RESUMO: O presente artigo tem como propósito conduzir o leitor a um questionamento acerca da prescritibilidade ou imprescritibilidade do crime de tortura no sistema jurídico interno brasileiro. Em um primeiro momento será analisada a tipificação penal do crime de tortura e sua definição no ordenamento jurídico pátrio e internacional para posteriormente averiguar sua prescritibilidade.
Palavras-chaves: crime de tortura; prescritibilidade; e imprescritibilidade.
ABSTRACT: The purpose of this article is to lead the reader to a question about the prescribability or imprescritibility of the crime of torture in the Brazilian domestic legal system. At the first moment, it will be analyzed the criminalization of the crime of torture and its definition in the national and international legal order to later verify its prescritibility.
Keywords: crime of torture, prescribability and imprescritibility.
INTRODUÇÃO
Tortura é um tema polêmico, desta maneira resolveu-se expor um breve estudo crítico sobre a prescritibilidade ou imprescritibilidade do crime de tortura.
Após a segunda grande guerra, nasce um movimento mundial de repúdio à tortura. A tortura ganhou força como método de adquirir provas se perpetuando como forma de exercício de uma hierarquia, sempre pautada pela demonstração da força. Por ferir bens como a liberdade e a dignidade do indivíduo, a tortura é um dos crimes mais repudiados pela sociedade. Foram criados vários tratados, alguns ratificados pelo Brasil (convenção contra a tortura ou tratamentos cruéis; convenção interamericana para prevenir e punir a tortura; estatuto de Roma).
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, III, proíbe qualquer tratamento desumano, cruel ou degradante e protege a integridade física e moral da pessoa humana como direito fundamental de primeira geração, nos termos do artigo 60, §4º, IV, da Constituição Federal. Mas a principal indagação hodiernamente sobre tortura é se esta no rol de crimes imprescritíveis.
Historicamente, a tortura se apresentou como um instrumento para obtenção de prova por meio de confissões. No Brasil o golpe militar de 1964 se utilizou constantemente da prática da tortura como meio de obtenção dessas confissões de crimes e em busca de informações relevantes para segurança nacional.
Hodiernamente, os atos praticados por meio da tortura ganharam a rejeição do mundo civilizado, principalmente após a segunda guerra mundial. Com isso, desencadeou o nascimento de vários instrumentos internacionais que proibiam a tortura.
A tortura é crime que fere a dignidade da pessoa humana sendo equiparada a crime hediondo pela Constituição Federal em seu art. 5º, XLIII. O primeiro dispositivo legal que tipificou a tortura como crime no ordenamento jurídico brasileiro foi o art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90, vejamos: “Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura”.
O artigo supracitado foi amplamente questionado, pois o tipo penal em questão consagrava um tipo penal aberto, não definindo expressamente o que vinha a ser tortura, como também, não indicava os meios de execução do delito.
A lei de tortura não define o que vem a ser tortura, entretanto, a Convenção da ONU sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, em seu art. 1º, vem a conceituar tortura como:
"Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência, inerentes ou decorrentes de sanções legítimas.
A Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura (ratificada pelo Brasil pelo Decreto 98.386/89) também define tortura, vejamos:
“Art. 2º. - Para os efeitos desta convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação ou castigo pessoal, como medida preventiva ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica. Não estarão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente conseqüência de medidas legais ou inerentes a elas, contato que não incluam a realização dos atos ou aplicação dos métodos a que se refere este Artigo”.
Logo após, veio a Lei 9.455/97, a lei da tortura, que revogou o art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, protegendo não somente a criança e o adolescente, mas também o adulto e o idoso. Vejamos:
“Art. 1º Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
§ 1º. - Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança, a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal".
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos”.
Da redação do artigo 1º da Lei 9.455/97 extraem-se as seguintes espécies de tortura:
- Art. 1º, I, “a” – tortura-prova;
- Art. 1º, I, “b” – tortura-crime;
- Art. 1º, I, “c” – tortura-discriminação;
- Art. 1º, II – tortura-castigo;
- Art. 1º, §1º – tortura própria;
- Art. 1º, §2º – tortura omissão.
As Convenções e Tratados Internacionais (Convenção de Nova York sobre direitos da criança, a Convenção contra a Tortura, adotada pela Assembléia Geral da ONU, o Pacto de São José da Costa Rica) definem tortura como crime próprio (somente pode ser praticado por agente do Estado), mas no Brasil, a Lei 9.455/97, reconhece crime de tortura praticado por pessoa comum, nos termos do art. 1º supracitado.
Prescrição de acordo com Cunha (2016), é “a perda, em face do decurso do tempo, do direito de o Estado punir (prescrição da pretensão punitiva) ou executar uma punição já imposta (prescrição da pretensão executória)”.
Funciona como um limitador ao direito de punir do Estado, podendo ser reconhecido de ofício pelo magistrado por trata-se de matéria de ordem pública.
O ordenamento jurídico brasileiro estabeleceu como regra a prescritibilidade, porém a Constituição Federal elenca duas exceções, quais sejam: crime de racismo (art. 5º, XLII, CF/88) e os delitos praticados por grupos armados civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV, CF/88).
Entretanto, existe uma corrente que entende ser imprescritível também o crime de tortura, haja vista que segundo o Estatuto de Roma, os crimes de competência do Tribunal Penal Internacional são imprescritíveis.
A tortura está elencada no art. 7º, “1”, “f”, do Estatuto de Roma, vejamos:
“Artigo 7o
Crimes contra a Humanidade
1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crime contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:
a) Homicídio;
b) Extermínio;
c) Escravidão;
d) Deportação ou transferência forçada de uma população;
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional;
f) Tortura;
g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável;
h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3o, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas;
j) Crime de apartheid”.
Daí o entendimento de parte da doutrina sobre a imprescritibilidade do crime de tortura, pois como o Brasil aderiu ao Tribunal Penal Internacional, que tem seus crimes como imprescritíveis, torna a tortura imprescritível no ordenamento interno Brasileiro.
O atual Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, é um dos defensores da imprescritibilidade do crime de tortura, entendendo que o direito internacional, suas convenções precisam ser internalizadas.
Rodrigo Janot defende a punição na esfera interna brasileira de agentes militares que cometeram crimes de tortura, além de morte e desaparecimento de militantes de esquerda durante o regime militar. Para o membro do Ministério Público Federal, o crime de tortura é imprescritível e não está coberto pela Lei de Anistia, entendimento que não se enquadra com o Supremo Tribunal Federal.
Os defensores da imprescritibilidade do crime de tortura alegam que o conflito entre a Constituição Federal e os Tratados Internacionais deve prevalecer à norma que melhor atende aos direitos humanos.
Porém, a doutrina majoritária entende não ser imprescritível o crime de tortura. Cunha (2016) defende que o Estatuto de Roma, por ser um Tratado com status de norma supralegal, não tem como afastar a garantia implícita constitucional da prescritibilidade, ou seja, a prescrição é um direito fundamental constitucional não podendo ser afastado nem mesmo por emenda a Constituição quanto menos por legislação ordinária.
Além disso, a legislação penal brasileira não permite uma interpretação extensiva para possivelmente prejudicar o réu. Portanto, fica claro que a omissão sobre a imprescritibilidade do crime de tortura na Constituição Federal é proposital. O art. 5º, XLIII, da Constituição Federal não expressa menos do que deveria sendo explícita e intencional sua omissão sobre a imprescritibilidade, prevalecendo o postulado da reserva constitucional de lei em sentido formal.
Vejamos importante trecho do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello no julgamento da ADPF 153/DF sobre o postulado da reserva legal e a inaplicabilidade de normas de Tratados Internacionais no Brasil:
“Esse princípio, além de consagrado em nosso ordenamento positivo (CF, art. 5º, XXXIX), também encontra expresso reconhecimento na Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 9º) e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 15), que representam atos de direito internacional público a que o Brasil efetivamente aderiu.
O que se mostra constitucionalmente relevante, no entanto, como adverte a doutrina (LUIZ FLÁVIO GOMES/VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI, “Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos”, vol. 4/122, 2008, RT), é que, “no âmbito do Direito Penal incriminador, o que vale é o princípio da reserva legal, ou seja, só o Parlamento, exclusivamente, pode aprovar crimes e penas. Dentre as garantias que emanam do princípio da legalidade, acham-se a reserva legal (só o Parlamento pode legislar sobre o Direito Penal incriminador) e a anterioridade (´lex populi´e ´lex praevia´, respectivamente). Lei não aprovada pelo Parlamento não é válida (...)” (grifei).
Não se pode também desconhecer, considerado o princípio constitucional da reserva absoluta de lei formal, que o tema da prescrição subsume-se ao âmbito das normas de direito material, de natureza eminentemente penal, regendo-se, em conseqüência, pelo postulado da reserva de Parlamento, como adverte autorizado magistério doutrinário (FERNANDO GALVÃO, “Direito Penal – Curso Completo – Parte Geral”, p. 880/881, item n. 1, 2ª edição, 2007, Del Rey; DAMÁSIO E. DE JESUS, “Direito Penal – Parte Geral”, vol. 1/718, item n. 1, 27ª Ed., 2003, Saraiva; CELSO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO JÚNIOR e FÁBIO M. DE ALMEIDA DELMANTO, “Código Penal Comentado”, p. 315, 7ª Ed. 2007, Renovar; CEZAR ROBERTO BITENCOURT, “Tratado de Direito Penal”, vol. 1/772, item n. 1, 14ª Ed., 2009, Saraiva; ROGÉRIO GRECO, “Código Penal Comentado”, p. 205, 2ª Ed., 2009, Impetus; ANDRÉ ESTEFAM, “Direito Penal – Parte Geral”, vol. 1/461, 375, item n. 2, 4ª Ed., 2007, RT, v.g.).
Isso significa, portanto, que somente lei interna (e não convenção internacional, muito menos aquela sequer subscrita pelo Brasil) pode qualificar-se, constitucionalmente, como única fonte formal direta, legitimadora da regulação normativa concernente à prescritibilidade ou à imprescritibilidade da pretensão estatal de punir, ressalvadas, por óbvio, cláusulas constitucionais em sentido diverso, como aquelas inscritas nos incisos XLII e XLIV do art. 5º de nossa Lei Fundamental”( Portela, 2014, p. 55 apud Celso de Melo, ADF 153/DF).
Portanto, não há que se falar em imprescritibilidade do crime de tortura no ordenamento jurídico interno pátrio, considerando que a prescrição é regra no nosso sistema jurídico, estando às exceções taxativamente previstas na Constituição Federal de 1988.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, e depois de uma análise das normas legais em vigor no sistema jurídico brasileiro, pode-se destacar que o crime de tortura não é imprescritível.
A Constituição Federal em seu art. 5º, incisos, XLII e XLIV, afirma expressamente que somente são imprescritíveis o crime de racismo e as ações de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o estado democrático de direito, respectivamente. Nossa Lei maior não faz menção a qualquer imprescritibilidade do crime de tortura, além de que não é possível interpretação extensiva para piorar a situação do réu.
Vale salientar, que a prescrição é um direito fundamental sendo considerada cláusula pétrea. Ou seja, Tratados Internacionais de Direitos Humanos que têm status de norma supralegal não têm força normativa para inserir mais uma exceção a prescrição dos crimes na Constituição Federal.
REFERÊNCIAS
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HABIB, Gabriel. Leis Penais Especiais, Tomo I. 7ª edição. Editora Juspodivm. Salvador – Bahia. 2015.
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O GLOBO, <Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/para-rodrigo-janot-crime-de-tortura-nunca-prescreve-10434223> Acesso em 24. Nov. 2016.
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado. 6º edição. Editora JusPodivm. Salvador – Bahia. 2014.
Advogado e Assessor jurídico da Prefeitura de São Domingos do Cariri - PB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MAIA, Enio da Silva. A (im) prescritibilidade do crime de tortura Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 dez 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47885/a-im-prescritibilidade-do-crime-de-tortura. Acesso em: 22 nov 2024.
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