RESUMO: Este trabalho analisa os critérios para se enquadrar os funcionários e dirigentes do Terceiro Setor no conceito de funcionário público para fins penais e os principais tipos penais que podem ser por eles praticados.
PALAVRAS-CHAVE: Terceiro Setor. Crimes. Ministério Público.
1) INTRODUÇÃO
Este breve trabalho pretende analisar os principais aspectos relacionados aos crimes praticados por integrantes do Terceiro Setor.
Para cumprir esse objetivo, serão analisados os critérios para se enquadrar os funcionários e dirigentes do Terceiro Setor no conceito de funcionário público para fins penais e os principais tipos penais que podem ser por eles praticados.
2) FUNCIONÁRIO PÚBLICO PARA FINS PENAIS
Frequentemente, dirigentes e funcionários de entidades do Terceiro Setor são acusados de praticar diversos crimes contra a Administração Pública, em especial, o crime de desviar, em proveito próprio, recursos públicos recebidos das parcerias estabelecidas com o Poder Público (peculato – artigo 312 do Código Penal).
Com efeito, os funcionários e dirigentes das entidades do Terceiro Setor podem ser considerados funcionários públicos para fins penais, nos termos do artigo 327 do Código Penal:
Funcionário público
Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.
§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. (Incluído pela Lei 9.983/2000).
§ 2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público. (Incluído pela Lei 6.799/80). (Destacou-se)
O ponto de partida para a correta interpretação desse artigo é o significado de entidade paraestatal para fins penais, embora, registre-se, não haja definição legal nem consenso na doutrina administrativa quanto ao alcance dessa expressão no direito brasileiro.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello e Marçal Justen Filho1, entidade paraestatal significa o conjunto de entidades associativas encarregadas do desempenho de serviços sociais autônomos, tais como o Serviço Social da Indústria (SESI), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e o Serviço Social do Comércio (SESC).
José dos Santos Carvalho Filho, por outro lado, entende que as entidades paraestatais são aquelas pessoas jurídicas que atuam ao lado e em colaboração com o Estado: as pessoas da administração indireta e os serviços sociais autônomos. O autor critica a utilização da expressão no artigo 327, § 1º do Código Penal, em razão da completa ausência de precisão desse conceito. 2
Hely Lopes Meirelles considera como entidades paraestatais as pessoas jurídicas de Direito Privado que, por lei, são autorizadas a prestar serviços ou realizar atividades de interesse coletivo ou público, mas não exclusivos do Estado, como os serviços sociais autônomos e as organizações sociais. 3
Maria Sylvia Zanella Di Pietro4 defende que a expressão entidade paraestatal contida no artigo 327, §1º, do Código Penal, deve abranger as entidades de direito privado que integram a Administração Indireta (empresas estatais de todos os tipos e fundações de direito privado), bem como os serviços sociais autônomos, as Organizações Sociais e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público.
A partir da interpretação sistemática do próprio artigo 327, vê-se que o Código Penal adotou, para fins penais, a concepção ampla de entidade paraestatal, englobando os serviços sociais autônomos e os entes da Administração Indireta. É que o §2º do dispositivo estabeleceu causa específica de aumento de pena quando os autores dos crimes forem ocupantes de cargos em comissão ou função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público, ou seja, expressamente considerou funcionário público para fins penais quem trabalha nessas entidades. Nesse sentido é a lição de Alberto Silva Franco e Rui Stocco, in verbis5:
O acréscimo do §2º ao art. 327 tem o mérito de pôr fim a antiga dissensão jurisprudencial em torno da definição de funcionário público para fins penais.
Com o advento da Lei 6.799/80, consideram-se funcionários públicos, enquanto sujeitos ativos de crimes, não só as pessoas jurídicas pertencentes à Administração Direta e às autarquias, mas, também, os funcionários de entidades paraestatais, de que são espécies as empresas públicas, as sociedades de economia mista, os serviços sociais autônomos e as fundações não instituídas pelo Poder Público (privadas).
A ausência de definição legal da expressão e a absoluta falta de consenso doutrinário quanto ao seu alcance demonstram o equívoco da utilização do conceito de entidade paraestatal pelo Código Penal. A doutrina administrativa, como visto, vem admitindo a inclusão das entidades do Terceiro Setor, em especial as Organizações Sociais e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, no conceito de entidade paraestatal. Mas as entidades do Terceiro Setor devem ser consideradas entidades paraestatais?
Ora, mesmo se adotada a interpretação mais alargada da expressão entidade paraestatal, utilizada pelo Código Penal – que engloba os serviços sociais autônomos, as sociedades de economia mista, as empresas públicas e as fundações instituídas pelo Poder Público – não há como se enquadrar as entidades do Terceiro Setor nesse conceito, para fins penais, por pelo menos duas razões.
Primeira: o regime jurídico das entidades do Terceiro Setor, embora se assemelhe ligeiramente ao dos serviços sociais autônomos, difere por completo do das demais entidades da Administração Indireta, também consideradas paraestatais. Se já não é adequada a utilização da expressão para agrupar, sob o mesmo rótulo, os serviços sociais autônomos e as entidades da Administração Indireta, seria ainda mais equivocado inserir também o Terceiro Setor nessa classificação. São completamente diferentes os regimes jurídicos, por exemplo, do SESI e de uma empresa pública, e ainda mais dissonantes das normas que regem uma OSCIP ou uma entidade sem fins lucrativos conveniada com o Poder Público. Ou seja: não há qualquer utilidade e somente causaria mais confusão a inclusão das entidades do Terceiro Setor sob o conceito de entidades paraestatais. 6
Segunda: a lei penal prevê expressamente a equiparação dos funcionários do Terceiro Setor a servidores púbicos ao se referir a quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública (artigo 327, §2º, CP). Perceba-se: na época de promulgação da Lei 9.983/2000, que alterou o artigo 327 do Código Penal, já existiam as leis das Organizações Sociais e das OSCIPs, que não foram expressamente tratadas pela novel lei penal. Assim, o legislador se referiu ao Terceiro Setor quando mencionou as prestadoras de serviço contratadas ou conveniadas para execução de atividade típica da Administração e não quando utilizou o signo entidade paraestatal. Explica-se.
A utilização pela lei penal da expressão empresa refere-se às pessoas jurídicas de direito privado com e sem finalidades lucrativas, abrangendo inclusive as associações e fundações que compõem o Terceiro Setor. Não se trata, aqui, de emprego da analogia in malam partem no Direito Penal: quando da promulgação da Lei 9.983, em 14 de julho de 2000, estava em vigor o Código Civil de 1916, que se utilizava da mesma denominação de sociedade para qualificar tanto as que possuíam finalidades civis (religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, as associações de utilidade pública e as fundações) quanto as sociedades mercantis (artigo 16, I e II, do CC/1916).
Não há dúvida, portanto, que o emprego da expressão empresa, no artigo 327, §2º, do Código Penal, refere-se também às pessoas jurídicas sem fins lucrativos.
Ademais, perceba-se: não seria razoável, por exemplo, responsabilizar-se penalmente o dirigente de um hospital particular ou de um hospital público – ambos considerados funcionários públicos para fins penais – pelo desvio de recursos públicos (tipificado como crime de peculato, artigo 312 do CP), e, nas mesmas condições, não se considerar como funcionário público o dirigente de uma Organização Social que preste exatamente os mesmos serviços de saúde.
Relembre-se a noção de Terceiro Setor: conjunto de pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, beneficiadas pela atividade administrativa de fomento, que prestam serviços de relevância pública. Ora, os serviços de relevância pública constituem-se evidentemente em atividades típicas da Administração Pública, uma vez que podem ser prestados diretamente pelo Poder Público no regime jurídico dos serviços públicos. Além disso, os convênios, contratos de repasse, contratos de gestão e termos de parceria possuem natureza convenial.
O enquadramento legal dos funcionários do Terceiro Setor como funcionários públicos, para fins penais, é perfeito: ainda que não se admita a interpretação proposta quanto ao alcance da expressão empresa utilizada pela lei penal ou mesmo quando a entidade privada não for contratada ou conveniada da Administração, em todos os casos de prestação de serviços de relevância pública haverá o desempenho de verdadeira função pública pelos funcionários do Terceiro Setor, os quais serão considerados funcionários públicos pelo próprio caput do artigo 327 do Código Penal.
A correta exegese do referido dispositivo legal indicará ao intérprete os casos em que os funcionários das entidades privadas sem fins lucrativos serão qualificados como funcionários públicos para fins penais. A consequência jurídica é que os funcionários das entidades do Terceiro Setor qualificados como funcionários públicos podem ser responsabilizados como sujeitos ativos dos crimes previstos no Título XI do Código Penal, que trata dos crimes contra a Administração Pública (artigos 312 a 326).
3. CRIMES PRATICADOS POR DIRIGENTES E EMPREGADOS DO TERCEIRO SETOR
Passa-se, agora, à rápida análise de alguns dos crimes mais comuns praticados pelos dirigentes e empregados de entidades do Terceiro Setor.
Pratica o crime de peculato o funcionário da entidade do Terceiro Setor que se apropriar ou desviar em proveito próprio ou alheio os recursos públicos recebidos para a realização de atividades de relevância pública (artigo 312 do Código Penal). O verbo núcleo apropriar deve ser entendido no sentido de tomar como propriedade, tomar para si, apodera-se indevidamente dos recursos públicos. Aqui, o agente inverte o título da posse, agindo como se fosse dono do dinheiro ou bem móvel recebido, valendo-se da liberdade desvigiada que possuía sobre a coisa em virtude da parceria estabelecida com o Poder Público.7
É a hipótese mais comum desse crime, diversas vezes praticado por funcionários do Terceiro Setor que gerenciam recursos públicos e se aproveitam das deficiências na fiscalização para praticar a conduta descrita no tipo penal. Já no desvio dos recursos públicos o agente não atua com animus rem sibi habendi, mas desvia o dinheiro ou bem em proveito próprio ou alheio.
A ausência de realização de procedimento de competição para escolha das empresas contratadas pelo Terceiro Setor, com dinheiro público, pode dar azo a que funcionários inescrupulosos pratiquem o crime de corrupção passiva (CP, artigo 327), solicitando ou recebendo propina de empresários em troca da contratação de determinada entidade privada. No caso, o enquadramento típico se dá quando o funcionário da entidade do Terceiro Setor solicita ou recebe vantagem indevida, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, em razão da função pública exercida, ou aceita promessa de tal vantagem.
Na medida em que o controle da execução e prestação de contas dos convênios, contratos de repasse, contratos de gestão e termos de parceria passe a ser realizado através da inserção de dados no Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse – SINCOV (artigo 13 do Decreto 6.170/2007), os funcionários e dirigentes das entidades do Terceiro Setor poderão ser responsabilizados pelo crime de inserção de dados falsos em sistema de informações, previsto no artigo 313-A do Código Penal.
Com efeito, o SINCOV é um sistema informatizado e o funcionário da entidade com atribuição para operá-lo considerado funcionário autorizado para fins penais. Pense-se, por exemplo, no lançamento de dados falsos no sistema que permitissem a aprovação, indevida, da prestação de contas de determinado convênio, e consequentemente, a celebração de um novo convênio com o Poder Público no exercício seguinte. Se as contas não tivessem sido aprovadas, o novo convênio não poderia ter sido celebrado8: a inserção de dados falsos, no exemplo, permitiu a obtenção de vantagem indevida, configurando o crime previsto no artigo 313-A do Código Penal.
Ocorre o crime de atentado contra a segurança ou funcionamento de serviço de utilidade pública, previsto no artigo 265 do Código Penal, quando a conduta praticada atingir serviços de relevância pública prestados pelas entidades do Terceiro Setor?
Diz a lei que comete o crime quem atentar contra a segurança ou o funcionamento de serviço de água, luz, força ou calor, ou qualquer outro de utilidade pública. Comentado o artigo 265 do Código Penal, Júlio Fabbrini Mirabete sustenta que os serviços de gás, limpeza pública e assistência hospitalar também são serviços de utilidade pública.9 Há decisão jurisprudencial reconhecendo a configuração do crime contra o atendimento do INSS, pela prática das condutas de furar a fila de distribuição de senhas e arrancá-las das mãos da funcionária que as estavam distribuindo, impedindo, assim, que as pessoas necessitadas e que já estavam na fila há algum tempo conseguissem obtê-las. 10
Ora, como o legislador penal utilizou a interpretação analógica para o preenchimento do tipo penal, não há duvidas de que ocorrerá o crime quando o atentado ocorrer contra serviços de relevância pública prestados pelas entidades do Terceiro Setor, tais como assistência médica, hospitalar e social a adolescentes carentes e idosos, eis que se tratam de serviços de inegável utilidade pública.
Registre-se ainda que para a doutrina majoritária o crime em comento é de perigo abstrato, ou seja, “o delito se consuma mesmo que no caso concreto não se tenha verificado qualquer perigo para o bem jurídico tutelado (incolumidade pública), sendo suficiente a simples comprovação de uma atividade finalista”. 11
O Código Eleitoral estabelece que o serviço de qualquer repartição, federal, estadual, municipal, autarquia, fundação do Estado, sociedade de economia mista, entidade mantida ou subvencionada pelo poder público, ou que realiza contrato com este, inclusive o respectivo prédio e suas dependências não poderá ser utilizado para beneficiar partido ou organização de caráter político, sobe pena de detenção de até seis meses e pagamento de 30 a 60 dias-multa (artigos 346 e 377 da Lei 4.737/65). Nesse tipo penal, a norma realça a preocupação do legislador em impedir a utilização das entidades do Terceiro Setor para fins eleitoreiros.
Dentre os inúmeros exemplos de crimes praticados por funcionários de entidades do Terceiro Setor, cite-se somente o ocorrido durante o período final de redação desta dissertação. Trata-se da denominada “Operação Voucher”, deflagrada pela Polícia Federal, que desarticulou suposto esquema de desvio de recursos públicos do Ministério do Turismo por meio de um convênio de R$ 4,45 milhões celebrado com o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento de Infraestrutura Sustentável (IBRASI), organização sem fins lucrativos. A finalidade legítima do convênio era qualificar 1,9 mil profissionais de turismo no Amapá, mas os recursos públicos foram repassados pelo IBRASI a empresas de fachada e desviados em proveito particular. As investigações apontaram a prática de crimes de formação de quadrilha, fraude em licitações e peculato. 12
4. CONCLUSÕES
O problema de apropriação e desvio criminosos dos recursos repassados ao Terceiro Setor é gravíssimo e vem sendo objeto de preocupação da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – ENCCLA, criada em 2003, como forma de contribuir para o combate sistemático à lavagem de dinheiro e corrupção no Brasil.
A ENCCLA consiste na articulação de diversos órgãos dos três poderes da República, Ministérios Públicos e da sociedade civil que atuam, direta ou indiretamente, na prevenção e combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, com o objetivo de identificar e propor ajustes aos pontos falhos do sistema antilavagem e anticorrupção.
Ainda há um longo caminho a ser percorrido no fortalecimento do controle dos recursos públicos repassados ao Terceiro Setor. A percepção da existência e da dimensão do problema é apenas o primeiro passo, embora muito importante, para o combate efetivo da corrupção que assalta os recursos públicos repassados à iniciativa privada.
REFERÊNCIAS
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 29ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012..
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 10ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 360-361.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2011.
FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui. Código Penal e sua interpretação: doutrina e jurisprudência. 8ªed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
GRECO, Rogério. Código Penal comentado. 4ª ed. Niterói, RJ: Editora Impetus, 2010.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 7ª ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direto Administrativo Brasileiro. 26ª edição, São Paulo: Malheiros, 2001.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Código penal interpretado. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2001.
Mestre em Direito Público pela PUC-SP, Procurador da República.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Paulo Gomes Ferreira. O combate dos crimes praticados por integrantes do terceiro setor Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 dez 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48203/o-combate-dos-crimes-praticados-por-integrantes-do-terceiro-setor. Acesso em: 22 nov 2024.
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