do tráfico internacional de pessoas que assinara, parece estamos nos encaminhando para o rumo correto.
A criminalização, as Políticas, com suas diretrizes, e os Planos Nacionais, com medidas concretas através de operações interministeriais, bem como a estruturação, através de uma Comissão Tripartite aparenta estar apresentando resultados positivos, colocando o Brasil na posição de um verdadeiro aliado internacional no combate ao tráfico internacional de pessoas.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Cíntia Yara Silva. Significado e Abrangência do “Novo” Crime de Tráfico Internacional de Pessoas: Perspectivado a Partir das Políticas Públicas e da Compreensão Doutrinária e Jurisprudencial. PUCRS. 2009. Disponível em: < http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/trafico-de-pessoas/significado-e-abrangencia-do-novo-crime-de-trafico-internacional-de-pessoas-perspectivado-a-partir-das-politicas-publicas-e-da-compreensao-doutrinaria-e-jurisprudencial-cintia-barbosa>. Acesso em: 01/05/2016.
BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. II Plano nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas. – Brasília : Ministério da Justiça, 2013. 32 p.
_______. Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm>. Acesso em: 01/05/2016.
_______. Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006. Aprova a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e institui Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar proposta do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - PNETP. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/Decreto/D5948.htm>. Acesso em: 02/05/2016.
_______. Decreto nº 7.901, de 04 de fevereiro de 2013.
Institui a Coordenação Tripartite da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e o Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - CONATRAP. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm>. Acesso em: 01/05/2016.
FALANGOLA, Renata de Farias. Tráfico Internacional de Pessoas sob a Ótica do Direito Internacional. Fortaleza - CE. 2013. Disponível em: < http://monografias.brasilescola.uol.com.br/direito/trafico-internacional-pessoas-sob-Otica-direito-internacional.htm>. Acesso em: 01/05/2016.
JESUS, Damásio de. Tráfico internacional de mulheres e crianças: Brasil: Aspectos regionais e nacionais. São Paulo: Saraiva, 2003.
Acadêmico de Direito na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABREIRA, Thiago Guimarães. Análise histórica do tráfico internacional de pessoas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 nov 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47729/analise-historica-do-trafico-internacional-de-pessoas. Acesso em: 22 nov 2024.
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